quarta-feira, 31 de março de 2010

A maçã que mudou o mundo





Laura Ming
lauraming@abril.com.br
Jornalista

Manuscrito do século XVIII, agora publicado na internet, conta como Isaac Newton começou a elaborar a lei da gravidade ao observar uma macieira nos jardins de sua casa. Ao contrário da lenda, a fruta não caiu na sua cabeça


"Por que a maçã sempre cai perpendicularmente ao chão?, perguntou-se Newton. Por que ela não se move para os lados, ou para cima, mas sempre em direção ao centro da Terra? Certamente, porque a Terra a atrai. Tem de haver uma força de atração envolvida nisso." Trecho do manuscrito de William Stukeley

Numa tarde de primavera em 1726, um ano antes de sua morte, o físico inglês Isaac Newton sentou-se no jardim para tomar chá com um amigo, o antiquário William Stukeley, que se tornaria seu biógrafo. Apontando para as macieiras em volta, o pai da ciência moderna relatou como tiveram início as investigações que o levaram a formular a lei da gravidade, a explicar o movimento dos planetas e, em última análise, a finalmente dar um sentido a tudo o que acontece no universo. Newton disse-lhe que tudo começou quando viu uma maçã cair da árvore, o que o levou a perguntar: por que a maçã não se move para os lados ou para cima? Só pode ser porque uma força a atrai para a Terra, ele concluiu. A descrição desse diálogo consta do manuscrito elaborado por Stukeley em 1752, Memoirs of Sir Isaac Newton’s Life (Memórias da Vida de Sir Isaac Newton), que desde a semana passada pode ser lido na internet.

O documento encontra-se guardado na Royal Society, a lendária associação de cientistas ingleses. Neste ano, ela completa 350 anos de existência, e, para celebrar a data, a entidade decidiu publicar em seu site vários documentos famosos. Além do manuscrito de Stukeley, podem ser lidos no site originais do filósofo inglês John Locke, entre outros documentos. Todos esses textos podem ser encontrados em edições impressas - mas a leitura do original, com a letra do autor, tem especial sabor. "O episódio de Newton com a maçã é um dos mais famosos da ciência, por isso resolvemos publicá-lo", disse Keith Moore, diretor da biblioteca da Royal Society.

A leitura de William Stukeley serve para desmentir duas falácias comumente associadas ao episódio de New-ton com a maçã. O primeiro é que a maçã teria caído sobre sua cabeça. Essa informação sempre rendeu ilustrações e charges divertidas, mas não é verdadeira. A segunda é que, diante da maçã caindo da árvore, Newton teria tido um estalo genial e formulado a lei da gravitação universal. Ele ainda levaria vinte anos se debruçando sobre seus estudos até publicá-la em sua obra mais conhecida e mais notável, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, conhecida pela abreviatura Principia. A história da ciência é rica em episódios nebulosos, mais conhecidos por versões deturpadas ou cuja veracidade é duvidosa (veja o quadro).

Foi justamente por meio da Royal Society que Isaac Newton publicou a Principia. Na obra, ele disseca a primeira lei verdadeiramente universal da natureza produzida pela ciência. New-ton explica que existe uma força de atração entre todos os corpos do universo, relacionada à sua massa e à distância entre eles. Isso explica por que os planetas giram em torno do Sol e a Lua gira em torno da Terra. É também por isso que os homens e os animais não são lançados para o espaço, mesmo com a Terra girando a mais de 1 600 quilômetros por hora na região do Equador (essa velocidade diminui à medida que se aproximam os polos). A lei explica ainda os movimentos das marés, resultado da atração da massa lunar sobre as águas dos oceanos. Além disso, a Principia contém os fundamentos da mecânica clássica:

• Lei da inércia - Todo objeto tende a ficar parado ou em movimento uniforme, a não ser que uma força aja sobre ele.

• Princípio da dinâmica - A aceleração de um objeto é proporcional à força aplicada sobre ele.

• Princípio da ação e reação - A toda ação corresponde uma reação, de mesma intensidade, mas em sentido oposto.

A publicação da Principia rendeu a Newton fama imediata. Suas teorias forneciam explicações para um conjunto tão grande de fenômenos, tanto no mundo palpável do dia a dia quanto nas esferas celestes, que mudaram a compreensão que as pessoas tinham do mundo à sua volta. Embora festejado, Newton manteve o comportamento excêntrico que sempre o caracterizou. Solitário, com fama de teimoso e mal-humorado, colecionou uma série de extravagâncias. Era religioso, mas pertencia a uma seita herética chamada arianismo, que negava a Santíssima Trindade. Em 1936, o economista John Maynard Keynes arrebatou num leilão um maço de trabalhos de Newton e constatou, surpreso, que eles relatavam experiências no campo da alquimia - tentativas de transformar metais comuns em metais preciosos. Nenhuma dessas esquisitices apaga o brilho formidável do cientista que mudou a percepção da humanidade a respeito do mundo - a partir de uma simples maçã.

quinta-feira, 25 de março de 2010

O circo, as sombras e os macacos

Rodrigo C. Vargas

A contradição não pode ser confundida com mudança de opinião. Contradizer é dizer que o vermelho é azul para o lado esquerdo e verde para o lado direito. Sempre questionei o modelo Reality Show e somente agora compreendi um dos mais vistos abaixo da linha do Equador.

O Programa Big Brother, transmitido no Brasil pela Rede Globo, não se encaixa no modelo de escrita proposto por George Orwell como muitos desejam, mas no fluxo humano-caótico rodriguiano. O grande irmão pós-moderno não tem nada de ficcional. É pura verdade, carne. Em 1984, obra prima de Orwell e que inspirou o nome do programa de tevê, o autor levanta uma questão que fazia sentido para a época - ainda sob o trauma da Segunda Grande Guerra - a preocupação de como o estadismo-tecnológico poderia levar a um autoritarismo ainda mais rigoroso, vigiado e sínico.

Desde então, o mundo viveu profundas transformações com o aprimoramento da propaganda, as manipulações da Guerra Fria, a revolução comportamental dos anos de 1960, a mobilidade estática da internet e o choque da queda do World Trade Center. As preocupações passaram de ordem coletiva para individual, privada. O Big Brother é o extrato de nosso tempo, é A vida como ela é cheia de, agora sim, contradições.

O que eu não entendo é por que tem gente que assiste e prefere dizer que não. Seria medo de ser taxado como parte do show? O Big Brother não é uma propaganda acariciando o cognitivo nem muito menos uma novela intencionalmente escrita. São pessoas comuns e nada mais belo que o ordinário. Não seria bom ver confinados, por pelo menos três meses, figuras como Joaquim Roriz, José Sarney, Fernando Ribas Carli Filho, Paulo Maluf e Edmar Moreira? Alguns discordam, acham que tudo não passa de vouyerísmo.

Tem sempre aquele que procura ascender a sua própria fogueira inquisitória. No caso, uma espécie de discurso corrosivo contra a sexualidade a flor da pele ou o abuso do álcool. Moralismo mofado. Não somos uma sociedade hedonista, dependente química e vazia espiritualmente? Todo esse lamento puritano me remete ao pensamento junguiano que confronta o Real e o Ideal. Para Jung é preciso comer no chão, sem talheres, para lembrarmos quem somos.

Nada dimensiona melhor o mundo em que vivemos. Tanto que as frases “estou tão entediado que vou até ler um livro” e “ele merece voltar (na próxima vida) como Judas, para levar umas pauladas” ficam em segundo plano na hora de discutir o que acontece lá dentro da casa mais vigiada do país. O mais importante é saber por que um gay beijou uma garota na boca. Essa é a realidade construída por nós, subsidiada por convenções como o suicídio da crítica, o culto a celebridade, o renascimento cotidiano do consumo, a exploração do corpo e a criminalização das minorias. A verdade é algo discutido há pelo menos quatro mil anos e a definição que mais me agrada é a que diz que é a ilusão dos sentidos. Ta aí! Somos todos iludidos. Assim fica mais fácil digerir.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Um mistério no centro da Terra

Leandro Narloch
leandrofn@bol.com.br
Jornalista

Pesquisa americana que sugere a existência de água nas profundezas do planeta parece nascida de uma das aventuras fantásticas de Júlio Verne

Em Viagem ao Centro da Terra, o clássico de Júlio Verne, um grupo de aventureiros desce por uma fenda na crosta terrestre e encontra um mundo inteiramente novo, dentro de um espaço oco existente no centro do planeta. Nesse universo subterrâneo há ilhas, um oceano e até um sistema misterioso de iluminação. O francês Verne, que morreu em 1905, escreveu sobre viagens ao fundo do mar, à Lua e pelos ares muito antes que o submarino moderno, o foguete e o avião fossem inventados. Agora parece que ele também estava correto, pelo menos em parte, sobre a existência de um mar no interior da Terra. Um estudo produzido por cientistas da Universidade Estadual do Oregon, nos Estados Unidos, divulgado na quinta-feira passada, sugere a existência de grandes quantidades de água entre 250 e 650 quilômetros abaixo da crosta terrestre. Não são lagos nem cascatas encantadoras como os da ficção científica de Verne. Mas, de qualquer forma, a pesquisa revela a presença de água em profundidades antes inimagináveis.

O objetivo dos oceanógrafos era fazer uma análise inédita da condutividade elétrica do manto terrestre, em profundidades que chegaram a 1 600 quilômetros. O manto é a camada viscosa, com quase 3 000 quilômetros de espessura, que separa a superfície do núcleo sólido da Terra. O estudo mediu a condutividade em 59 pontos do planeta. Percebeu-se então que em certas partes do manto a capacidade de conduzir energia é dez vezes maior do que em outras áreas. "É provável que haja água no interior das rochas, já que ela é um ótimo condutor de eletricidade", disse o americano Adam Schultz, geólogo e um dos autores da pesquisa.

A explicação para a existência dessa umidade está relacionada ao movimento das placas tectônicas, os blocos rígidos que sustentam a superfície da Terra. As placas se moveram e se chocaram, separando os continentes, formando cordilheiras e áreas de subducção – quando uma placa empurra outra para baixo. A placa que afunda leva para as profundezas elementos da superfície, como a umidade e até mesmo água do mar. A água só é liberada se a placa tectônica derreter, formando o magma, as rochas incandescentes que alimentam vulcões. Se isso não acontecer, ela permanecerá entre as rochas.

No mapa-múndi criado pelos pesquisadores, as áreas que abrigariam água nas profundezas são justamente as repletas de vulcões e terremotos, como a costa oeste americana, o norte do Oceano Pacífico e o Japão. "Pensávamos que havia perto de um centésimo de água dentro das rochas do manto. Uma condutividade elétrica tão alta sugere que a quantidade de água possa ser dez vezes maior", diz o geofísico Marcelo Assumpção, da Universidade de São Paulo. Os pesquisadores não conseguem determinar o tamanho das porções de água nem a forma que ela teria. Mas, devido às elevadas pressão e temperatura, dificilmente permaneceria em forma líquida. A presença de água é a explicação mais fascinante para a alta condutividade dessas regiões, mas não é a única possível. O manto terrestre é uma mistura heterogênea de rochas pastosas, formada por minerais diferentes. Em áreas com maior presença de carbono, a condutividade elétrica é tão alta quanto em rochas úmidas. Como Júlio Verne mostrou, o centro da Terra é repleto de mistérios.

Oceanos submersos

Os pontos brancos e verdes indicam as 59 regiões do planeta onde os pesquisadores da Universidade Estadual de Oregon mediram a condutividade elétrica do manto terrestre. As áreas em laranja do mapa são as que têm condutividade elétrica mais alta. Elas abrigariam água entre 250 e 650 quilômetros abaixo do fundo do mar. A pesquisa foi feita com uma espécie de tomografia do campo magnético até a profundidade de 1 600 quilômetros. Para evitar interferências, o estudo evitou medições perto dos polos magnéticos da Terra


sábado, 20 de março de 2010

"Que terra infestada!"

Carlos Graieb
cgraieb@abril.com.br
Jornalista

Gógol queria um humor "construtivo", mas era bom mesmo em destruir a pose dos hipócritas e dos corruptos

A palavra russa póshlost não tem equivalente exato em português – ou em qualquer outra língua. No Brasil, no entanto, não é difícil compreender do que se trata. Basta olhar para os políticos com propina enfiada na meia ou na cueca. A vulgaridade, a indecência, a hipocrisia desses personagens – tudo isso junto, enrolado em um novelo, constitui o póshlost. Dos grandes escritores russos, o mais associado ao combate a essa praga é Nikolai Gógol (1809-1852). Sua arma é o humor.

Apropriadamente nascido num 1º de abril, e dono de um célebre nariz pontudo (tão pontudo que ele era capaz de tocá-lo com o lábio inferior), Gógol foi, nas palavras de seu conterrâneo e discípulo Vladimir Nabokov, "o mais singular poeta-prosador que a Rússia já produziu". Sua obra é compacta. Há um punhado de contos, entre os quais o mais célebre é O Capote, sobre um pequeno funcionário mofino e de "cor hemorroidal", que definha, e por fim se transforma em fantasma, depois que o sobretudo em que gastou todas as suas economias lhe é roubado. Há um único romance, a obra-prima Almas Mortas, sobre o patife Chichikov, que percorre o interior da Rússia com o plano de lucrar com um negócio absurdo – a compra de servos mortos. E há as cinco peças que compõem o volume agora lançado no Brasil. Apenas uma é bem conhecida: a comédia O Inspetor Geral. Os Jogadores e O Casamento são igualmente comédias, ao passo que Saída do Teatro e Desenlace de O Inspetor Geral são curiosas reflexões sobre o teatro e a serventia, por assim dizer existencial, do riso.

O Inspetor Geral e Os Jogadores são povoadas de corruptos e escroques. Na primeira, um vilarejo inteiro confunde Klestákov, um jovem estúpido, com um emissário do governo. Um a um, os luminares do lugar lhe oferecem suborno para que ele faça vista grossa aos seus "pecadilhos". Os Jogadores se passa numa hospedaria na qual se encontram vários homens que vivem, todos eles, pela lei da trapaça. Nenhuma das peças tem um único personagem positivo. A frase de um dos anti-heróis de Os Jogadores descreve bem o mundo onde se movem esses personagens: "Que terra infestada!". Quanto a O Casamento, seus protagonistas são dois homens que, ambos patéticos, são, no entanto, o negativo um do outro. Ao cortejar a mesma mulher, eles transformam a própria ideia de amor em algo grotesco.

As três comédias de Gógol dão vazão a um humor intensamente corrosivo, ancorado não só nas peripécias do enredo, mas numa linguagem repleta torções e trocadilhos. ("Permita-me observar que eu... até certo ponto... sou casada", diz a mulher do prefeito a Klestákov). Ao longo da vida, o próprio Gógol nunca se sentiu muito confortável com as implicações mais radicais de seu humor. Assim, escreveu Saída do Teatro e Desenlace de O Inspetor Geral, nos quais tenta propor uma teoria construtiva ou edificante do riso. Esse último texto, em especial, ele desejou que fosse encenado em seguida a cada apresentação de O Inspetor Geral – pedido nunca atendido. Nele, Gógol sugere que os personagens da peça sejam vistos como paixões ruins, abrigadas no peito de cada pessoa. Haveria um meio para expulsá-las: "Com o riso, temido por nossas paixões mais mesquinhas". Há diversas razões possíveis para que ele tenha formulado essas ideias – do medo da censura e da rejeição do público às preocupações religiosas. Entre os que mais se opuseram à transformação de O Inspetor Geral numa espécie de alegoria, estava um amigo de Gógol, o ator Chtchépkin. "Não me faça alusões de que eles não são funcionários, mas nossas próprias paixões. São gente de verdade, estão vivos." Não é difícil simpatizar com a opinião de Chtchépkin. Sobretudo quando se olha em volta e se vê tanta gente que merece, de fato, o riso demolidor de Gógol.

quinta-feira, 18 de março de 2010

O que Glauco não viu

Rodrigo C. Vargas

No jornalismo o mecanismo que define o que vai ser publicado/veiculado é chamado de Gatekeeping. O Gatekeeper é o responsável por escolher e elaborar critérios de edição como o fluxo do texto, a melhor imagem e os cortes nas falas. A repercussão do assassinato do cartunista Glauco Villas-Boas chama atenção para o ponto óbvio dessa prática e pouco discutido, a presença humana na condução desse processo passivo.

Busca-se no jornalismo e mais ainda no telejornalismo (confronto de imagens) um distanciamento frenético do erro, estabelecido por uma divinização humana, inatingível e inútil.

Como em outras ocasiões, todas as matérias sobre o crime recaíram no erro íntimo de pré-julgar, causado pela presença de um objeto de analise distante, desconhecido e no caso uma religião não-católica. Quando o editor (gatekeeper) atua, junto está as formações religiosa, política e social. Tudo isso é somado ao processo que recebe influência mesmo que inconscientemente e se transforma num circulo de orações particulares.

A aparente segurança na peça jornalística, neste caso, esconde no fundo uma fraqueza pertencente não apenas aos jornalistas, mas a todos os que desconhecem a existência do outro. Isso fica ainda mais claro quando se põe sobre a mesa a cadência das reportagens que relacionam o assassino transtornado à igreja Céu de Maria, fundada por Glauco e que tem como ritual o consumo do santo daime. A inquisição midiática chega ao ponto de convocar especialistas, um exército de psiquiatras e pesquisadores apontando o dedo sempre na mesma direção, a bebida alucinógena.

A mídia no Brasil mantém um sistema de analise que criminaliza tudo aquilo que convém. O despreparo de alguns jornalistas profissionais ao invés de solucionar a problemática (formalizada neste caso pelo crime) semeia outro problema de natureza caótica, ao eliminar o estranho (o outro) através do rebaixamento, da punição. O Dramaturgo francês Antonin Artaud demonstra como essa ação pode ser encontrada na dança das cores:

“(...)se achamos que os negros cheiram mal, ignoramos que para tudo aquilo que não é Europa somos nós, brancos, que cheiramos mal. E diria mesmo que exalamos um odor branco. Assim como o ferro aquecido ao branco, pode-se dizer que tudo que é excessivo é branco; e para um asiático a cor branca tornou-se a insígnia da mais extremada decomposição”.

É preciso cuidado ao relacionar evidências para não dar espaço ao subjetivismo demagógico. No caso da morte de Glauco o resultado é simples, o morto deixa de ser a vítima e passa a ser o vilão, ou que resultado pode se estabelecer numa lógica que liga uma bebida que entorpece a um assassino entorpecido?

sábado, 13 de março de 2010

Da lama ao groove, do groove ao mundo

Tiago Ferreira da Silva
tiagoferdasilva@gmail.com
Jornalista

Quando Chico Science lançou Da Lama ao Caos, junto com a Nação Zumbi, conseguiu realizar a profecia da primeira frase do álbum: "Modernizar o passado é uma evolução musical". O trânsito entre a futura geração cibernética e o passado atrelado às raízes nordestinas - que vão de Luiz Gonzaga à Lampião -- emergem numa cena que, dentre os muitos tiros objetivos (e certeiros) que disparou, teve o principal encargo de estampar ao mundo a decadência social que estava disseminada na capital pernambucana, Recife.

Só que nada dessa aversão se restringiria ao regionalismo. Science tomou parte dos jargões e sotaque pernambucanos com uma intensidade tão tocante, que quando o ouvinte ousa cantar junto às canções, acaba pegando aquela fala arrastada, típica de Pernambuco. Talvez a questão linguística de Chico & Nação tenha sido a chave para que a existência de um Brasil independente do eixo Rio-SP se transpusesse numa outra vertente lírica, enquadrada no quesito de música popular e, ao mesmo tempo, erudita.

Erudita porque faz um revisionismo da cena pernambucana e está imbuído de uma crítica sócio-econômica que põe em xeque o papel fortalecedor da palavra "Cidade". Para certificar, basta escutar a faixa "Banditismo Por Uma Questão de Classe": "E quem era inocente hoje já virou bandido / Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido / Banditismo por pura maldade / Banditismo por necessidade / Banditismo por uma questão de classe". Chico analisa que a questão social interfere muito mais no cotidiano do cidadão quando ele está inserido na cadeia alimentar do capitalismo. Por exemplo, o cara vê um carrão importado estacionado na praia de Boa Viagem e quer o mesmo pra ele, pois está cansado de ser oprimido e arremessado pra baixo. Todavia, não é a necessidade que fala mais alto. É a tal da posição na sociedade. Era um clamor parecido com o que Mano Brown vociferava nos Racionais, só que analisado sob uma visão de terceira pessoa, como se Chico Science estivesse exercendo a arte de seu sobrenome. Já Brown toma parte de um discurso empírico, um ato que está intrínseco àquilo que ele vivenciou em pele, carne e osso.

Chico joga Recife pro fundo do mangue quando associa sua atual (sim, atual!) industrialização com um negro passado de exploração, legado da invasão holandesa. Foi uma batalha mal sucedida de tentar erguer uma metrópole que caminhasse nos moldes das exigências capitalistas, separando drasticamente as minorias detentoras do poder e a maioria grotesca de pobres e miseráveis. Aqui, deve-se levar em conta que Recife, antes da instauração da ditadura militar, era praticamente considerado o terceiro coração industrial do país. Com Castello Branco no poder, todo o investimento foi centralizado nas principais cidades do Sudeste, e a trajetória econômica de Recife acabou ficando estagnada, dando lugar a uma corrosão que a transformou numa das piores cidades para se morar. No manifesto "Caranguejos com Cérebro", elaborado pelo jornalista Renato Lins e o compositor Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A, a capital pernambucana é descrita da seguinte maneira:

"Após a expulsão dos holandeses no século XVII a (ex) cidade `maurícia` passou a crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais. Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de `progresso`, que elevou a cidade ao posto de metrópole do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade. (...) Nos últimos trinta anos a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da `metrópole`, só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano"

Apropriando-se do termo `caranguejo` para revelar a cena do `mangue`, Science e os pernambucanos que formavam essa cena, da qual incluem-se o músico Zero Quatro e o jornalista Renato L., costumavam se encontrar nos mesmos lugares, onde uma galera seleta discutia tudo quanto fosse possível relacionado à música. Em suas experimentações, Science fez uma mistura do vocal rápido e estilhaçado do hip hop com as batidas do maracatu, a percussão do coco, um pouco do regionalismo do frevo e a guitarra elétrica do rock. Todo esse caldo instrumental era calcado pela distopia que o princípio de `progresso` havia transfigurado a cidade de Recife. Chico Science vivenciou essa abordagem ao longo de seus 30 anos de vida, passando por uma infância sem muitos recursos financeiros na periferia da cidade de Olinda. Desde os 14, frequentava os bailes funk da época, regados ao som dançante de James Brown e Grandmaster Flash -- sempre escondido dos pais, é claro.

Chico passou por muitas experiências antes de formar o Nação Zumbi. Em 1987, quando já travava relações musicais com Jorge Du Peixe (que tocava alfaia e agora é o vocalista da NZ), uniu-se a Dr. Mabuse (alter-ego de José Carlos Arcoverde) e fundou o Bom Tom Rádio - que durou até 1990 -- focando em uma estética hip hop misturada ao dub, soul e psicodelia. A banda se inspirou nos DJ`s jamaicanos de jungle, que exploravam o ritmo acelerado de baixo e bateria entre os anos 70-80; e nos ritmos do breakbeat e do dancehall,que executavam letras de rap durante os scratches e a rápida união entre baixo/bateria. O domínio dessa técnica aterrissou na América do Norte e recebeu um outro tratamento, do qual hoje denomina-se drum`n bass. Para reproduzir as remixagens, Mabuse assumia o baixo, Du Peixe a bateria e Science comandava, ao mesmo tempo, vocais e pick ups. Vale lembrar que nessa época a alcunha de Science ainda não lhe era atribuída; Francisco de Assis França ainda era Chico Vulgo.

Nas andanças do Bom Tom Rádio, Chico fazia o máximo para incorporar ritmos que supostamente tivessem alguma combinação, misturando tudo quanto fosse possível para atingir a batida perfeita. Influenciado por Afrika Bambaataa, o pioneiro do hip hop, ele queria resgatar as raízes dos sons dançantes e condensá-las a um liquidificador musical que realçasse o poder dos infortúnios de suas letras. Looking For A Perfect Beat, de Bambaataa, é tido como grande referência para o primeiro episódio do manguebeat. Tamanha obsessão, tamanha veemência pela batida, enchia aqueles músicos que tocavam com Chico de curiosidade. Foi a partir daí que Renato L. apelidou Chico Vulgo de Chico Science, por ser um `cientista da música`, um ávido pela união perfeita de sons.

O passo decisivo para a formação do Nação Zumbi veio quando Chico Science conheceu o Lamento Negro, um bloco de percussionistas que fazia parte do centro comunitário "Daruê Malungo", na periferia recifense. Era um grupo de negros que tocava com tanta energia, que influenciaria Science a ponto de incorporar à sua receita toda essa vibração eufórica e poderosa. Em 1991, quando fazia parte do Loustal, grupo que já contava com Dengue no baixo, Science chamou os membros de sua banda e batizou a união de `Chico Science e Lamento Negro`, trazendo Gilmar Bola 8 e Gira para tocar os tambores e alfaias. O nome Nação Zumbi veio novamente da referência de Afrikaa Bambaataa: Zulu Nation era um projeto do DJ que unia os preceitos que deveriam formular a cena do hip hop: paz, amor, união e diversão.

A formação do Chico Science & Nação Zumbi, que gravaria o álbum Da Lama Ao Caos, era de: Chico Science nos vocais; Lúcio Maia nas guitarras; Alexandre Dengue no baixo; Toca Ogam na percussão e nos efeitos; Canhoto tocando caixa (que ficaria pouco tempo, pois logo sairia do grupo e daria lugar à Pupillo); Gira, Gilmar Bola 8 e Jorge Du Peixe nas alfaias e tambores. E foi justamente no CSNZ que Chico pôde por em prática todos os ritmos de sua influência - ciranda, maracatu, frevo, rock (com Lúcio), funk, hip hop, dub e música eletrônica -- munidos com o peso dos tambores. Daí nascia o principal grupo da cena manguebit.

"A Cidade", conhecida faixa de Da Lama ao Caos, foi escrita ainda nos tempos do Bom Tom Rádio. Segundo o estudo "Do Tédio Ao Caos; Do Caos À Lama: os primeiros capítulos da cena musical mangue", elaborado por Getúlio Ribeiro, a versão cantada pelo primeiro grupo de Science era diferente da atual. "A versão do Bom Tom Rádio, por sua vez, traz um arranjo bem mais enxuto, composto apenas por bateria, baixo, scratchs e vocais. Nesta gravação, a música é basicamente um funk 4/4 executado pelo baixo e pela bateria, com efeitos de scratch apenas no início e no final da peça, o que provavelmente se deve ao fato de Chico, que fazia os scratchs, ter de dividir as suas funções entre os efeitos e os vocais".

Junto com o Nação Zumbi, "A Cidade" ganha um tratamento mais multifacetado. A faixa é unida ao coco, maracatu e à guitarra elétrica de Lúcio Maia. Nela, mais uma vez o antagonismo entre a história de exploração e a construção de um espaço decadente com o viés da industrialização, constitui a base do conceito de cidade. "O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas / Que cresceram com a força de pedreiros suicidas / Cavaleiros circulam vigiando as pessoas / Não importa se são ruins, nem importa se são boas". A teoria marxista de que o giro econômico é a ideologia perfeita de crescimento para os detentores do poder, atinge o grau máximo nessa crítica de Chico Science. Isso porque se relaciona o sertão, as pequenas cidades rurais e as regiões da mata do Pernambuco ao espectro do atraso, onde as oportunidades de se ganhar dinheiro são dissipadas pelo baixo investimento industrial nessas áreas. E, para suprir essa carência, "a cidade se apresenta centro das ambições".

Apropriar-se do termo `mangue` possibilita navegar em toda exclusão que o conceito de capitalismo massacra nas grandes cidades. Enquanto os ricos vão ficando cada vez mais ricos, o mangue, dependência da capital pernambucana, é estilhaçado, jogado de lado, esquecido. Em "Rios, Pontes & Overdrives", escrita em parceria com Zero Quatro, Science trabalha essa dualidade do atrasado com o evoluído, através de um contorno na problemática social que impede a integração destes dois conceitos incompatíveis. E é justamente essa incompatibilidade que transformou Recife "na quarta pior cidade do mundo", nos anos 90. "E a lama come mocambo e no mocambo tem molambo / E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia / O carro passou por cima e o molambo ficou lá". Enquanto mocambo (terra de assentamento dos quilombolas) e molambo (roupa velha) estão relacionados à pobreza, o carro, sinônimo de industrialização, atropela casualmente, como se fosse uma cena comum à cadeia social excluir e passar por cima daquele que não joga o jogo disputado do capitalismo.

Na canção "A Praieira", Chico rememora a cultura popular que está atrelada à cidade litorânea de Recife e Olinda: a ciranda. Em uma roda descompromissada, geralmente na beira da praia ou em grandes praças, um grupo de pessoas executa individualmente os passos que sabe fazer, ritmados a uma canção lenta que pode ser acompanhada por todos os integrantes. A parte instrumental fica por conta da zabumba, o ganzá, que é um tipo de chocalho metálico, e o maracaxá, outro chocalho só que mais rústico, normalmente utilizado em rituais de candomblé. A clássica frase "Uma cerveja antes do almoço é muito bom / Pra ficar pensando melhor" soa como o estímulo de um velho revolucionário que ainda assim valoriza suas raízes culturais. Nesta canção, os bumbos batidos com força, a onipresença do maracaxá e o riff de Lúcio Maia acompanham o simulacro de Chico Science, que canta como se realmente estivesse numa roda: "Vai pisando-te, segurando-te, arrastando-te, arrastando, arrastando, é praieira, é praieira, é praieira". Esse trecho vem com um falsete que remonta à efetiva participação do vocalista numa ciranda enquanto cantava nos estúdios.

O ano era 1994, pré-história da internet aqui no país; mas os bits do computador já se faziam presentes no cenário pernambucano. A incorporação de "bit", junto ao mangue, se dá não apenas porque eles se autoproclamavam caranguejos com cérebro -- unindo a capacidade de recriar o imaginário com o computador ao intelecto e irreverência dos `mangueboys`. Além disso, o `manguebit` permite com toda liberdade o trocadilho de `manguebeat`, justamente pelo ideário de ousadia. Porque muito além de incorporar informação e evolução, que sempre estiveram arraigadas no conceito de tecnologia, os garotos do mangue foram responsáveis por toda a junção de elementos musicais e regionais que repercutiram no som de Da Lama Ao Caos. Isso justifica o fato dos mangueboys e manguegirls serem "indivíduos interessados em quadrinhos, TV interativa, anti-psiquiatria, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane, acaso, sexo não virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da química aplicada no terreno da alteração e expansão da consciência".

Paradoxalmente, o conceito de tecnologia que eles usam como apoio à disseminação das ideias, é passível a um deslize de conduta. "Computadores Fazem Arte", composta por Zero Quatro, antecipa que o mesmo equipamento que pode ser manejado para a difusão de informação, da mesma maneira é uma máscara manipulada pelos artistas que a usurpam e dizem dominar a arte. Se Walter Benjamin estivesse vivo para ouvir esse clamor, certamente complementaria que os computadores são retro-projetores de uma realidade fantasiosa, com seu poder de reprodutibilidade; e seu discípulo, Theodor Adorno, diria que é um avanço à fugacidade da vida -- a maquiagem perfeita para escapar do mundo já falso criado pelos arquétipos da comunicação de massa.

Deve-se lembrar que a devida autosuficiência dos `garotos do mangue` estava dissociada das possíveis oportunidades financeiras que chegaram a ter. Ao contrário do que já foi um dia, Recife não respirava mais aqueles ares fidalgos de inteligência burguesa, que a destacaram como metrópole-colônia. Chico Science estava mais interessado no conhecimento das ruas, na observação do comportamento mais adequado ante as inúmeras portas que batiam na cara da maioria sofredora. E aí, Chico faz o convite que soa claro em "Antene-se":"Onde estão os homens caranguejo? / Minha corda costuma sair de andada / No meio da rua, em cima das pontes / É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo / Procurando antenar boas vibrações / Preocupando antenar boa diversão".

Tomando parte do discurso de um rapaz libertino, vagando pela conscientização de uma massa enganada com o rótulo de evoluída, Chico Science observa que esse espaço geográfico está mais que passível à violência. Ela virou cotidiano. A faixa-título passa essa ideia com eficácia, quando diz "um homem roubado nunca se engana", e situa dois personagens comuns praticando o ato falho do furto: "Peguei o balaio, fui na feira roubar tomate e cebola / Ia passando uma véia pegou a minha cenoura". É como se os dois atores sociais estivessem na mesma situação degradante, colocando no mesmo patamar o agente da classe média - no caso, a velha que vai fazer compras na feira -- e o miserável que tenta garantir a fartura ao ar livre. Ambos estão na mais baixa esfera da classificação capitalista. Na faixa, o peso dos riffs de Lúcio Maia dão um clima de sujeira, de desfavorecimento a essa situação.

O renascimento do groove é outras das predileções de Francisco de Assis França. "Samba Makossa", sexta faixa do álbum, é o exemplo típico. Makossa é um ritmo popular originário de Camarões, onde a ponderação do baixo e a presença da trompa ditam a musicalidade dançante. Não é bem um dos caminhos que Zero Quatro aponta em "Mistério do Samba", com o Mundo Livre S/A em 2000, mas, como em "A Praieira", é uma celebração à cultura popular miscigenada, herdada da mãe África. Há não muito tempo atrás, essa canção ficou conhecida nos vocais de Charlie Brown Jr. e Marcelo D2, com uma adaptação ao gosto da dupla, trocando o "bom da cabeça e um foguete no pé" - que associa a paz de natureza dos dançantes à cadência do samba -- por "bom da cabeça e o skate no pé" - interligando duas coisas distintas, como o samba e o skate, e apagando um pouco da maestria da composição.

Nesse groove de baque virado, Chico Neves, produtor musical de álbuns como Lado B, Lado A d`O Rappa, assina os samplers. É também de sua autoria as interferências eletrônicas em "Rios Pontes & Overdrives", "A Cidade", "Antene-se" e "Coco Dub (Afrociberdelia)".

Rajadas e trovões ainda estão por vir quando "Maracatu de Tiro Certeiro" surge na cena. Escrita em parceria com o futuro vocalista Jorge Du Peixe, a violência, a sede por se tornar um cidadão notável na era globalizada são dimensionados nos "olhos em brasa fumaçando". E, como um alvo de todo esse esturpor, "Lixo do Mangue", música instrumental sampleada por Chico Science e assinalada pelos gritinhos do produtor Liminha, são intercalados com os três acordes punk de Lúcio, dando vazão à pérfida singeleza do despercebido enterro de um indigente.

E quem disse que só de batalhas vive o `mangueboy`? "Risoflora" vem para afagar um pouco a revolta dos caranguejos com cérebros, trabalhando uma bonita simbiose de sotaque e percussões regionais aos acordes da guitarra. A influência do dub vem à tona, dando um certo ar de profundidade ao sentimentalismo da canção: "Ô Risoflora / Vou ficar de andada até te achar / Te prometo meu amor, vou me regenerar".

"Salustiano Song" é uma ode instrumental ao `patrimônio cultural de Recife`, Mestre Salustiano. Ele foi um dos responsáveis por manter e incorporar junto à sua rabeca expressões populares como a ciranda, maracatu, coco, mamulengo e o forró. Além de músico, o Mestre era ator e artesão. Interpretava coreografias do bumba-meu-boi -- como o cavalo-marinho, uma integração folclórica entre homens e animais intermediados pelo Capitão Marinho. Em busca desse resgate à identidade nordestina, Lúcio Maia e Chico Science promovem um baião dançante nessa música, intercalados pelo baixo de Dengue, os efeitos virais de Toca Ogam e a alfaia de Du Peixe, proporcionando um tom mais lúdico à nona faixa.

Antecipando o título do próximo álbum, Afrociberdelia, a última canção de Da Lama Ao Caos trabalha sonoridades mais experimentais, onde se destaca o futurismo do dub. O groove acentuado mistura todas as vertentes exploradas pela NZ, usando e abusando dos samplers comandados por Chico Neves. "Coco Dub (Afrociberdelia)" explora baião, dub, coco, maracatu, frevo e tudo que tiver pela frente, emitindo um som psicodélico e ao mesmo tempo dançante, como se fosse uma viagem sob efeito de psicotrópicos.

Em Da Lama ao Caos, Chico & Nação queriam submergir da lama de Recife ao mundo, denunciando o caos e a miséria que instaurara na cidade nos `últimos trinta anos`. Eles passaram toda essa letra com uma energia impactante, como se fosse uma representação da violência generalizada que invadira a capital pernambucana. Foi essa presença de palco, essa agrura nos tambores e essa mistura neoantropofágica que arremessaram Chico Science & Nação Zumbi direto para o mundo. Enquanto o álbum condensava as ideias, as apresentações a lançavam com vigor. Nos festivais de musica na Europa e nos Estados Unidos, a NZ aglomerava elogios, que vinham do público e especialmente da crítica. A experiência da projeção internacional mostrou um amadurecimento ao grupo com o lançamento de Afrociberdelia, pois nele o groove é elevado à máxima e a trajetória psicodélica de "Coco Dub", última faixa de Da Lama ao Caos, ganha ênfase com o apoio de Jorge Mautner, Gilberto Gil, Marcelo D2 e Mário Caldato no segundo trabalho do grupo. Em 1996, o manguebit já estava formado com a exposição mundial do caos recifense. No começo de 1997, nas prévias de carnaval, infelizmente um acidente de carro no caminho de Olinda para Recife levaria Chico Science desse mundo. O leito não linear seguiu, só que para fora do universo dos mortais.

Como legado emblemático, o hibridismo de Da Lama ao Caos fez florescer de forma significativa o âmbito da cultura pop. Provou que a junção de elementos dialéticos, regionais e eruditos podem cair no gosto popular e favorecer a mensagem que se quer passar com a música. A partir desse legado, entende-se que Da Lama ao Caos é uma soma de valores, influências e práticas que resultaram numa verdadeira música quântica.

sexta-feira, 12 de março de 2010

A última entrevista de Jack Kerouac




*Entrevista publicada na The Paris Review, em 1968. Traduzida por Amanda Górski.

Jean-Louis Lebris de Kerouac nasceu em Lowell, Massachusetts, em 12 de março de 1922; era o mais novo de três filhos de uma família de origem franco-canadense. Devido às dificuldades econômicas por que passava a família, Jack resolveu fazer parte do time de futebol americano do colégio para tentar uma bolsa de estudo na faculdade. Conseguiu entrar na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, para onde mudou-se com a família. Em Nova Iorque conheceu Neal Cassady, Allen Ginsberg e William S. Burroughs.

Em abril de 1951, entorpecido por benzedrina e café, inspirado pelo jazz, escreveu em três semanas a primeira versão do que viria a ser “On the Road”. Kerouac escrevia em prosa espontânea, como ele chamava: uma técnica parecida com a do fluxo de consciência. O manuscrito foi rejeitado por diversos editores. Em 1957, “On the Road” foi finalmente publicado, após inúmeras alterações exigidas. O livro, de inspiração autobiográfica, descreve as viagens de Sal Paradise e Dean Moriarty, cujos protagonistas, aludem a Neal Cassady e ao próprio Kerouac. Os dois viajaram por sete anos percorrendo a rota 66, que cruza os EUA na direção leste-oeste, com descidas frequentes ao México. Saíram de Nova York e cruzaram o país em direção a São Francisco. “On the Road” exemplificou para o mundo aquilo que ficou conhecido como a "geração beat" e fez com que Kerouac se transformasse em um dos mais controversos e famosos escritores de seu tempo – embora em vida tenha tido mais sucesso de público do que de crítica e embora rejeitasse o título de “pai dos beats”.

Seguiu-se a publicação de “The Dharma Bums” (Os Vagabundos Iluminados) – um romance com franca inspiração budista –, “The Subterraneans” (Os Subterrâneos) em 1958, “Maggie Cassidy”, em 1959, e “Tristessa”, em 1960. A partir daí, Kerouac tendeu à direita, politicamente: criticava os hippies e apoiou a guerra do Vietnã. Publicou ainda “Big Sur” e “Doctor Sax”, em 1962, “Visions of Gerard”, em 1963, e “Vanity of Duluoz”, em 1968. “Visions of Cody”, considerado por muitos o melhor e mais radical livro do autor, só foi publicado integralmente em 1972.

Em 21 de outubro de 1969, Jack Kerouac morreu de hemorragia, consequência de uma cirrose, com 47 anos, num hospital em St. Petesburg, na Flórida. O amigo e agente literário Allen Ginsberg reverencia seu talento: “Eu não conheço outro escritor que teve influência tão produtiva quanto Kerouac, que abriu o coração como escritor para contar o máximo dos segredos da sua própria mente”.

A entrevista da "Paris Review"

Os Kerouacs não têm telefone. Ted Berrigan contatou Kerouac alguns meses antes e o convenceu a dar a entrevista. Quando sentiu que a hora do encontro havia chegado, simplesmente apareceu na casa dos Kerouacs. Dois amigos, os poetas Aram Saroyan e Duncan McNaughton, o acompanharam. Kerouac respondeu a seu chamado; Berrigan rapidamente disse a ele seu nome e o propósito de sua visita. Kerouac saldou os poetas, mas antes que pudesse convidá-los a entrar, sua esposa, abraçou-o pelas costas e disse para o grupo sair imediatamente. Jack e eu começamos a falar ao mesmo tempo, dizendo “Paris Review!” “Entrevista!”, enquanto Duncan e Aram começaram a retirar-se na direção do carro. Todos pareciam perdidos, mas eu continuei falando de modo civilizado, aceitável, calmo e num tom de voz amigável, e logo a Sra. Kerouac concordou em nos deixar entrar por dez minutos, na condição de não haver bebidas. Uma vez dentro, quando ficou mais evidente que estávamos em busca de algo sério, a Sra. Kerouac ficou mais amigável, e pudemos começar a entrevista. Parece que as pessoas ainda costumam aparecer na casa dos Kerouacs procurando pelo autor de “On the Road”, e ficam lá por dias, bebendo todo o licor e desviando Jack de suas ocupações sérias. Enquanto a tarde passava, a atmosfera mudava consideravelmente, e a Sra. Kerouac, Stella, se mostrava uma graciosa e encantadora anfitriã. A coisa mais incrível de Jack Kerouac é sua voz mágica, que soa exatamente como suas obras. Sua voz é capaz das mais assombrosas e desconcertantes mudanças já vistas. Ela dita tudo, inclusive esta entrevista. Após a conversa, Kerouac, que se sentou numa cadeira estilo “Presidente Kennedy” durante a entrevista, se mudou para uma grande poltrona e disse, “Então, garotos, vocês são poetas, não é? Bem, vamos ouvir algumas de suas poesias”. Ficamos por mais de uma hora. Aram e eu lemos algumas de nossas coisas. Finalmente, ele deu a cada um de nós um poema recente com uma dedicatória, e então partimos.

Ted Berrigan — Será que podemos tirar essa mesinha pra colocar isso aqui?

Stella — Sim.

Jack Kerouac — Deus, como você é inconveniente, Berrigan.

Ted Berrigan — Bem, eu não sou um gravador, Jack. Sou apenas um grande falador como você.

Kerouac — Ok? [Ruídos.] Ok?

Ted Berrigan — Na verdade eu gostaria de começar... O primeiro livro seu que eu li não foi “On the Road” (Pé na Estrada)... foi “The Town and the City” (Cidade Pequena, Cidade Grande)...

Kerouac — Nossa!

Ted Berrigan — Eu achei numa biblioteca. . .

Kerouac — Puxa! Você leu “Doctor Sax”? “Tristessa”?

Ted Berrigan — Você tem que acreditar. Tenho uma cópia de “Visions of Cody” que Ron Padgett trouxe para Tulsa, Oklahoma.

Kerouac — Que se dane o Ron Padgett! Sabe por quê? Ele começou uma pequena revista chamada “White Dove Review” em Kansas City, não era? Tulsa? Oklahoma... Ele escreveu, “comece nossa revista nos mandando um grande poema”. Então eu enviei a ele o poema “The Thrashing Doves”. E então mandei outro e ele rejeitou por que sua revista já tinha começado. Isso é para mostrar como os punks tentam se dar bem batendo nas costas dos outros. Ah, ele não é um poeta! Você sabe quem é um grande poeta? Eu sei quem são os grandes poetas.

Ted Berrigan — Quem são?

Kerouac — Vamos ver... William Bissett de Vancouver. Um garoto indiano. Bill Bissett, ou Bissonnette.

Saroyan — Vamos falar sobre Jack Kerouac.

Kerouac — Ele não é melhor que Bill Bissett, mas é muito original.

Ted Berrigan — Por que não começamos com os editores. Como você...

Kerouac — OK. Todos os meus editores, desde o Malcolm Cowley, tinham a instrução de deixar minha prosa assim como eu havia escrito. Na época de Malcolm Cowley, com “On the Road” e “The Dharma Bums” (Os Vagabundos Iluminados), eu não tinha poder de estabelecer meu estilo para melhor ou para pior. Quando Malcolm Cowley fez revisões intermináveis e inseriu milhares de vírgulas desnecessárias, como, “Cheyenne, Wyoming” (por que não só dizer “Cheyenne Wyoming” e deixar como está), eu gastei quinhentos dólares fazendo a restituição completa do manuscrito de “The Dharma Bums”... E então você me pergunta como eu trabalho com um editor... Bom, hoje em dia, eu sou apenas grato a ele por sua assistência na revisão do manuscrito e por ter descoberto erros lógicos, como datas, nomes de lugares. Ao não revisar o que já escreveu, você dá ao leitor os trabalhos verdadeiros de sua mente durante o ato de escrever: você confessa seus pensamentos sobre os acontecimentos de sua própria maneira imutável... Eu passei toda a minha juventude escrevendo vagarosamente com revisões e especulações intermináveis, deletando, e então percebi que estava escrevendo uma frase por dia, e essa frase não tinha sentimento. Maldição! Sentimento é o que eu gosto na arte, e não artifícios na camuflagem de sentimentos.

Ted Berrigan — O que o motivou a usar um estilo "espontâneo" em “On the Road” (Pé na Estrada)?

Kerouac — Tive a ideia de usar o estilo espontâneo em “On the Road” ao ver como meu velho amigo Neal Cassady escrevia suas cartas: sempre na primeira pessoa, rápidas, loucas, confessionais, completamente sérias, minuciosas, com os nomes reais no caso dele (sendo cartas). Também me lembrei do aviso de Goethe — em uma profecia Goethe disse que a literatura ocidental seria confessional por natureza. Dostoiévski também percebeu isso, e poderia ter seguido isso, se tivesse vivido o bastante para realizar a obra-prima que planejou: “O Grande Pecador”. Cassady também começou seus escritos juvenis com tentativas de fazer algo lento, sofrido, cheio da porcaria da técnica, mas ficou cheio, como eu, vendo que não botava as coisas para fora do modo visceral como elas brotavam. Mas seu estilo me deu um toque...é uma mentira cruel daqueles vagabundos da costa oeste dizer que eu tirei dele a ideia para fazer “On the Road”. Todas as cartas que ele me escreveu falavam do tempo em que era mais jovem, antes que eu o conhecesse, uma criança com o pai etc., e das experiências seguin¬tes da adolescência. A carta tem a fama injusta de possuir treze mil palavras. Não, o texto de treze mil palavras foi “The First Third”, que ele conservou em seu poder. A carta, quer dizer, a maior carta, tinha quarenta mil palavras, veja bem, um pequeno romance completo. Foi a maior obra escrita que já vi, melhor que qualquer um faria nos Estados Unidos — ou pelo menos dava para Melville, Twain, Dreiser, Wolfe e sei lá quem mais tremerem na sepultura. Allen Ginsberg pediu esta carta enorme emprestada. Depois que leu, passou para um sujeito chamado Gerd Stern, que morava em um barco-casa em Sausalito, Califórnia, em 1955, e esse cara perdeu a carta, deve ter deixado cair dentro d'água. Neal e eu a chamávamos de Joan Anderson Letter, por conveniência. Contava tudo sobre um fim de semana de Natal em salões de bilhar, quartos de hotel e prisões de Denver. Estava cheia de casos engraçados e trágicos também, tinha até o desenho de uma janela, com as medidas, para ajudar o leitor a entender, e muito mais. Veja só: esta carta teria sido publicada com o nome de Neal, se fosse possível encontrá-la. Mas, como você sabe, era uma carta para mim, propriedade minha, e Allen não poderia ter sido tão descuidado com ela, nem o cara do barco. Se nós pudéssemos descobrir esta carta de quarenta mil palavras, faríamos justiça a Neal. Além disso, gravamos várias conversas rápidas por volta de 1952, e as ouvimos várias vezes, nós dois pegamos o segredo do código para contar uma história, e percebemos que era o único jeito de registrar a velocidade, a tensão e as bobagens deslumbradas da época. É o bastante?

Ted Berrigan — O que mudou no estilo, desde “On the Road”?

Keroauc — Que estilo? Oh, o estilo de “On the Road”. Bem, como eu disse, Cowley mexeu no texto original, sem que eu pudesse reclamar. Depois disso, todos os meus livros foram publicados do modo como eu os escrevi, como já falei, e o estilo tem variado desde a escrita rápida altamente experimental de “Railroad Earth” até o estilo místico voltado para dentro de “Tristessa”, da loucura confessional à la “Memórias do Subterrâneo” de Dostoiévski em “The Subterraneans” (Os Subterrâneos) e a perfeição dos três reunidos em “Big Sur”, que conta uma história simples no estilo fluente da prosa literária, até “Satori em Paris”, que é, na verdade, o primeiro livro que escrevi com bebida ao lado (conhaque e bourbon) ...Sem comentar sobre “Book of Dreams” (O Livro dos Sonhos), no estilo de uma pessoa que mal acor¬dou, escrevendo à lápis na beira da cama, sim, à lápis, que trabalho! Olhos cansados, a mente louca confundida e mistificada pelo sono, de¬talhes que explodem e você não entende o significado, até que acorda, toma café, olha para os escritos, e vê a lógica dos sonhos na própria linguagem dos sonhos, entende? E finalmente decidi em minha cansada meia idade, desacelerar, e fiz “Vanity of Duluoz” com um estilo mais moderado, para que, tendo sido tão esotérico todos esses anos, alguns leitores mais velhos voltassem e vissem o que dez anos fizeram à minha vida e pensamento... o que é, no final das contas, a única coisa que tenho a oferecer: a verdadeira história do que eu vi, e como eu vi.

Ted Berrigan — Você ditou algumas seções de “Visions of Cody”. Você já havia usado este método?

Kerouac — Eu não ditei partes de “Visions of Cody”. Eu transcrevi um trecho de uma conversa gravada com Neal Cassady, ou Cody, sobre suas aventuras juvenis em Los Angeles. Eu não havia usado este método até então; não fica muito bom, na verdade, com Neal e comigo mesmo, quando escrevemos todos os ‘ah’, ‘oh’, e ‘uhum’, e com o fato de que a fita continua rodando e não podemos ficar gastando eletricidade... Então novamente, eu não sei, acho que devo recorrer a isso só às vezes; estou ficando cansado e cego. Essa questão me desnorteia. De qualquer modo, todos fazem isso, mas eu ainda estou rabiscando. McLuhan diz que estamos nos tornando mais orais, então acho que todos aprenderemos a falar com as máquinas de modo cada vez melhor.

Ted Berrigan — Qual é o estado de “Yeatsian semi-trance” que provê uma atmosfera ideal para a escrita espontânea?

Kerouac — Bom, é quando você consegue entrar em transe com sua boca tagarelando... Escrever é no mínimo uma meditação silenciosa mesmo que você esteja a mil por hora! Lembra daquela cena em “La Dolce Vita” na qual um velho padre está irado por causa de um bando de maníacos que haviam ido até a árvore onde as três crianças tinham visto a Virgem Maria? Ele diz: “Visões não estão disponíveis nessa tolice frenética, nesse empurra-empurra; visões são apenas obtidas no silêncio e na meditação”.

Ted Berrigan — Você disse que haiku (haikai) não é escrito espontaneamente, mas trabalhado várias vezes e revisado. Isso se aplica a toda a sua poesia? Por que o método para escrever poesia se diferencia do método para escrever prosa?

Kerouac — Não, primeiramente, escrever em haiku fica melhor quando se revisa e trabalha várias vezes. Eu sei, eu tentei. Deve ser completamente econômico, sem floreios e linguagem rítmica, deve ser como uma simples foto com três linhas. Pelo menos foi assim que os mestres mais velhos fizeram, gastando meses em três linhas, e dizendo:

No barco abandonado,
O granizo
Bate violentamente.

Isso é Shiki. Mas para o meu verso regular em inglês, eu fiz como uma prosa corrida, e para obter isso, usei um caderno do tamanho do manuscrito original de “Vanity of Duluoz”. O rolo é feito de um papel fino de centenas de metros, para a forma e comprimento do poema, assim como um músico de jazz tem que colocar sua letra numa determinada quantidade de barras, dentro de um refrão, que se repete ao longo do texto, mas neste caso o refrão não para quando a folha termina. E finalmente, na poesia você pode ser completamente livre para dizer o que quiser, você não precisa contar uma história, pode usar trocadilhos secretos.

Ted Berrigan — Como você escreve haikai?

Kerouac — Haikai? Você quer ouvir haikai? Veja, você tem que comprimir em três linhas uma história enorme. Primeiro você começa com uma situação haikai — então você vê uma folha, como eu tinha dito a ela (Stella) outra noite, caindo nas costas de um pardal durante uma forte tempestade de inverno em Outubro. Uma grande folha cai nas costas de um pequeno pardal. Como você pode comprimir isso em três linhas? Agora, em japonês você tem que comprimir em 17 sílabas. Não precisamos fazer isso em inglês, pois não temos o mesmo sistema silábico que o Japonês. Então você diz: “Pequeno pardal” — você não tem que dizer “pequeno” todo mundo sabe que um pardal é pequeno, então você diz:

Pardal
Com grande folha em suas costas —
tempestade

Não está bom, não funciona, esqueça.

Um pequeno pardal
Quando repentinamente uma folha toca suas costas
Do vento.

Hah, assim que se faz. Não, está um pouco longo. Viu? Já está um pouco longo, Berrigan, entende o que quero dizer?

Ted Berrigan — Parece haver uma palavra extra. Que tal tirar o “quando”? Ficaria:

Um pardal
Uma folha de outono repentinamente toca suas costas —
Do vento!

Hey, isso está bom. Acho que “quando” era a palavra extra. Você pegou a ideia aqui, “Um pardal, uma folha de outono de repente”— não temos que dizer “de repente” não é?

Um pardal
Uma folha de outono toca suas costas —
Do vento!

[Kerouac escreve a versão final em um caderno de espiral]

sábado, 6 de março de 2010

Gabriel Garcia Márquez - O escritor e o ditador


André Lahóz
andre.lahoz@abril.com.br
Jornalista

Uma nova biografia de Gabriel García Márquez traz detalhes reveladores sobre sua amizade com Fidel Castro. E relança uma velha polêmica - como os escritores devem se relacionar com os poderosos?

Não há eleições em Macondo, a misteriosa cidade em torno da qual se desenrola a sucessão de tramas que compõem Cem Anos de Solidão, obra máxima do colombiano Gabriel García Márquez. Bem, pelo menos não há eleições para valer - a população até é chamada para votar, mas depois as urnas são esvaziadas e novamente preenchidas com votos ao candidato previamente definido pelo governo. Em compensação, não faltam guerras, fuzilamentos e revoluções. Um único oficial, o coronel Aureliano Buendía, promoveu 32 revoluções armadas após se decepcionar com a farsa eleitoral - foi derrotado em todas. As desventuras do coronel são apenas um capítulo da interminável sequência de rebeliões e lutas que estão sempre recomeçando sem levar a lugar algum - e que contribuem para o nítido sotaque latino-americano da obra. Ela nos recorda o quanto parte de nosso continente ainda se alimenta de heróis e de promessas de refundação da nação. E quanto nos parecem enfadonhos a democracia e o lento processo de evolução que ela enseja. Gostamos de aventura, ainda que, ao fim dela, o que sobre seja pouco mais que um "pavoroso rodamoinho de poeira e escombros", como na Macondo ao cabo de um século de história.

Por tudo isso, há um quê de ironia na polêmica gerada com a recém-lançada biografia autorizada de García Márquez, de autoria do inglês Gerald Martin, a ser publicada no Brasil agora em março. Nela, Martin dá detalhes da intensa relação de amizade que une o Nobel de Literatura e o líder cubano Fidel Castro. Sim, Gabo - como García Márquez é chamado pelos amigos - adora o ditador Fidel. A ponto de servir-lhe de guarda-costas em uma visita à Colômbia. Nele vê um homem "de costumes austeros, mas de ilusões insaciáveis". Fidel, segundo o escritor, "tem a convicção quase mística de que a maior conquista do ser humano é a boa formação da consciência, e que os estímulos morais, mais que os materiais, são capazes de mudar o mundo e impulsionar a história". Quando fala às massas, Fidel "é a inspiração, o estado de graça irresistível e deslumbrante, que só nega os que não tiveram a glória de tê-lo visto". E considera o cubano "um dos maiores idealistas do nosso tempo". E, sim, o ditador Fidel também adora Gabo. Deu-lhe de presente uma casa num dos bairros mais imponentes de Havana. E já afirmou que gostaria, numa próxima encarnação, de voltar como escritor - "um escritor como Gabriel García Márquez".

Em sua longa presidência, Fidel recebeu o apoio de inúmeras personalidades, inclusive brasileiras, de Chico Buarque a Oscar Niemeyer (o arquiteto, aliás, foi citado por Fidel como exemplo de coerência em sua carta de renúncia em favor do irmão, em dezembro de 2007). Pouco a pouco, porém, à medida que o número de mortos pelo regime crescia, o paraíso terreno prometido pelos revolucionários perdia o encanto. Demorou, mas até mesmo comunistas de longa data, como o também Nobel José Saramago, decidiram que era hora de pular do barco. Aos 82 anos, um a menos que Fidel, Gabo mantém inalterado seu apoio. Apesar do quase nada que resta ao fim de mais uma aventura latino-americana.

Poderia ser apenas excentricidade de um gigante da literatura - Cem Anos de Solidão, um caso raro de best-seller global que deleitou também o mundo das letras, é apontado por alguns críticos como uma das mais importantes obras da língua espanhola, ao lado de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, O Burlador de Sevilha, de Tirso de Molina, e um punhado de outras. Mas a proximidade de Gabo e Fidel ganha relevo por tratar-se de um fenômeno nada incomum. Não é privilégio do líder cubano ser paparicado por um grande escritor. Antes dele, ditadores de esquerda e de direita receberam a mesma graça. Tome-se o caso de Adolf Hitler, a besta-fera que lançou o mundo no maior conflito da história. Também ele contou com o apoio de inúmeros intelectuais. Martin Heidegger, talvez o principal filósofo do século 20, foi durante 12 anos membro do partido nazista. Günter Grass, também Nobel de Literatura, recentemente admitiu ter participado da Waffen SS, a tropa de elite do nazismo. Outro peso-pesado da literatura, o poeta Ezra Pound, chegou a ler textos homenageando o ditador alemão na rádio italiana durante a Segunda Guerra - nos quais atacava de forma indiscriminada os judeus, o presidente americano Franklin Roosevelt e a intervenção dos Estados Unidos na guerra.

Pound, aliás, apoiou não apenas um, mas dois ditadores - com Benito Mussolini teve certa proximidade, o tendo visitado em seu palácio em Roma e lhe dado livros de poesia. Outro Nobel de Literatura, Camilo José Cela, autor do cultuado A Colmeia, lutou nas trincheiras de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola e foi posteriormente acusado de servir como informante do regime franquista. E por aí a lista segue. A despeito da imagem que normalmente temos dos grandes escritores - amantes da liberdade, sem vínculos de nenhuma ordem que possam comprometer sua produção artística -, é incômodo constatar quantos deles se embriagaram com os menos esclarecidos dos déspotas.

A questão moral

Não é de hoje que a relação entre intelectuais e governantes é complexa. Há quase 2500 anos, os gregos já lidavam com essa questão. Por um lado, o anseio de influenciar a sociedade e interferir na construção do futuro é uma tentação recorrente no mundo das letras. Por outro, não é um caminho sem custo. Ao adentrar a política, o intelectual passa a transitar num mundo que não é o seu - e nem sempre acaba bem. Um marco na relação entre estudiosos e o poder ocorreu no famoso julgamento de Sócrates, filósofo grego acusado por Atenas de corromper a juventude. Os poderosos de então exigiam que Sócrates assumisse sua culpa ou aceitasse a morte por envenenamento. Mas ele não conseguia enxergar seu erro. Aceitar a pena seria pactuar com uma mentira. Sua opção pela cicuta entrou para a história ocidental como o primeiro evento em que um intelectual se recusa a aceitar as verdades estabelecidas. Entre a ética de sua cidade-Estado e sua consciência, ele escolheu a segunda - e fundou, assim, a moral. O seu exemplo serve como régua para momentos críticos da história. Em tempos de ditadura, quem se encolheu e quem seguiu os ditames da própria consciência?

Mas a questão é bem mais complicada do que uma luta entre verdade e mentira. Pois, afinal, há os que adotam ditadores não como rendição, mas como expressão de sua verdade pessoal. Gabo, Saramago e tantos outros seguidores de Fidel não passaram a adorar Cuba por medo da repressão ou com vista ao enriquecimento pessoal. Eles realmente acreditavam - e muitos ainda acreditam - que a revolução na ilha foi um exemplo para a humanidade. Se voltarmos aos gregos, veremos que também lá o apoio à democracia não era universal. Platão tinha sérias restrições à ética democrática, pois enxergava nela uma mistura de demagogia, mentira e belicismo. Mas também não gostava de ditadores. Formulou assim a famosa máxima: "A República funcionará bem se os filósofos tomarem o poder - ou se o governador se tornar um filósofo". A partir daí, a tentativa de fazer do ditador um filósofo passou a ser recorrente na história. Platão tentou a sorte com Dionísio de Siracusa. Acabou na prisão. Aristóteles foi o preceptor de Alexandre. Teve de fugir de Atenas. Mas o fracasso maior foi para a conta de Sêneca, outro grande filósofo da Antiguidade. Ele buscou domar Nero, talvez o mais tirânico dos imperadores romanos, com sua sabedoria, seu cosmopolitismo e sua crença na igualdade dos homens. Nero entrou para a história por sua loucura que teria feito arder Roma. E Sêneca, por ordens do tirano, foi obrigado a se matar.

Foi o capitalismo que fez subir às alturas o papel dos homens de cultura, escritores incluídos. Nos últimos 200 anos, diversos fenômenos - urbanização, industrialização, massificação da informação - conspiraram para o surgimento de uma classe de intelectuais. Não é que eles não existissem antes. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, a Idade Média já os conhecia. Mas pode-se dizer que foi no século 19 que eles se constituíram como "classe social" na Europa. É dessa época o mito do intelectual como alguém acima da sociedade e de alguma forma responsável por iluminar o futuro. Contribuiu para isso a enorme repercussão do caso Dreyfus, que envolveu o escritor francês Émile Zola. Em seu famoso artigo J'accuse, de 1898, o autor de Germinal fez uma violenta acusação de antissemitismo ao governo francês em relação ao oficial do Exército Alfred Dreyfus, injustamente tido como traidor. Zola conseguiu, usando apenas sua escrita em um jornal, provocar uma total reviravolta no caso e deixar em má situação a elite do poder na França. Virou um paradigma de pensador livre das amarras do poder.

O renovado poder dos intelectuais não passou despercebido dos poderosos. Não são apenas os escritores que querem um ditador para chamar de seu - também os ditadores adoram ter os escritores por perto. Eles podem ser determinantes na produção do poder ideológico. Segundo o filósofo italiano Norberto Bobbio, é um poder que se exerce "não sobre a posse de bens materiais, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamento prático, mediante o uso das palavras". Nenhum ditador, por mais poderoso, pode se manter indefinidamente só pela força bruta. É preciso cativar corações e mentes. Não estranha que escritores sejam particularmente interessantes aos governantes, dada sua capacidade de se comunicar com o grande público. Mas não os da mesma estirpe de Zola, claro. Os ditadores preferem aqueles que abracem a causa e sejam fiéis a ela.

A questão partidária

Cabe aqui a importante distinção entre duas categorias de intelectuais feita pelo escritor Jean-Paul Sartre - o filósofo e o ideólogo. O primeiro seria, na tradição de Sócrates e Zola, o pensador sem limites. O segundo apenas repetiria as palavras de ordem dos poderosos. É contra essa categoria de intelectual que se insurge o pensador francês Julien Benda no livro A Traição dos Intelectuais (1927), que se tornou um clássico. Segundo Benda - também ele um defensor de Dreyfus -, os intelectuais se perderam ao abandonar os princípios universais de justiça e verdade em nome de causas específicas de uma determinada facção.

Infelizmente, muitos se desviaram desse papel. No caso brasileiro, um de nossos escritores de maior sucesso no século 20, Jorge Amado, foi durante anos um ardoroso defensor de Josef Stalin, que disputa com Hitler e Mao Tsé-Tung uma espécie de liga especial dos ditadores mais sangrentos da história. Seu livro O Mundo da Paz (1951) é uma verdadeira ode ao stalinismo, com frases como: "Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stálin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos". Um texto digno de alguém que havia se filiado ao Partido Comunista e considerava a União Soviética o paradigma de sociedade perfeita. Mais tarde, em meados dos anos 50, Jorge Amado iria abandonar - felizmente - a temática política e produzir alguns de seus melhores livros.

A figura do intelectual do partido, aliás, é determinante para entender o século passado - e, de certa forma, as heranças que ainda carregamos. O marxismo elevou ao máximo a importância dos intelectuais na definição dos rumos da humanidade. Líder da revolução russa de 1917, Vladimir Lenin foi categórico ao afirmar que, por razões puramente econômicas, o capitalismo tenderia a durar indefinidamente. Não haveria nenhum limite físico à sua expansão. Para Lenin, somente a prática revolucionária poderia criar esse limite. Daí a importância da classe intelectual, que despertaria a sociedade para os novos tempos. Conhecemos o fim dessa história. Mas, nas longas décadas que durou o sonho, os homens de cultura de esquerda foram alçados a um patamar inédito de importância. Não mais seriam responsáveis por ensinar um ou outro governante, como tentaram os filósofos do passado. Agora trariam a chave para a felicidade humana. Nas palavras do sociólogo francês Raymond Aron, Karl Marx virou o ópio dos intelectuais.

Quem mais se aprofundou no papel da nova classe - a dos pensadores - foi o cientista político italiano Antonio Gramsci. É dele outra distinção clássica, a que separa intelectuais orgânicos dos tradicionais. Os tradicionais seriam o que normalmente associamos à palavra: um grupo que tem como objeto as ideias e que atua de forma separada do restante da sociedade. Já os primeiros são aqueles formados organicamente em cada classe social. E têm a função de trabalhar para a construção do partido (o "novo príncipe") e da revolução. A visão gramsciana exacerba o papel de escritores e pensadores na busca da utopia marxista. Uma utopia perigosa, aliás - que consumiu algumas das melhores cabeças e que, em nome de um suposto bem comum, custou dezenas de milhões de vidas. Cabe lembrar que, etimologicamente, a palavra utopia significa "lugar que não existe". Da visão original de Thomas Morus, sobre a ilha onde viveria a sociedade perfeita, ao marxismo persiste a noção de um ideal muito acima da capacidade humana. É um mundo que existe apenas na cabeça... dos intelectuais!

Talvez uma maneira de entender o problema à frente dos homens de letras seja a polêmica envolvendo os gigantes do renascimento italiano, Michelangelo e Leonardo da Vinci. O primeiro reprimia Leonardo por sua indiferença com as desventuras de Florença; o segundo respondia que o estudo da beleza preenchia todo o seu coração. São duas visões de mundo. Gabo deveria limitar-se à sua obra literária? Ou, ao contrário, deveria usar a sua popularidade em favor daquilo que lhe parece melhor? É uma questão que continua em aberto. As duas posturas parecem legítimas, mas apoiar líderes que tentam ceifar a liberdade é algo que não é mais aceito sem reservas. Daí o desembarque de Saramago e outros da canoa cubana. A hora parece ser não dos seguidores de Marx e Lenin mas, espera-se, de John Stuart Mill, Alexis de Tocqueville e outros pilares do pensamento liberal e da democracia. Na América Latina, ainda temos líderes como Hugo Chávez, Evo Morales, Néstor Kirchner e outros empenhados na construção de Macondos continente afora. Eles hoje encontram, no entanto, dificuldades para laçar escritores que os bajulem e legitimem. García Márquez, felizmente, converteu-se de regra em exceção.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Notas fora de lugar

Sérgio Martins
sergiomartins@abril.com.br
Jornalista, critico de música

Heitor Villa-Lobos, o maior compositor brasileiro, morreu há cinquenta anos, mas ainda não existe uma edição confiável de sua obra.

Na Europa, efemérides dos grandes compositores eruditos costumam ser celebradas até com certo exagero. Os 250 anos de nascimento do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e os 250 da morte do alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750) ensejaram incontáveis concertos, gravações, homenagens. No dia 17 de novembro, completam-se cinquenta anos da morte do maior compositor que o Brasil já teve, Heitor Villa-Lobos (1887-1959). A data não está passando em branco – as Bachianas Brasileiras estão no programa das principais orquestras do país. Mas as celebrações são modestas. As iniciativas do Ministério da Cultura, por exemplo, resumem-se a uma reedição, a cargo da Funarte, do Guia Prático, livro de canções folclóricas escrito por Villa-Lobos na década de 30, e a uma homenagem na entrega da Ordem do Mérito Cultural (a medalha é dada às pessoas que se destacaram no mundo das artes). Poderia ser aceitável – se não houvesse tanto a fazer. Os fundamentos para uma boa divulgação – e uma boa compreensão – da exuberante produção musical de Villa-Lobos ainda não foram lançados: não existem edições confiáveis de suas mais de 1 000 composições, nem sequer de algumas das mais conhecidas. Passados cinquenta anos de sua morte, o necessário trabalho de revisão de sua obra mal começou.

O carioca Villa-Lobos está para o Brasil assim como Sergei Prokofiev (1891-1953) está para a Rússia ou Aaron Copland (1900-1990) para os Estados Unidos. Os três eram bem versados no cânone da música clássica – e buscaram aproximá-la das fontes folclóricas e populares. Villa-Lobos participou da famosa Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, e era um representante ortodoxo do nacionalismo da primeira geração modernista. Criou, de fato, uma linguagem musical de acentuado sabor brasileiro, como se pode notar nos Choros e especialmente nas Bachianas, ciclo de nove obras dedicadas a Johann Sebastian Bach que trazem elementos de seresta e de música folclórica. "Villa-Lobos não é um compositor brasileiro, ele é o próprio Brasil musical", diz John Neschling, ex-diretor artístico da Orquestra Sinfônica de São Paulo, à frente da qual gravou a integral dos Choros.

Falastrão, Villa-Lobos gostava de cultivar mitos sobre si mesmo. Dizia que fora perseguido por canibais quando fazia pesquisas sobre música indígena. Jactava-se de haver escrito mais de 1 000 obras – e, nesse caso, não há exagero: embora sua produção nunca tenha sido devidamente catalogada, músicos e estudiosos costumam ter como certo que ele ultrapassou esse limiar. Bailados, concertos, obras corais, quartetos: Villa-Lobos exercitou-se em quase todos os gêneros, nem sempre com o mesmo acerto – suas óperas, por exemplo, são em geral medíocres, e suas sinfonias, embora tenham momentos de brilho, não se comparam em originalidade às Bachianas nem aos Choros.

O descuido com a precisão das partituras começou com o próprio Villa-Lobos. Prolífico, ele escrevia em qualquer tempo ou lugar. Gostava de compor enquanto ouvia radionovelas. A pianista Lucília Guimarães, sua primeira mulher, costumava revisar seus escritos, mas o casamento acabou em 1936, quando o músico, em viagem pela Europa, decidiu romper com ela – por carta. Os lapsos são comuns em seus manuscritos. Há partituras em que ele simplesmente se esquece de completar a parte de um instrumento. Outras exigem correções de articulação, dinâmica e intensidade. "Em alguns momentos, a escrita de Villa-Lobos pede para que todos os músicos toquem forte, ao longo da peça inteira. O regente tem de corrigir isso", diz Roberto Minczuk, diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira, que já gravou as Bachianas Brasileiras com a Osesp.

Agravando a bagunça inata do compositor, sua editora internacional, a francesa Max Eschig, foi desleixada no tratamento de sua obra. Já existe um projeto de revisão da música de Villa-Lobos, sob responsabilidade do maestro Roberto Duarte, respeitado especialista no legado do compositor carioca, e da Academia Brasileira de Música (instituição fundada pelo próprio Villa-Lobos, em 1945). A ABM fez um acordo com a Max Eschig: entregaria à editora francesa, sem custos, versões corrigidas das partituras e, em troca, ficaria com os direitos autorais para a América Latina. Até agora, Duarte já recuperou dezesseis obras de Villa-Lobos, entre as quais Rudepoema (escrito em homenagem ao pianista polonês Arthur Rubinstein), os Choros 6, 7 e 10, três concertos e três danças – mas a Max Eschig ainda não lançou as partituras revisadas. Mal começado, o projeto já parou por dificuldades financeiras: o patrocinador da revisão freou os investimentos. Aliás, uma das homenagens mais vistosas previstas para o aniversário da morte do músico também esbarra na falta de patrocínio: a exposição Viva Villa!, prevista para começar no dia 12 de outubro, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, quer mostrar fotos de arquivo, filmes caseiros, partituras e músicas do compositor, dispostas em cinco vagões de trem – alusão ao Trem do Caipira, movimento da Bachiana 2. A Clã Design, empresa que está organizando a mostra – com acervo do Museu Villa-Lobos (fundado em 1960 por Mindinha, a segunda mulher do músico), entre outras instituições –, foi autorizada a captar 1,2 milhão de reais por incentivos da Lei Rouanet, mas ainda faltam patrocinadores para completar a cifra.

A edição defeituosa da obra de Villa-Lobos dificulta sua execução, sobretudo no exterior. Maestros estrangeiros, menos familiarizados com as referências musicais do compositor brasileiro, têm dificuldade em fazer as emendas necessárias. "Em 1987, o maestro Kurt Masur deixou de realizar um concerto inteiramente dedicado a Villa-Lobos porque se cansou de consertar os problemas da partitura", relata Vasco Mariz, biógrafo do compositor. Neste ano de efeméride, as récitas de Villa-Lobos no exterior estão a cargo de brasileiros. Roberto Minczuk vai reger a integral das Bachianas em Tóquio, em agosto. Em outubro, o regente João Carlos Martins apresenta a Bachiana 7 no Carnegie Hall, em Nova York. E, no fim do ano, o violoncelista Antonio Meneses e a pianista Cristina Ortiz farão recitais no Japão, na China e em Paris. Paradoxalmente, o ouvinte brasileiro que deseja incluir as obras fundamentais de Villa-Lobos em sua discoteca tem de recorrer a discos importados, nem sempre fáceis de encontrar. A integral das Bachianas pela Osesp, com regência de Minczuk, só saiu por um selo sueco, o Bis. Os Choros são mais acessíveis: também pela Osesp, com o maestro John Neschling, foram lançados no Brasil pela Biscoito Fino.

Politicamente, Villa-Lobos não foi exceção em sua época: como tantos intelectuais seus contemporâneos, foi cooptado pelo governo de Getúlio Vargas. Assumiu a Superintendência de Educação Musical e Artística em 1932 e estabeleceu um razoavelmente bem-sucedido programa de ensino de canto orfeônico nas escolas. O compositor sonhava com um país de formação musical mais sólida. Sua criatividade merecia ser honrada com maior respeito por sua música, em vez de com medalhinhas.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Faça o que eu digo não o que eu faço (quem pode apontar o dedo?)

Rodrigo C. Vargas

A guerra fria acabou, mas outras frentes de batalhas foram abertas e continuaram entre os Estados Unidos e qualquer um, obviamente mais fraco. A intenção estadunidense de conter o Irã frente seu programa nuclear é simples: não dar voz a quem não se cala. O Irã apesar de não ser um país “democrático” segundo Washington, abre a possibilidade de seus 19 milhões de eleitores escolherem através de listas abertas o novo parlamento. E tem até comício!

O regime iraniano tem pontos falhos. É o segundo país do mundo em execuções, depois da China, e um dos poucos que aplicam pena de morte a menores de idade, homossexuais e adúlteros. Há também segregação dos sexos como no caso da proibição de mulheres frequentarem o curso de Direito. Mesmo assim, a participação das mulheres na economia iraniana é superior à da maioria dos países muçulmanos e alguns ocidentais: 40% das mulheres maiores de 15 anos trabalham, mais que no Chile (36,9%), Turquia (28%) e Arábia Saudita (18,9%). Dos estudantes no ensino superior, 51% são mulheres, porcentagem equivalente a de países ricos como a Holanda e mais alta que a do México (50%) e Chile (48%).

A maior prova do quanto somos reféns de uma produção de imagens e notícias baseadas na propaganda política está na distância entre o que é e o que somos forçados a pensar ser. A renda per capita iraniana é superior à do Brasil e da África do Sul e o produto interno bruto é maior que o de alguns países do G-20. Ainda assim, as mídias exageram ao criar a imagem de uma ditadura primitiva de fanáticos pronta a atacar seus vizinhos. O regime dos aiatolás nunca atacou vizinhos e apesar das hostilidades frente a Israel, respeita sua minoria judaica que não sofre restrições no culto, educação ou viagens ao exterior. O exemplo está bem próximo, quando Ahmadinejad questionou o Holocausto não foi apenas o mundo que se voltou contra suas insinuações, o líder da comunidade judaica iraniana, Haroun Yashayaei, criticou duramente o presidente do Irã e não foi punido.

É justamente em assuntos como esse que a imprensa brasileira se mostra tão americanizada quanto Zé Carioca. Criticar o governo Lula por apoiar o diálogo ao invés das sanções como quer Hillary Clinton é dar apoio ao insulto bélico entranhado no espírito lá de cima que coloniza e massacra em nome do que é considerado por lá como liberdade.

Impedir Ahmadinejad de insistir em pesquisas tecnológicas em seu país é incoerente, principalmente quando o critico tem o poder atômico de destruir a vida na terra 34 vezes, como se apenas uma já não bastasse.

É preciso dar exemplo! Se as bombas nucleares ainda existem é por que há a possibilidade real de serem usadas, ou todos esqueceram Hiroshima e Nagazaki? Para que serve a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica)? Não seria apenas para manter o clube dos que tem continuando a ter, e dos que não tem a esquecer essa possibilidade?

Para poder bater a mão na mesa primeiro os Estados Unidos teriam que acabar de vez com o arsenal atômico senão do mundo, pelo menos com o seu. Democracia é todos terem o mesmo direito, ou não é bem assim Tio Sam?