sábado, 22 de janeiro de 2011

Os últimos dias

Revista Veja
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Um drama como Portugal nunca viu: com o inimigo à vista, o príncipe reúne a família e vem para o Brasil

Se fosse um romance de aventura, a fuga dramática de toda a elite dirigente de Portugal poderia ser intitulada Os Últimos Dias de Lisboa. Os tablóides ingleses preferiram fazer piada, usando caricaturas de um frustrado Napoleão Bonaparte, ou "Boney", como apelidam ironicamente o imperador francês, furioso por perder sua presa no último minuto. Mas para os portugueses não teve nada de engraçado enfrentar os acontecimentos incontroláveis que se precipitaram como um arrastão. No fim de novembro do ano passado, o pequeno reino se viu na insustentável posição de estar em guerra, simultaneamente, com a França napoleônica, com a vizinha Espanha e, pelo menos nominalmente, com a Inglaterra, sua tradicional aliada. Os invasores franceses já se aproximavam de Lisboa quando o príncipe regente João finalmente pegou família, fidalgos, criadagem, tesouros e documentos e veio ser rei de Portugal no Rio de Janeiro. O clima foi de desespero, tanto entre os que foram embora quanto para os que ficaram. "A desgraça, a desordem e o espanto existiam por toda parte em Lisboa", anotou uma testemunha.

O atropelo da partida diante de uma invasão anunciada demonstra quanto Portugal tentou até o fim se equilibrar em cima do muro da proclamada, embora fictícia, neutralidade na briga da França com a Inglaterra. Essa neutralidade consistiu, na prática, em fingir para os franceses, logo ali nos seus calcanhares, que só mantinha laços com os ingleses por obrigação comercial, e fingir para os ingleses, sua corda de salvação, que não fazia questão nenhuma de ser amigo de seus inimigos. Entre julho e agosto do ano passado, o muro começou a rachar. Missão cumprida no resto da Europa, Napoleão voltou os olhos para Portugal e começou a brincar de lobo e cordeiro – com ele, naturalmente, na condição de predador. Os registros meticulosos de suas cartas e mensagens permitem reconstituir os fatos. Em 19 de julho, mandou seu ministro do Exterior "informar o embaixador português de que os portos de seu país devem ser fechados à Inglaterra até 1º de setembro; na falta disso, eu declararei guerra a Portugal e confiscarei as mercadorias inglesas". O trabalho sujo deveria ser feito por meio dos representantes diplomáticos em Madri. Alguma dúvida sobre as intenções de Napoleão? "Na falta disso, os embaixadores da França e da Espanha deixarão Lisboa e ambas as potências declararão guerra contra Portugal; em 1º de setembro um exército francês marchará até Baiona, pronto para se unir a um exército espanhol para a conquista de Portugal."

Enfurnado no Palácio de Mafra, o príncipe regente fez o habitual: tentou contemporizar. Anunciou que iria aderir ao bloqueio, e só. Mas a urgência do assunto se impunha e, discretamente, os navios de guerra portugueses receberam ordens de voltar a Lisboa. No Conselho de Estado, a mais alta autoridade sob o rei, discutiu-se primeiro a possibilidade de enviar ao Rio de Janeiro o pequeno príncipe herdeiro, Pedro, de apenas 8 anos, como forma de garantir pelo menos a continuidade da dinastia dos Bragança. Depois, voltou a aflorar a idéia de "transferir a capital do império para o Brasil", uma mudança em massa de toda a alta hierarquia portuguesa. A hipótese existe há mais de dois séculos e voltou a ser discutida no governo atual pelo menos desde que a Espanha invadiu e abocanhou um pedaço de Portugal, em 1801. Nesse ano, com Napoleão já em plena ação, Pedro de Almeida Portugal, marquês de Alorna e respeitado conselheiro militar, escreveu ao príncipe regente: "A balança da Europa está tão mudada que os cálculos de há dez anos saem todos errados na era presente. Em todo o caso o que é preciso é que Vossa Alteza Real continue a reinar (...). Vossa Alteza Real tem um grande império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca agora com tanta vantagem talvez que trema, e mude de projeto, se Vossa Alteza Real o ameaçar de que se dispõe a ser imperador naquele vasto território adonde pode facilmente conquistar as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências da Europa". Em agosto de 1807, não estava em discussão fazer com que o inimigo tremesse, apenas ludibriá-lo.

Setembro passou em frenética troca de mensagens. Sem que os portugueses soubessem, as tropas invasoras já estavam a caminho. Com a operação militar em marcha, Napoleão rejeitou a contraproposta de adesão ao bloqueio e reiterou todas as suas exigências. Em outubro, tudo se acelerou. Os embaixadores da França e da Espanha romperam relações com Portugal e foram embora; chegou a Lisboa a notícia de que o general Jean-Andoche Junot, com um exército de 25 000 homens, marchava pela Espanha em direção à fronteira; o príncipe João deixou Mafra e se instalou no Palácio da Ajuda; a frota portuguesa, reunida no Tejo, era aprontada para, oficialmente, proceder à retirada em massa rumo ao Brasil. Ao mesmo tempo, Portugal tratava de garantir a proteção da Inglaterra. Em novembro, com tudo desmoronando, Portugal empreendeu duas tentativas desesperadas de se recompor com a França. Primeira: despachou Pedro José de Meneses Coutinho, o marquês de Marialva, para comunicar a Napoleão que todas as suas exigências seriam atendidas; a título de incentivo, levava um punhado de diamantes, uma espada cravejada de brilhantes e uma proposta de casamento entre famílias. Segunda, produto da primeira: expulsou todos os ingleses, inclusive o embaixador, Percy Smythe, lorde Strangford, um especialista em Camões e em conchavos políticos. Nada deu certo. O marquês de Marialva não passou de Madri. Ao chefe da invasão, Junot, Napoleão mandou dizer: "Acabei de saber que Portugal declarou guerra à Inglaterra; isso não basta, continue sua marcha; tenho razões para acreditar que existe um arranjo para ganhar tempo". Em guerra contra as duas grandes potências mundiais, Portugal se via perdido.

Lorde Strangford não foi para Londres. Foi para o London, navio da frota britânica comandada pelo intrépido Sydney Smith que estava na boca do Porto de Lisboa. Para atacar os navios portugueses antes que os franceses pusessem as mãos neles? Para garantir a saída da família real? Naquele exato instante, ninguém sabia ao certo. Chovia torrencialmente, como é comum no fim do outono, e dois rios transbordaram no caminho de Junot, um obstáculo que apenas atrasou a invasão que na descrição de um observador francês "foi um desfile militar, não uma guerra". No dia 13 de novembro, o jornal oficial de Napoleão, Le Moniteur, antecipou-se ligeiramente aos fatos e registrou que o príncipe regente de Portugal tinha perdido o trono. "A queda da casa de Bragança constituirá mais uma prova de como é inevitável a perda de todos quantos se unirem aos ingleses", dizia. Uma cópia do jornal chegou às mãos de Sydney Smith e foi prontamente encaminhada a Lisboa. O conselho e o príncipe regente se renderam ao inevitável: os Bragança tinham de partir, deixando em seu lugar um Conselho de Regência. Joaquim José de Azevedo, uma espécie de faz-tudo da corte, foi tirado da cama por um mensageiro, levado ao Palácio da Ajuda e instruído a preparar o embarque para o dia 27. De lá mandou avisar cortesãos e clérigos importantes para preparar a mudança, foi para o cais, montou sua mesa de trabalho e pôs mãos à espantosa obra. A seu cargo estava transferir a família real em peso (incluindo as crianças e uma rainha louca e idosa) e todo o aparato institucional, mais os nobres (um duque, sete marqueses, duas marquesas, cinco condes), os agregados, os criados, os negociantes ricos e amedrontados o suficiente para comprar um lugar na frota e convidados aleatórios em geral. A providência mais comentada de Azevedo fez jus à fama da burocracia portuguesa: só embarcava quem tivesse o papelzinho – uma espécie de guia assinada.

"Uma cena terrível de confusão e aflição tomou conta de todas as classes assim que se tornou conhecida a intenção do príncipe de embarcar para o Brasil: milhares de homens, mulheres e crianças estavam constantemente na praia, empenhando-se por escapar a bordo. Muitas senhoras distintas entraram na água na esperança de alcançar os botes, mas algumas, desgraçadamente, morreram na tentativa", descreve o tenente Thomas O’Neill, que estava ao mar, em seu navio, mas ouviu a história de outro oficial britânico, "um cavalheiro em cuja veracidade eu posso ter a mais absoluta confiança". Dos palácios foram removidos louças, pratarias, móveis, obras de arte, até duas pequenas carruagens. Das igrejas e conventos, paramentos e peças de ouro e prata – uma espécie de justiça poética, visto que os metais preciosos provinham maciçamente do Brasil. Só de documentos, foram empacotados 34 caixotes grandes. Toda a portentosa biblioteca do Palácio da Ajuda – 60 000 volumes – foi acondicionada para a viagem. O tesouro real foi raspado até o fundo. Centenas de carruagens dirigiram-se para o porto, sob a chuva incessante. Botes faziam fila para levar a bagagem aos navios. Foram dois dias e meio de caos e desespero. "Que grande confusão houve no cais", registrou o funcionário Eusébio Gomes. "Todos a quererem embarcar, o cais amontoado de caixas, caixotes, baús, malas, malotões e trinta mil coisas, que muitas ficaram no cais tendo seus donos embarcado, outras foram para bordo e seus donos não puderam ir."

Os lisboetas comuns pareciam atônitos, quando não revoltados. Os poderosos partiam enquanto os sujeitos comuns ficavam à mercê dos invasores franceses, pintados como a encarnação do mal, incluindo rabo e chifres. No começo da tarde de 27 de novembro, a família real embarcou. O príncipe João chegou em carruagem simples, cocheiro sem libré, com o infante espanhol Pedro Carlos, irmão da princesa Carlota, que está sob a guarda do casal. A princesa veio depois, com os dois filhos e as seis filhas, criados, ama-de-leite para a menorzinha. Por fim chegou ao porto a rainha Maria, 73 anos, afastada do trono há mais de uma década. "Que desordem e que confusão; a rainha sem querer embarcar por forma alguma, o príncipe aflito por esse motivo. Foi o (capitão Francisco) Laranja quem fez que a rainha embarcasse. E então o príncipe deu beija-mão às pessoas que ali estavam e entre lágrimas e suspiros começaram a embarcar, e não se pode descrever o que aqui se passou", relata Gomes. Àquela altura, as tropas francesas já eram avistadas chegando à cidade. Durante todo o dia 28, com os franceses a um passo, o mau tempo impediu que a frota saísse do Tejo. Em pleno tumulto, o destituído embaixador inglês lorde Strangford desembarcou no porto, na qualidade de "amigo particular". Tinha convencido seus superiores de que era de bom alvitre que se reunisse com o príncipe regente para "mostrar a ele, na linguagem direta e simples da verdade, o único meio de segurança que ainda detém" – qual fosse, dar as mãos à Inglaterra. Ele também se impressionou: "Lisboa estava em estado de ressentido descontentamento, horrível demais para ser descrito". Strangford só se encontrou com o príncipe no dia seguinte, domingo, 29, a bordo do Príncipe Real. Lá estava quando o tempo abriu e Sua Alteza cruzou a barra para mar aberto. Começavam a grande viagem e alguns novos capítulos na história.

A viagem infernal

Revista Veja
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Navios mal supridos, aperto, enjôo, medo e mau humor. Assim a família real atravessou o Atlântico

Imaginem pessoas que deixaram para trás tudo o que têm na vida – posses, carreiras e até o próprio país. Imaginem uma viagem em navios apertados, com muito mais passageiros do que normalmente levam, com pouca água, péssima comida, náuseas quando ventava, surtos de doenças quando parava. Multipliquem tudo por 99, o número de dias que durou a penosa travessia desde Lisboa até São Sebastião do Rio de Janeiro, exceção feita à bem-vinda escala em Salvador. Isso dá uma idéia aproximada do alívio sentido pelos mais de 2 000 passageiros, quase todos de primeira viagem, que, amontoados em quatro navios, entraram no último dia 7 na baía guardada pelo paredão de pedra do Pão de Açúcar. Como não existe visitante que não se extasie com essa vista, o alívio se somou ao encanto e tudo se misturou ao estranhamento dos europeus ainda não acostumados à idéia de que, neste começo de março, estamos em pleno verão. O primeiro a sentir o que é o calor carioca, num dia de céu gloriosamente azul, foi o próprio príncipe João. Em companhia dos dois filhos homens, Pedro e Miguel, o regente desembarcou no dia 8 do Príncipe Real – e a esta altura já deve saber que carioca é como se chama tudo pertinente ao Rio, e não o nome dos índios que continuam a habitar na cidade. Sua mãe, a rainha Maria I, que está afastada do trono por doença, só veio a terra dois dias depois. Do Afonso de Albuquerque desceram a princesa Carlota Joaquina e quatro das seis filhas do casal. Enquanto os personagens principais descansam em terra firme, já se pode reconstituir o que foi a extenuante jornada marítima.

Por causa da correria na fuga, praticamente sob a mira dos canhões franceses, não existe lista precisa dos navios, tripulações e passageiros que partiram de Lisboa em 29 de novembro, um dia frio e chuvoso. Mas eram mais de cinqüenta naus contando a frota portuguesa, a escolta inglesa e os navios mercantes que estavam no porto ou próximos a ele naquele momento. Nelas, cerca de 15 000 pessoas, metade tripulantes e a outra metade os fidalgos, funcionários públicos e criados que acompanharam a família real portuguesa nessa inédita viagem. "Os navios de guerra portugueses apresentavam uma aparência desleixada, por terem tido só três dias para se preparar para a fuga. Mais pareciam destroços que navios de guerra", descreve o irlandês Thomas O’Neill, tenente da Marinha britânica que presenciou a partida a bordo do navio de escolta London. No início da tarde, quando a esquadra portuguesa que deixava o porto se encontrou com os navios ingleses amigos, o comandante da escolta, o contra-almirante Sydney Smith, foi visitar o príncipe João e com ele conversou "na popa ostentando seu pavilhão, a única parte do navio livre de entulhos e aglomeração". Smith ficou preocupado: "Eles têm multidões de homens, mulheres e crianças, todos refugiados indefesos, e um monte de bagagem a bordo, pouquíssimos marinheiros e não há água nem provisões para uma viagem de duração considerável".

Os navios partiram todos juntos, mas de manhã já estavam espalhados por causa de uma tempestade. "No mar aberto, a esquadra enfrentava, nesses primeiros dois dias de viagem, tempestades excepcionalmente severas e ventos que, pelo quadrante que sopravam, tornavam a vida a bordo incômoda pelo movimento e, para a maioria não acostumada, pelo medo de que a aventura terminasse a qualquer momento", relata um passageiro. Ele toca num ponto importante: apesar da história de glórias da navegação portuguesa, poucos dos viajantes conheciam as durezas dos percursos marítimos. Aliás, tirando as curtas distâncias entre Lisboa e suas propriedades no interior, poucos estão habituados a viajar. O próprio príncipe regente só saiu de Portugal uma vez, em 1796, para se encontrar com o sogro Carlos IV, o rei da Espanha, em Badajoz, pouco além da fronteira.

No dia 2 de dezembro, João deu ordens a um dos oito navios de linha, o Medusa, para seguir à frente e chegar primeiro ao Rio de Janeiro, dando tempo ao vice-rei Marcos de Noronha e Brito, o conde dos Arcos, de se preparar para o inimaginável: acolher a família real e sua corte. Dois dias depois, com o tempo já firme, o comandante Smith destacou quatro naus britânicas para escoltar os portugueses no restante da viagem. Ele próprio voltou à sua atividade habitual, lutar contra os franceses. A qualidade do serviço de bordo pode ser avaliada pelas cartas com reclamações que a princesa Carlota ficou mandando ao marido – a correspondência entre os navios é levada por botes. "Quanto ao que me dizes a respeito da cozinha, é necessário que tu autorizes o conde de Caparica com algum oficial hábil dessa nau para que unidos façam o arranjamento melhor possível castigando os que não quiserem obedecer-lhe", aconselhou o príncipe. O mau tempo impediu uma escala para reabastecimento na bela Ilha da Madeira e, pior, dividiu a esquadra. Quando se percebeu, o Príncipe Real e o Afonso de Albuquerque, mais suas fragatas de apoio Urânia e Minerva, haviam se separado do resto – a família real portuguesa quase inteira ficou sozinha em pleno alto-mar.

Passadas as borrascas – e o medo de naufrágio –, as queixas aumentaram. "O número de pessoas que seguiram a sorte de seus protetores reais era tão grande, e cada navio estava lotado a tal ponto, que mal havia espaço para deitar no convés; as senhoras, destituídas de bagagem, tinham apenas as roupas que usavam. Nossa situação era tão desesperadora que espero que ninguém venha a experimentar ou testemunhar coisa igual", lamentou um fidalgo. Também se espalhou a impressão de que a viagem "foi muito mal planejada, que deveriam ter tido mais tempo, que mais navios deveriam ter sido preparados". Os ânimos acirraram-se a tal ponto que dom João, o único a permanecer calmo, proibiu que se discutisse a decisão de deixar Lisboa. Ele também cancelou a parada prevista nas Ilhas de Cabo Verde – as últimas antes do destino. A pressa não teve efeito. Quase no Equador, os cinco navios entraram numa zona de calmaria e passaram a virada de 1807 para 1808 praticamente parados. Os navios, sobretudo o Afonso de Albuquerque, sentiam os efeitos de mais de um mês ao mar, lotados de passageiros. "Como a navegação pesada do Afonso nos retardava materialmente e o Príncipe estava se tornando insalubre, tendo 1 054 pessoas a bordo, pensei ser meu dever oferecer o navio de Sua Majestade para acomodação de Sua Alteza Real e comitiva", anotou no diário de bordo o capitão James Walker, do Bedford. João e Carlota principescamente agradeceram e recusaram; em vez disso, em 16 de janeiro o regente mandou avisar o capitão, por sinais, de que iriam para Salvador, na Bahia.

A essa altura, surgiram dois alentos: ventos mais constantes e um brigue proveniente do porto do Recife com frutas, verduras e legumes, muitos deles desconhecidos pelos europeus – gentileza do governador Caetano de Miranda Montenegro, avisado pelo Medusa, o navio despachado na frente. Em 22 de janeiro, depois de passarem 55 dias no mar, a comitiva real e escolta chegaram ao porto de Salvador – totalmente vazio, a não ser pelo atônito governador João Saldanha da Gama, o conde da Ponte. A surpresa é compreensível: embora também tivesse recebido a notícia de que a corte portuguesa estava a caminho do Brasil, o governador não contava que fosse parar na Bahia e nem sequer sabia qual era exatamente o protocolo a ser seguido; afinal, era a primeira vez que um membro da realeza pisava o solo em uma colônia. Na dúvida, Saldanha da Gama mandou todo mundo ficar em casa, em silêncio. As cenas que viu talvez não tenham correspondido às expectativas, com nobres em trajes descompostos saindo de embarcações caindo aos pedaços. "Minha pena é inadequada para descrever a situação angustiosa das pobres mulheres que superlotavam a nau", descreveu um marinheiro do Bedford. No dia seguinte, com as damas trajando vestido emprestado pelas senhoras locais, o desembarque teve mais solenidade, com música, aplausos e salvas de canhão, seguidos de missa solene e cantada na catedral. E assim Sua Alteza Real e sua mais rica e importante colônia afinal tiveram o primeiro contato. Certamente saltou à vista dos recém-chegados que o Brasil é mais quente, mais moreno e muito mais animado que Portugal, em especial por causa das festas que a toda hora agitam as ruas de Salvador, ao ritmo da música africana.

O príncipe regente aproveitou a estada: fez passeios, visitou plantações, recebeu a elite local. Conheceu um dos ilustres filhos da terra, José da Silva Lisboa, que contribuiu com suas idéias liberais para uma das medidas mais importantes dessa nova fase, a assinatura da carta régia que abre os portos brasileiros às nações amigas (leia-se: Inglaterra) e efetivamente suspende o isolamento forçado em que vivemos até agora. A abertura dos portos é uma questão de sobrevivência, com a perda de Portugal, e de boa convivência com os ingleses, que possibilitaram a fuga da família real. Mas também coincide com a causa da liberdade econômica defendida ardorosamente por Lisboa. "A melhor economia consiste em permitir indústria ativa, trabalho discreto, instrução franca e comércio livre", prega o especialista, que viajou de Salvador para o Rio com a comitiva real. Outra iniciativa bem recebida do príncipe regente foi a criação da Escola Médico-Cirúrgica de Salvador, que acaba com a vergonhosa inexistência de ensino superior no Brasil – só para comparar: no Peru, sob domínio espanhol, a universidade de Lima existe desde 1551; a respeitada Harvard, nos Estados Unidos, data de 1636. Apesar da graça e das ofertas sedutoras dos baianos, que propuseram construir um palácio em troca de sediar a corte, o príncipe manteve o roteiro original: fixar-se no Rio, o atual centro do poder colonial, muito bem guardado por fortalezas e mais longe ainda dos franceses. Em 26 de fevereiro, a esquadra partiu – às 16 horas, diz o registro do Bedford, navegavam em mar aberto. Sem percalços e com muito melhor aparência do que na chegada à Bahia, dez dias depois os navios e seus passageiros aportaram, inteiros, no destino que a partida apressada sugeria quase inalcançável: São Sebastião do Rio de Janeiro, quase uma visão do paraíso depois da viagem infernal.

O príncipe imperfeito



Revista Veja
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Ele queria uma vida de caçadas, assados e missa cantada. A mulher e o corso implacável acabaram com seu sossego


Ele vai entrar para a história como dom João VI, rei de Portugal. Por enquanto, não é rei nem tem número. Exceto o nome com que deverá ser conhecido, muita coisa ainda está em aberto para este homem de 40 anos que se tornou o primeiro chefe de uma família real a pisar no solo do novo continente. O príncipe regente não é exatamente um estadista de destaque – nem, reconheça-se, um homem bonito –, mas na última hora tomou a decisão que lhe salvou a pele e a de toda a corte portuguesa: a retirada, se quisermos usar a palavra polida para fuga, com destino ao Brasil. É o gesto pragmático que marcará para sempre a biografia do príncipe de muitos defeitos, que a história talvez se encarregará de ampliar, e algumas boas idéias. Pragmatismo pode não ser uma virtude muito exaltada, mas, no caso de dom João, fez a diferença entre sobreviver ou se tornar mais um dos reis destronados que vivem exilados em Londres, humilhados pela hegemonia francesa. A decisão, difícil e sem precedentes, de transferir a coroa portuguesa para o Brasil ganha uma dimensão especial quando se considera que João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís Antônio Domingos Rafael de Bragança tem mais problemas do que nomes. Príncipe herdeiro de um país que, tecnicamente, não existe no momento, ele tem sido incessantemente perseguido por Napoleão Bonaparte, pressionado pelos ingleses, traído pelos sogros espanhóis e enganado pela mulher, que conspira o tempo todo contra o próprio marido. A mãe, todos sabem, é louca.

A conjunção de elementos políticos e familiares desfavoráveis desabou sobre os ombros não muito preparados de um príncipe de temperamento conciliador e ao mesmo tempo desconfiado, com certa tendência à melancolia. Se o mundo em violenta transformação não o arrancasse do gosto pelo isolamento, ele provavelmente continuaria ensimesmado, quase recluso no Palácio de Mafra, o grandioso complexo barroco, com igreja, convento, biblioteca e jardins que convidam à elevação da alma, longe de Lisboa. Lá, entre padres, criados e os cortesãos mais íntimos, e bem longe da mulher, a princesa Carlota, ele se trancafiou ao longo de quase todo o ano passado. Nos intermináveis corredores e salões, enfeitados com mármores raros e madeiras brasileiras, recebeu a sucessão de más notícias – a França estava decidida a engolir Portugal, não importando quanto tentasse contemporizar. Se conseguisse convencer ninguém menos que Napoleão Bonaparte a mudar de idéia, compraria briga com os ingleses, aliados clássicos de Portugal. Para se distrair do dilema torturante, o regente passou os dias decisivos de 1807 dividido entre as missas, os cânticos religiosos e a caça, passatempo aristocrático que também rende os assados suculentos tão apreciados em sua mesa. Os assuntos de estado, cada vez mais prementes, foram tratados por meio dos ministros, que se deslocavam de Lisboa, e de representantes estrangeiros, sobretudo os ingleses, que não se cansavam de avisar: está chegando a hora. Não é difícil avaliar quanto custou a um príncipe que é tudo, menos aventureiro, abrir mão da vida que sempre conheceu e embarcar na perigosa viagem rumo ao Brasil.

Agora, quando se comemora que a aventura chegou a bom termo, prova do acerto da decisão, o príncipe João talvez se sinta um pouco mais seguro e finalmente supere o fato de que, na verdade, não nasceu para ser rei. Aos brasileiros, até hoje só acostumados à monarquia muito a distância, convém lembrar que os príncipes nascidos em famílias reais são todos mimados e cobertos de honrarias, mas importante mesmo é um só: o filho mais velho e herdeiro da coroa. Durante a infância e a juventude, João, o segundo na linha de sucessão, foi uma espécie de reserva, enquanto seu irmão José, seis anos mais velho, era preparado para ser rei. Por volta dos 18 anos, João começou a ser encarado como potencial herdeiro porque José, embora casado havia tempo, ainda não tinha produzido nenhum filho. Como é quase obrigatório na família real portuguesa, que costuma casar seus infantes – como são chamados os príncipes mais novos – com os equivalentes espanhóis, contratou-se o casamento dinástico de João com Carlota Joaquina, filha do rei Carlos IV e da rainha Maria Luísa da Espanha. Não se espera que esse tipo de união seja exemplo de felicidade conjugal, mas, mesmo pelos parâmetros mais flexíveis, pode-se dizer que foi um casamento feito no inferno. Carlota é teimosa, esperta, determinada, vingativa e extremamente insatisfeita com o marido. Sem ânimo e às voltas com doenças (sofre de erisipela, varizes, hemorróidas e tonturas, além dos acessos melancólicos), parece quase um milagre que ele tenha tido nove filhos com Carlota, dos quais sobrevivem oito. As más-línguas dizem que o milagre pode ter explicações mais terrenas. A caçula do casal, Ana de Jesus Maria, tem pouco mais de 1 ano, sendo que, há mais tempo do que permitiria a boa reputação da princesa, João e Carlota só se encontram em ocasiões oficiais.

O destino de João deu a primeira das muitas guinadas com a prematura morte do príncipe José, em 1788. Aos 21 anos, ele se tornou o herdeiro do trono. Quatro anos depois, em janeiro de 1792, uma junta médica declarou que sua mãe, a rainha Maria I, estava "em estado de loucura"; em 10 de março, o Conselho de Estado pediu ao príncipe João que assumisse as rédeas do reino. Ele se tornou inicialmente príncipe governante e, em 1799, príncipe regente. Portugal já estava consumido pelo furacão de mudanças desencadeado com a revolução na França. Sem vocação aparente para o comando, João também enfrentava o inimigo interno – a própria mulher, que por duas vezes urdiu conspirações para depô-lo. Cercado de um pequeno grupo de conselheiros de confiança, vem aprendendo a reinar. Com sua expressão sossegada, o lábio superior frouxo dos Habsburgo, de quem descende, a barriguinha saliente e as coxas roliças, o regente pode dar a impressão de que não vê muito do que se passa à sua volta. Engano: ele lê e comenta os documentos que lhe são encaminhados, ouve os ministros, mantém-se a par das intrigas de sua corte. Chora com facilidade e refere-se a si mesmo na terceira pessoa ("Sua Majestade"). Católico devoto, embora sem os extremos de fanatismo de sua mãe, é apreciador entusiasta da música sacra, dos cantos gregorianos, da missa cantada – quando mais jovem, arriscava-se inclusive na difícil arte do cantochão. Parece solitário, o que é comum aos que vivem no mundo rarefeito dos homens que vão ser reis. É impossível que não tenha sido corroído pela humilhação a que a mulher o expôs com a conspiração dos fidalgos, o fracassado complô de 1805 para depô-lo. Os ares do Brasil podem fazer bem a este príncipe, que, sem nunca ter pisado num campo de batalha, tem muitos motivos para estar cansado de guerra. Espera-se que o contrário também seja verdadeiro.

Que país é este




Revista Veja
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Um gigante que não cabe no papel de colônia e espera o futuro acelerado pela transferência da família real


Que lugar é este aonde acabamos de chegar, devem ter pensado os milhares de portugueses que desembarcaram no Rio de Janeiro na tarde ensolarada de 8 de março de 1808, desde já uma data histórica. Para começar, é um país, mesmo que em formação e ainda chamado de colônia – esclarecimento importante, visto que, com a chegada da família real, deram de falar que vivemos aqui numa massa amorfa e desconjuntada, como se não tivéssemos nos dado conta até agora de quem somos. Nem Nova Lusitânia nem América Portuguesa, como ainda querem alguns, o nome desta nação em formação é Brasil, e ponto final. Habitado por 3 milhões de pessoas – atenção, brasileiros, não brasilianos, como preferem alguns –, é um lugar de proporções tão vastas que custa à mente européia, e às locais também, imaginar até onde chegam suas fronteiras e à lógica aceitar que continuará na posição subalterna de hoje. A transferência do governo português para cá acelera, inevitavelmente, a dinâmica em direção a um futuro independente. As primeiras medidas tomadas por dom João, o príncipe regente e futuro rei – ou simplesmente João, para manter os padrões de informalidade daqui –, foram positivas. A abertura ao comércio, decretada durante a escala da família real na Bahia, é apenas o primeiro e incipiente passo para que o Brasil encontre seu lugar na ordem econômica internacional. Outras deficiências escandalosas deverão ser supridas em breve – é inacreditável, por exemplo, que aqui não exista ensino superior nem se possam publicar livros. Espera-se que a criação de um aparato de estado à altura da nova posição do Brasil como reino alternativo redunde em eficiência e progresso, não em excesso de cargos públicos e outras mordomias, tão caras dos dois lados do Atlântico.

O mundo está fervilhando de idéias que podem inspirar o Brasil. As duas grandes potências européias, França e Inglaterra, apesar da guerra, oferecem ambas modelos políticos instrutivos. Embora Napoleão Bonaparte tenha traído as origens ao se proclamar imperador, a transformação conceitual que produziu na França a Declaração dos Direitos do Homem veio para ficar. A Inglaterra não tem revolução nem Constituição escrita, mas o rei se sujeita ao Parlamento, como deve ser. Na jovem república dos Estados Unidos, vigora o princípio simplesmente transformador de que todos os homens nascem livres e iguais. A economia também está no início de importantes transformações. Avanços tecnológicos promovidos pelos britânicos e por seus irmãos rebeldes, os americanos, tornam possível a produção de bens de consumo em quantidades difíceis de conceber pelos padrões vigentes aqui. Por que uma mulher teria mais do que os dois ou três vestidos necessários para se apresentar em sociedade? A resposta, provavelmente, é porque ela pode. Inserir o Brasil numa economia que funcionará em escala global é obrigatório. Além de liberar o comércio, a chegada da corte portuguesa também enterra o decreto real de 1785, pelo qual se ordenava que, à exceção da indústria têxtil, todas as fábricas em território brasileiro "deviam ser extintas e abolidas". A anomalia trazia a assinatura de Maria I, a rainha afastada por insanidade, que chegou ao Rio de Janeiro com o resto da família real.

Um país com liberdade para produzir e comercializar, regido por leis – por que não uma Constituição? –, integrado por cidadãos livres, donos de seu trabalho e de suas opiniões, sem a ignomínia da escravidão nem a injustiça do domínio colonial. O Brasil merece isso tudo, embora não se espere que a transferência do governo português produza as mudanças por passe de mágica. João, tantas vezes criticado como um príncipe hesitante, pode ser mais esperto do que se imagina. Talvez não demore a perceber que a separação entre Brasil e Portugal é inevitável, mas não precisa ser litigiosa. Ainda é cedo para dizer se haverá uma transição pacífica para a independência, como parece estar nas raízes brasileiras, ou um levante em armas, como já aconteceu nas duas ex-colônias americanas hoje independentes – os Estados Unidos e o Haiti. Mas já dá para prever que o alcance histórico da chegada da família real é um assunto que vai continuar a ser discutido pelos próximos 100, quem sabe até 200 anos.

O Rio de braços abertos

Revista Veja
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A cidade faz festa para acolher a corte portuguesa e planos para se transformar numa maravilha

Por enquanto, é uma festa só. Os moradores de São Sebastião do Rio de Janeiro, que sempre abrem os braços para receber gente famosa, estão encantados com tantos príncipes, princesas e outros nobres recém-chegados à cidade. Pode haver até certo exagero no desejo de agradar, refletido em relatos como o do habitual cronista da cidade, Luiz Gonçalves dos Santos, padre e culto historiador que a verve popular apelidou de Perereca: "Ao som do estrondo das salvas, ouvido a léguas de distância, e do alegre repicar dos sinos das igrejas, o espírito de todos se elevou, e homens, mulheres, velhos e crianças correram pelas ruas, ansiosos para assistir à extraordinária chegada da esquadra real". A curiosidade e até a comoção, no entanto, foram verdadeiras quando o príncipe regente João, a princesa Carlota Joaquina, seus oito filhos e sua corte aportaram na baía da cidade. O primeiro ato do casal ao pisar em terra firme foi rezar diante do altar armado no cais e agradecer pelo fim da arriscada viagem. No Largo do Paço, arcos triunfais retratavam dom João entre nuvens, tendo a seus pés os súditos ajoelhados e recebendo frutos típicos ofertados por um nativo da terra – é uma alegoria, claro, mas sabe-se que pelo menos caju e pitanga, ambos de sabor embriagante, os portugueses já provaram. De lá, sob um pálio de seda vermelha, o príncipe e sua comitiva, acompanhados das autoridades locais, seguiram para a catedral. As ruas estavam forradas de areia branca e folhas aromáticas; as janelas e os balcões das casas, enfeitados com colchas de seda e damasco; a população lançava flores; um coral entoava hinos de louvor. Enfim, uma espécie de Carnaval, só que mais solene.

Ninguém aqui ainda está acostumado a lidar com a realeza, mas todo mundo pensava a mesma coisa: o que será que eles estão achando? É difícil decifrar pela expressão do príncipe, muito sério e composto, ou da princesa, com a habitual cara de brava. Mas não há quem chegue ao Rio de Janeiro e não se encante com o que vê, como os cariocas nunca se cansam de ouvir. A admiração começa logo na entrada da baía unanimemente considerada maravilhosa, pontilhada de ilhas e cercada de montanhas. Quando ouvem o nome da mais imponente, Pão de Açúcar, e a explicação (assim se chama o cone de açúcar que se retira das fôrmas usadas nos engenhos), todos concordam com a cabeça, sorriem e redobram os elogios. Embora já comece a correr o boato de que os portugueses não estão exatamente impressionados com a cidade em si, com suas casinhas modestas e ruas estreitas, onde nem andar de carruagem se pode. Está certo que o Rio não é nenhuma Paris – tem atualmente um décimo dos 600 000 habitantes da capital francesa. Mas oferece programas interessantes, como passear no jardim público à beira-mar, com seus quiosques, bancos de mármore, fontes e estátuas. Dá até para ir à noite, por causa das lanternas penduradas nas árvores.

Menos freqüentes e mais movimentados são os desfiles marítimos de navios enfeitados nas águas da baía, quase iguais aos de Veneza. Todo mundo sai para ver. Outra atração sazonal é a pesca da baleia. Na época em que elas aparecem por aqui, dezenas de barcos agindo coordenadamente as cercam, e muita gente acompanha a ação em terra. Um arpoador vai em pé na proa de cada barco para lançar o ferro pontiagudo. Por causa disso, já existe quem chame de ponta do arpoador uma das extremidades da selvagem e bela praia da freguesia de Copacabana. Há quem se compadeça dos animais, em especial quando, arpoados, jorram sangue e lutam bravamente pela vida. Recusam-se até a chamá-los de monstros marinhos. Para os espíritos mais sensíveis, o Rio oferece outras atrações. A Igreja da Glória provavelmente não se compara às catedrais européias, mas é cheia de graça, sem trocadilhos. Quem tem fôlego para subir o morro a pé é recompensado pela vista sublime. Para contemplar a cidade, o melhor é fazer outra escalada e chegar até a Matriz de São Sebastião, que recebeu o príncipe regente para o culto de ação de graças. Os recém-chegados precisam entender que o Rio não é pequeno – a paisagem natural a seu redor é que é enorme. O passeio mais rápido ao entorno da cidade logo os colocará no coração da mata luxuriante, com sua enorme variedade de pássaros, borboletas e macacos. Bem, eles logo descobrirão que é melhor não falar dos macacos. Das cobras, nem pensar.

Na condição de moradores da cidade que é a capital e também o porto mais movimentado do Brasil, os cariocas recebem mais informações do exterior e, com toda a justiça, querem ser considerados parte do mundo civilizado. Isso aumenta a expectativa pela chegada dos portugueses. Apesar das naturais resistências da colônia gigantesca, fadada a um destino maior, em relação à pequena e hoje alquebrada matriz, a transferência do príncipe regente e de toda a corte é reconhecida como um acontecimento capaz de provocar mudanças telúricas. A notícia chegou ao Rio há menos de dois meses, no dia 14 de janeiro, por rotas tortuosas (um barco que faz navegação de cabotagem pela costa brasileira ouviu de jangadeiros de Pernambuco que lá havia aportado um navio português avariado, o Minerva, que deveria preparar caminho na capital para a transferência da corte).

Devido à demora e ao inusitado da novidade, a burocracia local, comandada por Marcos de Noronha e Brito, o vice-rei, que por motivos óbvios deixou esse cargo, esfalfou-se nos preparativos. Agora chamado pelo título de família, o conde dos Arcos desocupou a própria casa, o Paço dos Vice-Reis, mais a vizinha Casa da Câmara e Cadeia. Aí se acomodaram o príncipe e a princesa (imagina-se seu desconforto – há anos não vivem juntos), seus filhos e centenas de damas e criados. Também requisitado, o convento das carmelitas abrigou a rainha Maria – mais calma, embora sempre tresloucada – e comitiva. Todos os edifícios foram reformados, caiados, pintados, forrados e munidos de passarelas de comunicação para que os fidalgos não ponham os pés na lama. De São Paulo e Minas Gerais vieram carregamentos de carnes, frutas, feijão, milho – esses dois últimos incomuns na dieta portuguesa. A série de festividades de boas-vindas vai até o dia 15, com a muito aguardada cerimônia do beija-mão. O Senado da Câmara do Rio de Janeiro consignou 4 contos de réis para as luminárias que decoraram o Largo do Paço no desembarque e outro tanto para bancar a iluminação em volta do agora palácio real, certo de que o momentoso evento entrará "nos anais da história portuguesa e na do gênero humano". Entre as medidas não tão populares, casas de padrão mais alto foram confiscadas para acomodar os figurões da corte – um PR (Príncipe Regente, ou, na versão popular, Ponha-se na Rua) pintado na fachada é o sinal para a família procurar outras acomodações. Proprietários abastados escondem sinais de riqueza e "empobrecem" de um dia para o outro, tentando escapar da ordem. Será um mau sinal se, para compensar, começarem a pensar em receber sinecuras do príncipe.

Passadas as festas, também será o caso de pensar quem vai pagar a conta dessa revoada de alguns milhares de pessoas – ninguém parou para contá-las direito –, entre nobres e plebeus, agora desprovidos de tudo. Novos edifícios terão de ser erguidos para alojar os órgãos públicos, e a própria família real precisará ser acomodada a contento. Em compensação, na área cultural o Rio de Janeiro com certeza vai se beneficiar tremendamente da presença da corte. Os livros da Biblioteca da Ajuda, esquecidos no cais de Lisboa no corre-corre da partida, já estão a caminho. As edições raras e outras preciosidades constituem um tesouro de conhecimento mais valioso do que qualquer bem material que a corte tenha trazido para o Brasil. Amante da música, o príncipe João não deixará de instalar aqui ao menos um teatro digno do nome. Causa ainda certa estranheza, num país que, para onde se olhe, é uma floresta só, o plano de criar um jardim botânico, um lugar onde se plantam árvores exóticas. Mas, se toda metrópole hoje tem o seu, o Rio de Janeiro também haverá de querer um. Dá até para sonhar com o tempo em que, além de lindo, o Rio será elegante, culto e cosmopolita. Somando a isso ruas limpas, governantes honestos, administradores competentes e funcionários impolutos, vai se tornar uma maravilha de cidade.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Euclides da Cunha - À margem dos sertões

Almir de Freitas
almirdefreitas@gmail.com
Historiador graduado pela faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da USP

Depois do dia 2 de dezembro de 1902, a vida de Euclides da Cunha não seria mais a mesma. Publicado nesse dia, Os Sertões alçaria o então militar reformado, jornalista, ensaísta, engenheiro de campo e funcionário público ao sucesso instantâneo. Escrito a partir da cobertura feita por ele da campanha de Canudos para o jornal O Estado de S. Paulo, o cartapácio de mais de 600 páginas teve os 1,2 mil exemplares esgotados rapidamente, ganhando elogios dos maiores críticos da época - gente como José Veríssimo, Silvio Romero e Araripe Jr. Menos de um ano depois, em 21 de setembro de 1903, Euclides foi eleito com folga para ocupar a cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras. Anos depois, Os Sertões inspiraria obras como A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, e Veredicto em Canudos, de um fascinado húngaro Sándor Márai, que leu o livro numa edição em inglês. "Da literatura brasileira, só conheço Euclides da Cunha", disse em certa ocasião o argentino Jorge Luis Borges.

Uma obra dessa magnitude, entretanto, pode às vezes se tornar um peso. Numa carta enviada ao jornalista uruguaio Agustín de Vedia, datada de 13 de outubro de 1908, Euclides assim se referia a Os Sertões: "O livro bárbaro da minha mocidade, monstruoso poema de brutalidade e de força", e "tão distante da maneira tranquila pela qual considero hoje a vida, que eu mesmo às vezes custo a entendê-lo. Em todo o caso é o primogênito do meu espírito, e há críticos atrevidos que afirmam ser o meu único livro... Será verdade? Repugna-me, entretanto, admitir que tenha chegado a um ponto culminante, restando o resto da vida para descê-lo." Euclides parecia ter noção da gravidade da anotação: em outra folha, burila e refaz o texto, trocando "críticos atrevidos" por "críticos audazes" e "repugna-me" por "custa-me".

A essa altura, já colecionava uma considerável produção como jornalista, reunida em dois volumes: Contrastes e Confrontos e Peru Versus Bolívia. No ano seguinte, sairia - já póstumo - À Margem da História. Uma produção que, somada a outros textos esparsos, incluindo crônica, poesia e correspondência, compõe mais da metade da recém-lançada, e atualizada, Euclides da Cunha - Obra Completa. Na edição, organizada por Paulo Roberto Pereira, é possível ter a dimensão da obra que Euclides construiu para além do "livro bárbaro" de sua mocidade. E talvez Euclides não gostasse, mas o fato é que toda a sua obra - anterior e posterior - está sempre margeando Os Sertões.

O poeta romântico

Como tantos de sua geração, Euclides começou sua carreira de escritor aventurando-se pelos versos. Escreveu seus primeiros poemas em um caderno com 17 anos, aos quais deu o título de Ondas. A partir de então, sua produção poética - publicada em periódicos - será irregular, incipiente e de qualidade discutível, mas muito reveladora do universo do autor. Espremido entre o naturalismo e o modernismo, Euclides costumava ser encaixado na turma do pré-modernismo, carregando ainda cacoetes poéticos do parnasianismo. Mas quem talvez dê chave definitiva para a compreensão da obra de Euclides é o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Francisco Foot Hardman. Ele viu em sua obra aspectos contraditórios de diversas escolas, mas com base no romantismo de tradição francesa, à maneira de Victor Hugo, que combina "dramatização da história" com "discurso socialmente empenhado". Nessa visão, a história seria uma "construção de ruínas", uma narrativa "dramática de brutalidade".

Em Mundos Extintos (1886), por exemplo, Euclides escreve:

"Morrem os mundos... Silenciosa e escura,

Eterna noite cinge-os. Mudas, frias,

Nas luminosas solidões da altura

Erguem-se, assim, necrópoles sombrias..."

Nessa "poética de extinção", na expressão de Hardman, Euclides prosseguiria até a sua obra-prima, levando a própria métrica. Num texto de 1977, presente na Fortuna Crítica da atual Obra Completa, o poeta e ensaísta Augusto de Campos retoma uma tese do crítico Guilherme de Almeida e afirma ter identificado em Os Sertões "500 decassílabos significativos, com predominância dos sáficos (acentuados na 4ª. e 8ª. sílabas) e heroicos (acentuados na 6ª.), e pouco mais de duas centenas de dodecassílabos". Ele mostra, por exemplo, que o romance começa com um decassílabo heroico ("O planalto central do Brasil desce...") e termina com um alexandrino ("... as linhas essenciais do crime e da loucura"). Embora por vezes o mecanismo de extrair versos de pedaços de prosa pareça um pouco forçado, a análise impressiona ao evidenciar a musicalidade das paisagens mais descritivas - marca da faceta realista-naturalista de Euclides - de Os Sertões.

Essa matriz romântica de origem francesa também acompanhará o republicano Euclides no seu percurso político, e desde o início. Em Ondas, Danton, Marat, Robespierre e Saint-Just, líderes da Revolução Francesa, dão título cada um a um poema. Não por acaso, muito adiante, em março de 1897 - já durante a República, mas antes de Euclides conhecer o que se passava no sertão da Bahia - ele chamará o Arraial de Canudos de "a Vendeia brasileira", referindo à província rebelada contra a Revolução Francesa em 1793.

O jornalista militante

Euclides tinha o temperamento explosivo - o que acabaria lhe custando a vida quando, em agosto de 1909, resolveu enfrentar em armas o cadete Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e seu irmão, Dinorah. Na juventude, esse temperamento - combinado com certa rebeldia romântica - já havia colocado Euclides em algumas enrascadas. Durante o Império, em 1888, o escritor - então cadete da Escola Militar da Praia Vermelha - foi proibido com outros colegas de assistir ao desembarque no porto do tribuno republicano José Lopes Trovão, que voltava da Europa. Como protesto, durante um desfile diante do ministro da guerra, Tomás Coelho, Euclides saiu da formação e, em vez de levantar seu sabre em saudação, tentou quebrá-lo no joelho; não conseguindo, atirou-o ao chão - o que provocaria sua expulsão do Exército. O episódio, contudo, chamou a atenção dos republicanos de São Paulo. Em parte por conta do incidente, Euclides foi convidado pelo jornalista Júlio Mesquita para escrever no seu jornal, O Estado de S. Paulo, então Província S. Paulo. Nos textos mais incendiários, Euclides assinava com o pseudônimo Proudhon - outra referência a um francês radical, Pierre-Joseph Proudhon, um nome histórico do chamado socialismo "utópico", que antecede o dito "científico", de Karl Marx.

Euclides, aliás, acabaria aderindo ao socialismo em sua progressiva desilusão com os rumos da República, instaurada em 15 de novembro e 1889. Em 1891, ele participou do contragolpe do marechal Floriano Peixoto contra o presidente Deodoro da Fonseca, que havia dissolvido o Congresso. Então reintegrado ao Exército, formou-se engenheiro militar e, como primeiro tenente, passou a trabalhar para a Federação. Mas - sempre rebelde - rompeu também com Floriano, refugiando-se novamente em São Paulo como engenheiro civil e, novamente, sob as graças de Júlio Mesquita. Justamente no jornal Estado de S. Paulo, em 1904, ele publicaria O Marechal de Ferro, perfil impiedoso de Floriano Peixoto, a quem descreve da seguinte maneira no dia 15 de novembro de 1889:

"(...) deselegantemente revestido de uma sobrecasaca militar folgada, cingida de um talim frouxo de onde pendia tristemente uma espada, olhava para tudo aquilo com uma serenidade imperturbável. E quando, algum tempo depois,
os triunfadores, ansiando pelo aplauso de plateia que não assistira ao drama, saíram pelas ruas principais do Rio - quem se retardasse no quartel-general, veria sair o mesmo homem, vestido à paisana, passo tranquilo e tardo, apertando entre o médio o índex um charuto consumido a meio, e seguindo isolado para outros rumos, impassível, indiferente, esquivo. E foi assim - esquivo, indiferente e impassível - que ele penetrou na história."

A essa altura, Euclides já sabia que a revolta de Canudos, esmagada em outubro de 1897, não se tratava de nenhuma Vendeia, e o que as tropas da República tinham cometido ali era, segundo suas próprias palavras, "um crime". Literariamente, mostrava o mesmo poder de observação - e descrição - exibido magistralmente em Os Sertões, e que marcariam sua curta trajetória posterior.

O ensaísta viajante

Euclides sabia, desde jovem, o que queria. Em uma carta a Reinaldo Porchat, em 1892, o recém-formado engenheiro militar se queixava da vida monótona. "Não dou para a vida sedentária, tenho alguma coisa de árabe - já vivo a idealizar uma vida mais movimentada, numa comissão qualquer arriscada, aí por estes sertões desertos e vastos de nossa terra, distraindo-me na convivência simples e feliz dos bugres". Utiliza aí já a palavra mágica - "sertões" -, e a cobertura em Canudos cumprira uma parte a esse destino. Mas não era suficiente. Em outra carta, enviada a Araripe Jr. em 1903, quando já desfrutava do sucesso de sua obra-prima, desabafava: "Shakespeare não faria o Hamlet se tivesse, em certos dias, de calcular momentos de flexão de uma viga metálica; nem Michelangelo talharia aquele estupendo Moisés, tão genialmente disforme, se tivesse de alinhar, de quando em vez, as parcelas aritmeticamente chatas de um orçamento. E eram gênios". Walnice Nogueira Galvão, professora da Universidade de São Paulo, anota que esse anseio pela viagem exótica está ligado ao componente passadista pertencente ao imaginário romântico - o mesmo da poesia e da ideologia política de Euclides.

Assim, no biênio 1904-1905, o escritor não deixaria escapar sua segunda grande oportunidade. Graças a uma indicação de José Veríssimo, foi nomeado chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, que, junto com uma equipe peruana, faria o levantamento cartográfico do rio Purus, na Amazônia. A ideia era que as duas delegações chegassem a um acordo para a delimitação de fronteiras entre os dois países, acabando com os conflitos na região. Ali, Euclides recolheria o material para o seu "segundo livro vingador", como diria mais tarde. Em textos entre o ensaio e a crônica, o escritor voltou a promover, como em Os Sertões, a união entre a observação científica da natureza e a gente do lugar - às vezes de maneira magnífica.

No famoso Judas-Ahsverus, texto que sairia no póstumo À Margem da História, em setembro de 1909, Euclides usa a lenda do judeu errante - condenado a vagar pela terra até o Juízo Final - para falar da condição dos seringueiros do Alto Purus. São sertanejos emigrados para a selva, onde vivem como escravos, "expatriados dentro de seu próprio país", esquecidos pelos homens e por Deus. Para eles, segundo o autor, só existe um único dia feliz: o Sábado de Aleluia. É quando, numa espécie de transe coletivo, constroem para em seguida despedaçar a tiros e pedradas uma legião de Judas feitos à sua própria feição, que descem o rio em jangadas de quatro paus.

"Às vezes o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as margens, traçando a espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nesses amplos recintos de águas mortas, rebalçadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se. Rodeiam-se em lentas e silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam então pela primeira vez os olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados e as estaturas rígidas."

Naquele cenário diferente, Euclides vê o mesmo "sertanejo forte" de Canudos, em luta contra a natureza e a história. Redescobriria um mundo "à margem da história" - a mesma talvez, em que Floriano ("esquivo, indiferente e impassível") havia penetrado; a mesma que era uma "construção em ruínas", da qual Canudos tinha sido, diante dos seus olhos, uma prova cabal. Tão definitiva que atrairia para a obra que gerou, Os Sertões, todo o engenho de um homem - quase da mesma maneira com que, no ponto em que o rio se alarga, um redemoinho atrai todos os Judas de olhares imóveis.

O legado de Euclides da Cunha

Walnice Nogueira Galvão
wngalvao@uol.com.br
Professora de teoria literária e literatura comparada da USP

Quando nos abalançamos a avaliar o legado de Euclides da Cunha, logo nos defrontam alguns tropeços, derivados da amplitude de seus interesses e da impermanência de suas atividades. Espírito irrequieto e índole aventuresca, embora nem sempre lembrados quando se trata desse autor, são todavia traços marcantes na conformação não só de seu temperamento como de sua obra.

Vivendo e morrendo durante a vigência da belle époque, um rápido relance de sua época pode ajudar a entendê-lo. Esse período, que recobre a virada de século até a guerra de 1914, foi assinalado entre nós por uma intensa galomania. Tudo aqui seguia então o modelo francês. A reforma Pereira Passos, que urbanizou e modernizou o Rio de Janeiro, capital do país, foi executada conforme o paradigma da reforma Haussmann, de Paris.

Largas avenidas de traçado retilíneo, interrompidas regularmente por uma praça de que irradiavam, com palacetes formando o casario de frente, forçaram a semelhança. Publicavam-se matérias em francês nos principais jornais e revistas. Grã-finos, artistas e intelectuais buscavam Paris com frequência, como era o caso de Olavo Bilac, entre tantos outros. Vinham de Paris as modas do vestuário, os hábitos da elegância, os costumes da sociabilidade, mas também maneiras de pensar, os padrões estéticos e as novidades da ciência.

O anseio de conhecer o Brasil

De toda essa francesice, Euclides iria divergir, juntamente com uns poucos contemporâneos. Fizera seus estudos na Escola Militar, uma das mais avançadas instituições de ensino que já houve no país. Muitos ministros e parlamentares continuavam a dar aulas ali enquanto atendiam a seus mandatos, o que evidencia o prestígio da escola. Ali também se originaram algumas mentes privilegiadas, como Benjamin Constant, que seria, imediatamente após a proclamação da República, o primeiro ministro da Guerra e, em seguida, da Educação, autor da reforma de ensino republicana, seu mestre desde o colegial.

Entre os colegas, caberia lembrar Cândido Mariano Rondon, criador do indigenismo e do Serviço de Proteção aos Índios, que comandou a instalação das linhas de telégrafo que uniram o sul ao norte do país, através dos sertões. O que havia de comum neles todos era o projeto de conhecer e dar a conhecer o Brasil, o engajamento e o senso de missão. Assim, voltaram as costas para a Europa e buscaram decididamente a hinterlância.

Em mais de uma ocasião Euclides, que já em sua poesia juvenil manifestava ansiar pelos sertões, embrenhou-se pelo país adentro. Deixaria a farda para ser engenheiro de obras públicas do estado de São Paulo, profissão que exerceu enquanto residia em cidadezinhas do interior. Seu mais importante livro resultaria de uma incursão ao sertão da Bahia, quando foi fazer a cobertura da guerra de Canudos.

E mesmo mais tarde, já famoso e membro eleito da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ainda viajou para a Amazônia, enfrentando as agruras de uma expedição que durou ao todo um ano e meio, após pleitear e obter junto ao barão do Rio Branco o cargo de presidente da comissão de reconhecimento do Alto Purus.

Euclides estava permanentemente descontente com sua situação atual e arrenegava dela, recomeçando o processo quando conseguia trocá-la por outra, para logo reiniciar as reclamações. É o que se pode observar nas tentativas malsucedidas de fazer carreira política ou de transferir-se para o magistério, algo que conseguiria apenas poucos meses antes de morrer.

Nota-se que o fio condutor de toda a sua obra, mais voltada para dentro do país do que para fora, tratado com constância, é o tema da viagem, em suas várias metamorfoses.

Pelo alcance, mas também pelo número de páginas que lhe deu mais espaço para desenvolver seus interesses, Os sertões é a obra em que seu talento culmina. Entretanto, não devem ficar na sombra os ensaios e artigos que escreveu ao longo da vida, intervindo constantemente no debate público: alguns são de fato notáveis.

Recolheu-os em Contrastes e confrontos e À margem da história. Nos dois volumes destacam-se os ensaios amazônicos, resultantes de sua excursão ao Alto Purus, em que produziu algumas das mais válidas reflexões que já se fizeram sobre a região, sua natureza e seus habitantes.

Diário de uma expedição

Foi integrado à última das quatro expedições da campanha de Canudos, na qualidade simultânea de enviado especial do jornal O Estado (então A Província) de S. Paulo e adido ao estado-maior do ministro da Guerra, que Euclides se tornaria testemunha ocular da campanha, enviando para o jornal a série de reportagens que levaria o título de "Diário de uma expedição".

O arraial calou-se, sem se render, a 5 de outubro de 1897, após ser incinerado mediante o lançamento de querosene e bombas de dinamite. Os últimos resistentes, tombados numa cova que servia de trincheira no largo das igrejas, não eram mais que quatro, dos quais dois homens, um velho e um menino. Sempre rememorado, esse final inglório tornou-se representativo daquela que foi uma guerra de extermínio contra uma população indefesa. Da experiência, resultaria seu livro mais reputado. Mas antes Euclides dedica-se a acumular uma notável gama de saberes para escrever Os sertões, consagrado ao resgate da memória daqueles que pereceram defendendo Canudos.

Sua indagação fundamental é esta: por que existiria esse tipo de fenômeno num país que acabara de dar dois gigantescos passos na direção do progresso, emancipando os escravos e derrubando a monarquia? Na ânsia de encontrar respostas, Euclides procederia a estudos sobre "A terra", que aparecem na primeira parte, interessado que ficou pela formação geológica da região, detendo-se na flora e na fauna, nos determinantes da seca endêmica naquelas paragens, na aridez de deserto que ali reina.

Na segunda parte, "O homem", o autor estuda as correntes de povoamento e as teorias da miscigenação para compreender a genealogia do sertanejo e analisar o conjunto de fatores que deu origem a um líder extraordinário como Antonio Conselheiro. O restante do livro é dedicado à luta, com base no que viu e anotou em suas cadernetas de campo, nas reportagens que fez como correspondente, mas também em materiais como o noticiário de outros jornais, as ordens do dia dos militares, os relatórios de governo.

Torturado, emocional, quase sempre grandiloquente, não é de leitura amena e reboa como o discurso de um tribuno. A lição principal que Euclides nos lega no que concerne a uma guerra fratricida e desnecessária é a admiração pelo esforço desenvolvido por populações carentes de tudo para criar novas formas de vida em comum. De um modo ou de outro, engendraram uma estrutura alternativa de poder que as subtraía ao mando de fazendeiros, padres e delegados de polícia - que encarnavam as autoridades máximas no sertão, representando a propriedade, a Igreja e as forças da repressão.

Com a guerra de Canudos, completa-se o processo de consolidação do regime republicano. Graças ao sacrifício dos conselheiristas, exorcizou-se o espectro de uma eventual restauração monárquica. O papel que esse livro teve na história e na cultura brasileira foi fundamental. A opinião do país estava abalada por ter incorrido num equívoco, escancarando sua sanha sanguinária contra um punhado de pobres, que não ameaçavam ninguém.

A manipulação a que fora sujeita, por parte das autoridades e dos jornais, ficou evidente, bem como o triste papel do Exército. As manifestações de desagravo aos canudenses espalharam-se pelo país e pelos setores sociais, mesmo aqueles inicialmente mais vociferantes.

De todo esse movimento da consciência nacional fez-se a súmula em Os sertões, que funcionou como um vasto mea culpa. Seu êxito imediato e duradouro mostra como os leitores se identificaram com a busca angustiosa de respostas e com o resgate do heroísmo dos canudenses. O livro, além da mais alta literatura, erigiu-se em monumento consagrado à memória de Canudos. Ainda hoje, constitui a peça maior do legado do escritor, na beleza de sua escrita, nos meandros de seus raciocínios e na paixão que expressa.