Genilda Azeredo
genildaazeredo@yahoo.com.br
Professora do curso de graduação e pós-graduação em Letras da UFPB
I. Um recorte afetivo: a autora e a leitora
Minha relação com a escritora Virginia Woolf se deu inicialmente através de um de seus contos (talvez “Kew Gardens” ou “The Mark on the Wall"/"A Marca na Parede”), à época da graduação em Letras. Mas lembro-me de ter achado sua prosa de ficção muito difícil, e certamente esta dificuldade não me permitiu apreciá-la em suas nuanças. Nosso re-encontro aconteceu certo tempo depois, no mestrado, e de uma forma inusitada. Já havia esboçado um primeiro projeto de pesquisa sobre o também escritor inglês Graham Greene, mas não estava de todo satisfeita com a escolha, e, não me lembro bem por que, comecei a ler Um Teto Todo Seu, um ensaio teórico-crítico de Virginia Woolf. Este livro teve tal efeito sobre mim que, a partir dele, senti vontade de voltar à prosa de ficção da autora. Resultado: abandonei Graham Greene e (para apreensão de minha orientadora) decidi desenvolver um projeto de pesquisa sobre Woolf, focalizando na relação entre as inovações formais de sua prosa (especificamente os contos) – comumente denominada pelos críticos de prosa lírica – e seus questionamentos acerca das dificuldades que as escritoras vivenciavam, enquanto herdeiras (segundo Woolf) de uma tradição literária eminentemente masculina.
Este recorte afetivo já nos indica determinadas marcas desta escritora. Woolf não apenas (se isto já não se fizesse bastante) produziu ficção (romances e contos), mas escreveu vários textos teórico-críticos sobre a literatura moderna (a exemplo do texto intitulado “Modern Fiction”), sobre a relação da mulher com a literatura (a exemplo de Um Teto Todo Seu) e sobre textos específicos produzidos por outras escritoras (a exemplo de textos críticos que escreveu sobre Jane Austen, Emily Brontë, Charlotte Brontë, Mary Wollstonecraft, dentre outras). Ou seja, tais atividades fazem dela uma escritora com uma prática literária variada e um nível de conscientização bastante agudo sobre a literatura, em suas diversas modalidades: ficcional, teórica e crítica.
Como se isto já não bastasse, Virginia Woolf também tem uma história de vida que chama a atenção dos leitores por diversos aspectos: diz-se que foi molestada sexualmente na adolescência por seus meio-irmãos, fato que, segundo biógrafos, tornou-a avessa a experiências sexuais, justificando sua fama de frígida; tinha freqüentes crises de melancolia, depressão e loucura, quando se recusava a comer e dizia ouvir vozes; costumava – dada a carência que sentia da presença materna – se "apaixonar" por mulheres mais experientes que ela (a exemplo de Violet Dickinson e Madge Vaughan). Numa de suas cartas a Violet Dickinson, Woolf pede: "Escreva para mim, escreva e me diga que me ama muito. Não desejo mais nada. Meu alimento é o afeto". Mas talvez o fato mais marcante de sua biografia seja mesmo o de sua morte, através do suicídio que cometeu, em março de 1941, nas águas caudalosas do rio Ouse.
De fato, o fascínio que sua vida tem exercido, em toda uma geração de escritores, críticos e leitores, ao longo dos anos, pode ser sentido através das inúmeras referências a sua obra, pesquisas acadêmicas desenvolvidas e dos inúmeros livros publicados sobre sua produção literária. Há também o caso de escritores que criam textos ficcionais a partir de um diálogo explícito com seus textos. Recentemente, dois exemplos tornaram-se emblemáticos: o conto “Ginny” (apelido carinhoso para Virginia), cuja narrativa é construída a partir do suicídio de Woolf, constante do livro Vésperas (2002), de Adriana Lunardi; e o livro As Horas (inclusive transformado em filme), do americano Michael Cunningham, em que Virginia Woolf aparece como uma das personagens da narrativa, e seu livro, Mrs. Dalloway, constitui um framework para a compreensão de todo o livro de Cunningham.
Sabemos que um dos princípios básicos do estudo da literatura recomenda que a obra do escritor não seja confundida com sua história de vida. Fernando Pessoa, num de seus poemas mais conhecidos, refere-se ao poeta como aquele que “chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. Ou seja, não é que devamos (nem podemos) negar a relação entre a literatura produzida e a experiência vivida (a dor existe deveras), mas a literatura será sempre uma transmutação, uma construção da experiência de vida do escritor. Entre a vida e o texto haverá sempre o distanciamento e o fingimento necessários para a criação, imaginação e construção. William Wordsworth, poeta inglês, fala deste processo como “emoção relembrada, ou recolhida, na tranqüilidade”. Virginia Woolf parecia ter uma consciência bastante clara a respeito disto. No período em que estava escrevendo Mrs. Dalloway (1925), por exemplo, ela fala do processo de criação de seus personagens como uma descoberta que semelha a escavação de “bonitas cavernas por trás dos personagens: creio que isto me oferece exatamente o que quero: humanidade, humor, profundidade. A idéia é que as cavernas possam se conectar e que cada uma venha à tona no momento presente” (Diário, p. 65).
II. Virginia Woolf e a Poesia da Existência
Um elemento básico que atravessa a produção ficcional de Virginia Woolf é a consciência da passagem do tempo, da efemeridade da vida (uma das partes de seu romance Passeio ao Farol é inclusive intitulada “O Tempo Passa”) e de sua natureza trágica. Numa passagem reveladora de seu diário, ela se questiona: “Por que a vida é tão trágica? Tão semelhante a uma pequenina faixa de calçada acima de um abismo? Eu olho para baixo; tenho a sensação de vertigem; pergunto-me como terei que caminhar até o fim. Mas por que sinto isto? Agora que eu o digo, não o sinto mais. A melancolia diminui à medida que escrevo” (Diário, p. 36).
Em dois de seus textos teóricos mais significativos, “Ficção Moderna” e “Sr. Bennett e Sra. Brown”, Woolf tenta justificar o material temático de que sua literatura é feita. Em vez de se concentrar em conflitos externos, de caráter mais tangível, na caracterização física de personagens, na objetividade do relato, seu interesse maior é apreender o caráter fugidio da vida, as percepções e emoções que definem a experiência humana, a relevância da memória e dos processos mentais e sensoriais para a compreensão de nossas vivências. Em “Ficção Moderna”, por exemplo, ela afirma que “a vida não é uma série de lanternas simetricamente ordenadas; a vida é um halo luminoso, um envelope semitransparente a nos envolver do início da consciência ao final” (1996; tradução minha). É claro que a apreensão deste tipo de realidade – espiritual, emocional, introspectiva, mental – exige todo um esforço inovador em termos de técnicas narrativas, fazendo com que a sua literatura seja construída a partir do uso de monólogo interior, fluxo de consciência e da adoção de um tipo de linguagem, dicção e ritmo que, em certos momentos, lembram mais a poesia que a prosa; uma conseqüência disto é a apresentação da realidade e experiência humana em sua fragmentação, incompletude, incoerência e ambigüidade. Ainda no texto “Ficção Moderna”, ao referir-se aos escritores russos e ao legado por eles deixado, Woolf diz:
É a consciência de que não há resposta, que, se honestamente examinada, a vida apresenta pergunta após pergunta; é isto que continua a reverberar após o término da estória, numa interrogação sem esperança – e isto nos preenche com um desespero profundo (p. 1996).
Creio que é exatamente esta reverberação que constitui a marca central da literatura de Woolf (“que se dissipou, não era poesia”, nos disse também Drummond); uma reverberação que nos incita a observar e a analisar a vida em seus detalhes aparentemente triviais; a senti-la em suas variadas nuances de cores, cheiros, texturas, silêncios e sons; a sorvê-la em seus sabores e abismos. Exemplos disso podem ser facilmente encontrados em sua ficção.
No conto “Kew Gardens” (nome de um jardim em Londres), por exemplo, a narradora adota, em diversos momentos da narrativa, a perspectiva de um caracol, que se arrasta junto a um canteiro de flores, para dar conta da riqueza de detalhes, minúsculos, que o canteiro oferece. O recorte de vida no jardim é visto primeiro através daquilo que habita o canteiro: a descrição toma como ponto de partida o chão e o que está atrelado a ele: o canteiro de flores, os talos, as pétalas, as folhas, os seixos, as gotas de chuva e a forma como a luz do sol vai se modificando em diferentes cores à medida que entra em contato com tais elementos. Diz a voz narrativa: “A brisa circulou reanimada e a cor cintilou no ar acima, nos olhos dos homens e das mulheres que caminhavam por Kew Gardens no mês de julho” (pp. 39-40).
A partir deste momento, a narradora também passa a observar as pessoas que vão passando pelo canteiro; há, portanto, uma mudança de foco – do espaço para a consideração do material humano. Porém, logo de imediato, percebemos uma diferença na forma como as informações sobre estes dois universos – aquele do canteiro e do caracol, e o das pessoas que passeiam perto do canteiro – são apreendidas. Se, como vimos, a descrição do canteiro é caracterizada sobretudo por uma riqueza de detalhes, que valorizam seus elementos constituintes mais minúsculos, e que só podem ser vistos se olhados bem de perto (daí a adoção do ponto de vista do caracol), a apreensão dos personagens só pode ser feita à distância, e através dos fragmentos de diálogos que eles vão deixando pelo caminho, à medida que passeiam pelo jardim. No entanto, mesmo diante desta apreensão precária, ficamos sabendo de informações relevantes a respeito dos personagens: o primeiro casal que passa, por exemplo, conversa sobre determinado momento do passado, quando ainda não estavam juntos, e a mulher, Eleanor, reflete: “Não haverá sempre, num jardim em que homens e mulheres descansam debaixo das árvores, quem pense no passado? Não são eles o nosso passado, o que resta do passado, aqueles homens e mulheres, aqueles fantasmas deitados sob as árvores ... a nossa felicidade, a nossa realidade?” (p. 41)
As considerações acerca dos personagens, bem como a dramatização do que falam e do que pensam são alternados com o arrastar-se do caracol pelo canteiro, de modo que a narrativa se organiza através da articulação destes dois universos: um aparentemente estático (o do canteiro de flores, com seu caracol que se arrasta, lentamente) e um dinâmico – ainda que apreendido na irregularidade dos passos dos personagens e na aparente incoerência de suas conversas. “Kew Gardens” constitui exemplo do que disse Virginia Woolf, certa vez, acerca do material utilizado em sua ficção: “Fico pensando em diferentes formas de conduzir minhas cenas; concebo possibilidades infinitas; vejo a vida, quando caminho pelas ruas, como um imenso bloco de material, opaco, a ser expresso por mim em seu equivalente de linguagem” (Diário, p. 51). De fato, tal opacidade constitui marca recorrente da ficção de Woolf; suas vozes e fontes narrativas sempre oferecem ao leitor a possibilidade de encarar a vida como um segredo a ser decifrado, como fragmentos de um quebra-cabeça, como mensagens a serem lidas e interpretadas. Desta forma, é possível sentir, através de suas narrativas, um paralelo entre viver e criar – como se a vida, tal como a vivemos, no nosso cotidiano, constituísse sempre, e também, algo a ser construído, a ser tecido, entrelaçado.
Este caráter criativo – que permeia não só sua literatura, em sentido geral, mas a experiência subjetivada de que sua literatura é feita – é justaposto, no romance Mrs. Dalloway, à questão da loucura. Phyllis Rose, ao analisar o romance, diz: “A criatividade e a loucura são os temas centrais deste livro: o impulso em direção à vida e o impulso em direção à morte; a sanidade e a loucura representam dois impulsos dentro de Virginia Woolf” (Rose, p. 126). De fato, o romance Mrs. Dalloway é construído de modo a alternar a narrativa de Clarissa e a preparação de sua festa – que representa celebração, vida, reencontro – com a narrativa de Septimus, o visionário louco, ex-combatente da guerra, que acaba por se suicidar. Na verdade, a preparação para a festa (incluindo a compra das flores) é logo influenciada por pressentimentos, por reminiscências, por sensações que fazem Clarissa refletir sobre sua própria solidão e estranhamento diante da vida. Cria-se, logo no início da narrativa de Woolf, um paralelismo entre celebração e desencanto, festa e morte. Tal paralelismo é já condensado no parágrafo inicial do romance, quando Mrs. Dalloway diz, "What a lark, what a plunge!" (Que diversão / graça / divertimento, que mergulho / abismo / salto!) (Woolf, 1987, p. 5). É interessante enfatizar que estas narrativas não se entrelaçam, mas caminham paralelas; apenas ao final do romance, quando o médico de Septimus comparece à festa de Clarissa e conta a respeito do suicídio de seu paciente, há o real encontro entre vida e morte, fazendo com que Clarissa desenvolva várias reflexões acerca da solidão, da vida e da morte. Clarissa reflete, por exemplo, acerca do fato de que a vida nos é legada por nossos pais, e que, quando nos damos conta, já estamos no meio da vida, vivendo – uma vida que deve ser vivida até o fim. “E havia, no fundo de seu coração, um medo terrível” (Woolf, 1987, p. 164). Há, nas suas reflexões, uma implicação clara de que não temos escolha quanto à vida. É quase impossível, ao lermos tal trecho, não lembrarmos da trajetória de vida e de morte da própria Woolf, cujo suicídio, nas águas caudalosas do rio Ouse, é assim justificado, através de um bilhete direcionado ao marido: "Tenho a sensação de que vou enlouquecer. Ouço vozes e não consigo me concentrar no trabalho. Lutei contra isto, mas não posso mais continuar lutando. Devo a você toda a felicidade na vida. Você foi perfeitamente bom. Não posso continuar estragando sua vida". O suicídio já havia rondado Woolf em pelo menos três ocasiões anteriores. E é irônico quando sabemos que no processo de idealização de Mrs. Dalloway havia uma idéia inicial de que seria Clarissa a personagem que cometeria suicídio. Porém, durante o processo de escritura do romance, Woolf muda de idéia, e transfere o suicídio para Septimus. Tal decisão, a meu ver, serve para preservar as duas grandes forças que sustentam a narrativa deste romance: de um lado, como diz Phyllis Rose, “a celebração do êxtase de viver; de outro, uma elegia pela breve passagem deste êxtase. Mrs. Dalloway alterna visões de beleza e de desespero, contentamento e melancolia; expressa o perigo de se viver e a posição precária da mente sensível sobressaltada pelo mundo material” (Rose, p. 125).
A meu ver, é exatamente desta aparente contradição que nasce a poesia da existência, tal como Woolf a apreendia e a revelava a seu leitor.
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