sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Uma Palavra sobre Mandelstam

Gilfrancisco Santos
gilfrancisco.santos@ig.com.br
Jornalista e professor universitário.

“A Revolução de Outubro não podia deixar de influenciar o meu trabalho uma vez que me privou da biografia, da sensação de importância pessoal. Eu lhe sou grato por ela ter acabado de uma vez por todas com o bem-estar intelectual e a sobrevivência baseada em renda proveniente da cultura... À semelhança de muitos outros, eu me sinto devedor da revolução, mas lhe ofereço algo de que ela por enquanto não está necessitando”. (Óssip Mandelstam)

Mandelstam é um poeta russo comparativamente pouco conhecido dentro e fora do seu país, mas é talvez o melhor daquela galáxia dos bons poetas, ofuscados pelo stalinismo, capaz o bastante para nos fazer acreditar na sua inquestionável palavra, de impiedosa independência, sua recusa a reverenciar os temas ideológicos do momento.

Nascido em Varsóvia (Polônia), na época pertencente à Rússia Ocidental, Óssip Emilievitch Mandelstam, em 15 de janeiro de 1891, filho de uma família abastarda de comerciantes judeus, que cultivava o hábito da boa leitura. Desde cedo o jovem Óssip sentiu verdadeiro fascínio pela leitura, vivendo rodeado de Schiller, Goethe, Shakespeare, Kerner. Puchkin, Liermontov, Turguiêniev, Dostoievski, Tolstói e, posteriormente, pela cultura francesa – particularmente com a poesia de François Villon, revelando uma grande tendência para a literatura, predominantemente para a poesia. Mas desde sua juventude viveu em Pálovski e São Petersburgo até 1907, onde cursou o colégio Tenechev, uma das melhores escolas do seu tempo. Óssip, estudou numa escola técnica e depois Filologia e História na Universidade de Petersburgo.

Uma estada em Paris, em 1907, contribuiu para suscitar nele profundo interesse pelo simbolismo francês. Começou sua atividade literária em 1910, quando publicou alguns poemas na revista Apolo (1909-1917), famosa na época por aceitar colaborações de tendências, principalmente simbolistas e acmeístas.

Um dos pais do acmeísmo, corrente fundada em 1912, da qual faziam parte Anna Akhmatova, (1886-1966); Nikolai Gumilov; (1886-1921) e Mikhail Zúzmin, (1875-1936), que representava a tendência individualista extrema em arte, pregavam a teoria da “arte pela arte”, a “beleza pela beleza”, permaneceu no movimento por pouco tempo, é o autor do manifesto, O Amanhecer do Acmeísmo.

“Os acmeístas compartilham com os tempos fisiologicamente brilhantes da Idade Média o seu amor pelo organismo e pela organização... Ao determinar à sua própria maneira a dignidade específica de um homem, a Idade Média sentiu e reconheceu isso em todas as coisas, com inteira independência dos seus méritos... Sim, a Europa marchou através de um labirinto formado por uma delicada cultura, quando em abstrato a existência pessoal, desprovida de adornos, foi valorizada como uma maravilha... Daí a íntima aristocracia que vincula todo o povo e que é tão alheia ao espírito de igualdade e fraternidades da Grande Revolução... A Idade Média não é desejada porque possuía em grau bastante elevado o sentido de limite e de divisão... A nobre mistura de racionalidade e de misticismo e a sensação do mundo como um equilíbrio vivente, identifica-nos com essa época e leva-nos a extrair um certo sentido de força de obras que surgiram no caminho do romance por volta de 1200...”.

O mundo poético de Óssip Mandelstam, como todo acmeísta fascinado pelo colorido intenso e sublime as formas do objeto, ele nos apresenta os objetos vinculados as leis que somente ele identifica-os. Profundo admirador de Andréi Biely (1880-1934), após sua morte escreveu versos o homenageando, foi também um grande conhecedor da poesia francesa, italiana e alemã.

Sua estréia em livro data de 1913 com a publicação de, A Pedra, dedicado às pesquisas rítmicas e reflexões sobre a linguagem. Segundo Krystyna Pomorska, estudiosa do formalismo russo, o livro “trouxe para essa poesia um certo afastamento parnasiano, uma tonalidade clássica e uma imagética baseada na mitologia clássica. Os motivos de predominância catastrófica interligada à quietude clássica tornam Mandelstam mais próximo do Simbolismo (particularmente o simbolismo francês) do que qualquer outro representante do Acmeísmo. O seu estilo, ou a sua escrita, é típica da poesia cultivada”.[1] Vimos que em sua primeira etapa, o poeta Óssip Mandelstam sofreu a influência simbolista, somente mais tarde sua poesia denota o reflexo vivo da realidade.

Considerado o maior dos acmeístas, poeta de inspiração clássica, se uniu com suas líricas nítidas e buriladas, a maneira elíptica e imaginativa do cubo-futuristas. Isso se observa, por exemplo, no breve texto Solóminka, de 1916, em que alucinadas e inconexas metáforas, vão acumulando numa lenta progressão. Tudo isso põe a arte poética de Mandelstam numa área muito próxima ao futurismo. Não é de se estranhar que ele tenha escrito textos de admiração pela obra de Vielimir Khliebnikov (1885-1922).

Mandelstam também nutria forte admiração por outro amigo: Ler os versos de Pasternak é como purificar a garganta, reforçar o alento, renovar os pulmões; esses versos devem ser bons para curar a tuberculose. Não há atualmente em nosso país poesia mais saudável...” Em Pasternak, a palavra se faz ainda mais que em outros poetas futuristas, corpórea e palpável como um objeto e adquire relevo tão proeminente que, as vezes, parece descobrir o ângulo que forma suas superfícies, apresentando uma poesia de concepção quase volumétrica, o mesmo acontecendo com Mandelstam. Ambos os poetas nos oferece, pois, um exemplo de cubismo poética, inclinado a dar realce aos volumes das palavras e justapor num novo equilíbrio, distintos planos verbais.

A produção poética de Mandelstam pré-revolucionária, está latente a idéia da responsabilidade do criador ante seu tempo. O verso tradicional, por seu compasso e ritmo, se distingue por complexidade semântica. Por isso foi considerado por alguns críticos como antiquado, arcaico e outras acusações mais graveis.

São anos em que se estabeleceu na Criméria, onde seu misticismo sofre novas reflexões vitimadas pelas atrocidades da Guerra Civil. Neste período Óssip é preso pelos soldados brancos, suspeito de ser um agente secreto bolchevique, mesmo simulando loucura, desequilíbrio mental. Mais tarde Mandelstam sentiu-se atraído pelas pinturas dos venezianos I. R. Tintoretto (1518-1594) e Tizian Vecelio (1488-1576).

Por força das circunstâncias e do seu temperamento, Stalin (1879-1953) sempre se identificou com um universo de violência: na conquista do poder, na preservação e consolidação do poder, no exercício diário do poder. O stalinismo tornou-se sinônimo de intolerância, de prepotência, de arbitrariedade doutrinária, de esmagamento impiedoso dos adversários, tudo isso com requintes do que alguns chamam de “crueldade oriental”. A perplexidade que, na época de Stálin, se transformou em repulsa, fê-lo escrever e ler a um grupo de amigos um fastidioso poema que o levou à prisão em 1934.

Nikolai I. Bakharin (1888-1938), político soviético que opôs a Stalin, condenado no processo dos 21 (1938) e executado; a pedido da esposa do poeta é procurado para interceder na prisão de Óssip. Graças a sua ajuda, foi comutada a condenação aos trabalhos forçados, por um exílio de três anos em Chedrin. Vejamos o poema causador do seu confinamento.

Vivemos, sem conhecer a terra em que pisamos,
A dez passos nossas falas não se ouvem,
Mas onde surge uma meia conversa
O montanhês do Kremlin não a perde. [2]

Seus dedos são gordos, inchados como vermes,
E as palavras, pesadas, são definitivas.
Riem seus bigodes de barata
E suas botas brilham.

Uma corja de chefões atarracados
Serve-lhe à volta de brinquedo – semi-homens.
Como ferraduras forja ukazes
Para atingir na testa, no sobrolho, na virilha.

Cada execução é uma festa
E é largo o peito do osseta.


Na versão do poema que caiu nas mãos da polícia secreta russa, os dois últimos versos da primeira estrofe eram:

Tudo o que se ouve é o montanhês do Kremlin,
O assassino matador do camponês.


Óssip menciona no último verso do poema, o termo osseta, que é a língua do grupo irânico oriental, falada no Cáucaso central, por aproximadamente 400 mil locutores. Havia rumores persistentes de que Stalin tinha sangue osseta. A Ossetia é uma região do Cáucaso, dividida entre a Rússia e a Geórgia (onde Stalin nasceu) e seus habitantes, do grupo iraniano, são bastante diferentes dos georgianos.

De retorno a Moscou em 1937, é preso novamente e enviado a um campo de trabalhos forçados na Sibéria, permanecendo na cidade de Vorôniej até a morte, segundo dados oficiais, a 27 de dezembro de 1938, em trânsito para Vladivostiok, doente, faminto e enlouquecido.

Óssip Mandelstam deixou obra poética pouco numerosa, além de reminiscências e escritos teóricos. Nos últimos anos, apareceram na Rússia diversos inéditos seus, bem como recordações de contemporâneos e estudos críticos, como o de Marina Tzvetaieva (1892-1941), A Prosa do Poeta (1926), em que se tem frisado o valor de sua contribuição à poesia russa.

Somente em 1991 a Rússia pôde voltar a ler um de seus maiores poetas, Óssip Mandelstam. Seus poemas foram proibidos e todos os originais que se conseguiu localizar foram confiscados e destruídos. Para preservá-los do esquecimento, a viúva do poeta, Nadiejda Mandelstam, decorou-os um por um, transformando-se literalmente numa obra completa viva do marido. Pôde assim contrabandeá-los aos poucos, cada vez que era possível ditá-los a alguém que ia sair da União Soviética, para que fossem publicados no Ocidente, entre 1964 e 1969. Deve-se o mérito de ter contribuído para a edição das Obras Reunidas , em dois volumes (Inter-Language Literary Associates, Washington, 1964). Vejamos o poema Como tantos outros, de 1920.

Como tantos outros, quero
por-me a teu serviço,
Embriagar-te com estes meus lábios
Que a aridez dos impulsos das gretas.

A palavra não sacia
a secura ardente de minha boca,
sentir uma vez mais,
o desabitar sonolento da brisa.

Os impulsos já são sombras,
porém tua luz me chama
e vou rumo a te – eu mesmo
réu rumo ao tormento.
Nem amor, nem felicidade
posso dar-te por palavra:
Ah trocaram meu sangue
por outro mais violento.

Só um instante mais
e direi ao vazio
que não és senão dor
­quanto de te me chega.
O mesmo que uma culpa
Atenazas-me rumo a te me atrai
tua delicada boca de cereja,
arrebatada de última doçura.

Voltar para onde te espero, tenho
medo se tu me faltar.
Nunca te desejei
como agora. E todos meus desejos
revertem logo em realidades.
Os impulsos já são sombras,
porém tua luz me chama.


Óssip Mandelstam é um dos maiores escritores do período soviético e do século XX. Suas primeiras produções ensaísticas começam no período ginasiano, quando escreve O Crime e o Castigo em Boris Godunóv (1906) como trabalho para a escola. Depois viria o ensaio François Villon (1910), publicado na revista Appolón (1913), O Amanhecer do Acmeísmo (1912/1913), corrente da qual foi um dos principais representantes ao lado dos poetas Nikolai Gumilov e Anna Akhmatóva, O Interlocutor (1914), Pior Tchaadáiev (1914), Skriábin o Cristianismo (1915) e outros textos em prosa. Publicou ainda os livros: Tristia (1922), O Ruído do Tempo (1925, reminiscências, publicadas no Brasil em 2000 pela Editora 34), O Selo Egípcio (1928), Viagem à Armênia (1930, reminiscências publicadas no Brasil em 2000 pela Editora 34), Lamark (1932), Sobre a fala alemã (1932).

[1] POMORSKA, Krystyna. Formalismo e Futurismo. São Paulo, Perspectiva, col. Debates nº60 (trad. Sebastião Uchoa Leite), 1972.

[2] BERNARDINA, Auroro Fornoni. Mandelstam, a Elegância da Forma. O Estado de São Paulo, 19. Jan. 1991.

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