Dirce Waltrick do Amarante
dwa@matrix.com.br
Professora de literatura infanto-juvenil na UFSC
Em julho de 1926, Monteiro Lobato disse a um amigo que tivera “uma idéia-mãe! Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos.” Tratava-se de uma ficção científica, como afirmou Lobato, e se passaria no ano 2228, às vésperas da escolha do 88ª presidente americano.
Fragmentos desse romance, que se chamou, inicialmente, O choque das raças, começaram então a ser publicados no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, no qual Lobato já colaborava.
A matéria do jornal, anunciando a publicação dos excertos da obra, dizia o seguinte: “O choque das raças será o primeiro livro nosso que vai transpor as fronteiras e que apresenta uma feição mundial.” Apesar dessa propaganda, quando Lobato foi para Nova Iorque, em 1927, onde atuaria como adido cultural, não havia ainda conseguido editar o seu romance por lá: “Meu romance não encontra editor. (...). Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue-frio o belo crime que sugeri.”
O crime a que Lobato se refere é o da esterilização da raça negra. Segundo o enredo do seu livro, isso aconteceria antes da posse do primeiro presidente negro americano, no ano 2228, eleição que provocaria o colapso do Império Americano.
O fato é que o romance, sob o pretexto de contar uma estória de amor entre a filha de um cientista norte-americano, que herdara do pai um “porviroscópio”, aparelho capaz de prever o futuro, e um brasileiro medíocre, que sonhava em ter um carro Ford, expõe às claras idéias eugenistas sobre o progresso social, tais como as já pregadas no Brasil pelo médico Renato Kehl, no seu livro Lições de eugenia (1929), onde se lê que “a nacionalidade brasileira só embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano.” Segundo o próprio Lobato, aliás, o seu romance, que duas décadas mais tarde se intitularia O presidente negro, deveria ser dedicado ao seu amigo Kehl, já que era o seu “grito de guerra pró-eugenia”.
Nada disso surpreende. Adepto do movimento eugenista brasileiro, como lembra a historiadora Pietra Diwan, Lobato aceitava, ao lado de outros intelectuais da época, “a constatação, por parte dos europeus, da impossibilidade de progresso do Brasil dada a sua composição racial (...).” Embora não seja segredo sua filiação às agremiações eugenistas e a simpatia que nutria pela causa, esse viés do pensamento do escritor nem sempre é estudado no Brasil. Preferimos enfatizar apenas o Lobato criador do Sítio do Picapau Amarelo e o sanitarista engajado, como se a faceta eugênica, se mencionada, pudesse impedir a apreciação do lado maior da sua obra. Muitas vezes, o Sítio do Picapau Amarelo é descrito como “uma espécie de paraíso” num mundo em plena ascensão do nazismo e do fascismo, um lugar “aberto para todos, sem discriminação”. Será? Dificilmente um atento leitor da obra do escritor aceitará essa interpretação. Tia Nastácia, por exemplo, a negra cozinheira do sítio, não raramente é chamada de ignorante por outros personagens da trama e até mesmo pela ponderada dona Benta: “– Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. (...) que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir histórias de outras criaturas igualmente ignorantes (...).” A boneca Emília arremata dizendo que as histórias da tia Nastácia “parecem-me muito grosseiras e bárbaras – coisa de negra beiçuda, como a tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto.”
Naturalmente, o leitor poderá afirmar que, nesses exemplos, não é a ideologia do escritor que está sendo expressa, mas sim o ponto de vista de seus personagens, que, historicamente situados, não poderiam senão emitir tais opiniões. Desconfio, porém, que esse argumento seja um subterfúgio para não encarar as questões incômodas que cercam a obra de Lobato.
O fato é que o escritor expõe nos seus livros idéias paradoxais: se por um lado Tia Nastácia é tida como ignorante, por outro lado é à sabedoria popular da “negra velha” que a pernóstica boneca recorre seguidamente. Em A chave do tamanho, Emília, nossa Alice tupiniquim, entre um tamanho e outro, cita uma máxima de tia Nastácia, atestando a validade de sua fala e opiniões. Dona Benta vai ainda mais longe e a compara a um filósofo chinês.
Em O presidente negro, também encontramos os paradoxos raciais que povoam a atmosfera ideológica do sítio, mas de forma muito mais explícita. O livro propaga com entusiasmo alguns preceitos do movimento eugênico brasileiro, ou seja, a supervisão da imigração, a esterilização das supostas “raças inferiores” e o controle de casamentos para que não houvesse miscigenação racial: “ou extirpamos os negros já, ou dentro de meio século seremos forçados a aceitar a solução negra, asfixiados que estamos pela maré montante do pigmento.” Ao final do romance, porém, a heroína, branca e de olhos azuis, se rende aos encantos do brasileiríssimo e provavelmente miscigenado protagonista da trama, originado uma raça mista, como que à revelia do autor.
Deve-se mencionar ainda que, a certo momento da obra, uma das soluções cogitadas pelos americanos para livrarem-se dos negros seria enviá-los para o Amazonas, mas “a idéia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado a trocar a identidade americana por qualquer outra.” Muito menos pela identidade brasileira, já que no Brasil prevalecia, de acordo com as cartas de um desiludido Lobato, a “miséria econômica, física, biológica e moral da nossa gente”.
Assim, no romance, uma possível solução definitiva para o problema racial seria investir num processo científico de “embranquecimento”, semelhante àquele usado, parece-me, por Michael Jackson, mais de meio século depois da publicação da ficção científica lobatiana. Aliás, como todos os negros do livro, Michael Jackson também ficou “horrivelmente esbranquiçado”, segundo expressão do escritor brasileiro. Apesar disso, explica um dos personagens do romance, “embranquecê-los aproximava-os dos brancos na cor, embora não lhes alterasse o sangue nem o encarapinhamento dos cabelos. O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até ali a ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar.”
Para citar um exemplo mais atual, Barack Obama, o primeiro presidente negro dos E.U.A., na sua autobiografia A origem dos meus sonhos, recorda-se que, na infância, viu uma “fotografia da revista Life mostrando um homem negro que havia tentado trocar de pele. Imagino outras crianças negras, naquela época e agora, passando por momentos semelhantes de revelação. Talvez esse momento aconteça mais cedo para a maioria: o aviso dos pais para não cruzar os limites de uma determinada vizinhança, ou a frustração por não ter o cabelo igual ao da Barbie (...).” Obama conclui, porém, dizendo que foi uma criança feliz, pois teve “a oportunidade de viver uma infância livre da autodescrença.”
Apesar dos esforços para tornar brancos os negros, nesse romance, a alma deles permanecia “escura”. Portanto, a eleição de um presidente negro, mesmo que este tenha se tornado esbranquiçado no transcorrer da trama, era um pesadelo, ou “era coisa bem pior – fato!”
Contudo, na ficção de Lobato, a raça branca tem a seu favor “o número e a superioridade mental”, portanto rapidamente desenvolveram um tônico capilar de “desencarapinhamento” – “as negras, sobretudo, viviam num perpétuo sorrir-se a si próprias, (...). O seu enlevo ao correrem as mãos pelas macias comas omegadas levava-as a esquecer o longuíssimo passado da humilhante carapinha.” --, cuja eficácia chegava ao ponto de tornar estéreis os negros, ao mesmo tempo que lhes alisava o cabelo. Assim, lendo o romance, percebemos que venceu o “verdadeiro” povo americano: “Tua presidência seria inútil. Tudo é inútil quando o futuro não existe.”
Quanto ao Sítio do Picapau Amarelo, é possível observar que, nele, as “raças inferiores” da trama também não deixam herdeiros e não há qualquer possibilidade de que isso venha a acontecer, já que a negra Tia Nastácia e o caboclo Tio Barnabé são solteiros convictos e pessoas de idade. A frase de um dos personagens de O presidente negro poderia também ser proferida por um dos habitantes brancos do sítio: “Tua raça foi vítima do que chamarás traição do branco e do que chamarei as razões do branco.”
Admirador de Henry Ford e do way of life americano, parece-me que Lobato não conseguiu perceber que os conflitos raciais no Brasil e nos Estados Unidos eram muito distintos entre si. No Brasil, Lobato não teve dificuldade para publicar o seu romance, uma vez que, desde a abolição da escravatura, a impressão que temos é a de que já cumprimos a nossa obrigação com a raça negra, ao deixá-la vagar livremente pelo país. Em Pequena história da República, Graciliano Ramos fala da abolição da escravatura no Brasil como sendo uma entre tantas outras decisões tomadas sem planejamento ou desacompanhadas do necessário apoio estratégico: “A alegria tumultuosa dos negros foi substituída por uma vaga inquietação. Escravos, tinham a certeza de que não lhes faltaria um pedaço de bacalhau, uma esteira na senzala (...); livres, necessitavam prover-se dessas coisas – e não se achavam aptos para obtê-las.”
Nos Estados Unidos, apesar do sectarismo racial que persiste até hoje, o romance futurista de Lobato foi considerado uma afronta aos cidadãos americanos negros, uma vez que o país tinha consciência de estar em dívida com eles. O provável editor do livro nos Estados Unidos opinou: “Infelizmente, porém, o enredo central é baseado em um assunto particularmente difícil de se abordar neste país, porque ele irá, certamente, acender o tipo mais amargo de sectarismo e, por esta razão, os editores são invariavelmente avessos à idéia de apresentá-lo ao público leitor (...). Estivesse o senhor lidando com a invasão de uma nação estrangeira, ou raça, a reação seria bem diferente, mas o negro é um cidadão americano, uma parte integrante da vida nacional (...).”
A propósito da questão racial nos Estados Unidos, ontem e hoje, Barack Obama, na sua autobiografia, lembra que a sua mãe “contava as histórias de alunos no Sul dos Estados Unidos que eram obrigados a ler livros herdados das escolas brancas e ricas, mas que conseguiam se tornar médicos, advogados e cientistas, (...).” No Brasil, como apontou Graciliano Ramos, a sociedade deixou os negros circularem livremente, sem restrições de fronteiras, não lhes oferecendo, porém, nada além disso, e nem mesmo a livros de segunda mão eles parecem ter tido acesso livre, na época de Lobato.
No tocante ao pedido de alteração da trama do romance, solicitada pelo potencial editor norte-americano, Lobato confessou que nada mudaria na sua história, pois era sim que via os Estados Unidos da América.
Não poderia deixar de mencionar, finalmente, a descrição das mulheres em O presidente negro, já que são apresentadas como dependentes dos (e submissas aos) homens: elas, depois de uma tentativa “irrefletitida” de independência, admitem seu “erro” e reconhecem que sem o concurso do “macho” nada valeriam no mundo. Mais um paradoxo lobatiano, pois sabemos que, no Sítio, as mulheres brancas, diferentemente dessas, são independentes.
Passado quase um século da publicação de O presidente negro, muitos de seus prognósticos já viraram realidade: os americanos de hoje já têm o seu primeiro presidente negro. Outros prognósticos do escritor também já se concretizaram, em parte ou no todo: o mundo virtual da Internet: “Descobriram-se novas ondas, e o transporte da palavra, do som e da imagem, do perfume e das mais finas sensações táteis passou a ser feita por intermédio delas (...). O serviço, o teatro, o concerto é que passaram a vir ao encontro do homem. Foi espantosa a transformação das condições do mundo quando a maior parte das tarefas industriais e comerciais começou a ser feita de longe pelo radiotransporte.”
Outra tecnologia atual que Lobato previu foi o processo eletrônico de votação: “os eleitores não saíam de casa – radiavam simplesmente os seus votos com destino à estação central (...). Um aparelho engenhosíssimo os recebia e apurava automaticamente e instantaneamente (...).”
O presidente negro expõe, em conclusão, um Lobato incontestavelmente eugenista, mas também o revela um inspirado visionário, atento às novas tecnologias e até mesmo à evolução da cosmética (alisamento permanente de cabelo, “embranquecimento” da pele). O livro é um convite para se reler – com visada necessariamente crítica e nada condescendente -- a obra inteira do escritor, principalmente o Sítio do Picapau Amarelo, que, ao ser divulgado exclusivamente como Literatura Infanto-Juvenil, deixou de ser relido pelos adultos e, ultimamente, parece se distanciar das próprias crianças, que o conhecem, cada vez mais, apenas pela televisão, DVD e adaptações, não raro, deturpadas da obra.
dwa@matrix.com.br
Professora de literatura infanto-juvenil na UFSC
Em julho de 1926, Monteiro Lobato disse a um amigo que tivera “uma idéia-mãe! Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos.” Tratava-se de uma ficção científica, como afirmou Lobato, e se passaria no ano 2228, às vésperas da escolha do 88ª presidente americano.
Fragmentos desse romance, que se chamou, inicialmente, O choque das raças, começaram então a ser publicados no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, no qual Lobato já colaborava.
A matéria do jornal, anunciando a publicação dos excertos da obra, dizia o seguinte: “O choque das raças será o primeiro livro nosso que vai transpor as fronteiras e que apresenta uma feição mundial.” Apesar dessa propaganda, quando Lobato foi para Nova Iorque, em 1927, onde atuaria como adido cultural, não havia ainda conseguido editar o seu romance por lá: “Meu romance não encontra editor. (...). Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue-frio o belo crime que sugeri.”
O crime a que Lobato se refere é o da esterilização da raça negra. Segundo o enredo do seu livro, isso aconteceria antes da posse do primeiro presidente negro americano, no ano 2228, eleição que provocaria o colapso do Império Americano.
O fato é que o romance, sob o pretexto de contar uma estória de amor entre a filha de um cientista norte-americano, que herdara do pai um “porviroscópio”, aparelho capaz de prever o futuro, e um brasileiro medíocre, que sonhava em ter um carro Ford, expõe às claras idéias eugenistas sobre o progresso social, tais como as já pregadas no Brasil pelo médico Renato Kehl, no seu livro Lições de eugenia (1929), onde se lê que “a nacionalidade brasileira só embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano.” Segundo o próprio Lobato, aliás, o seu romance, que duas décadas mais tarde se intitularia O presidente negro, deveria ser dedicado ao seu amigo Kehl, já que era o seu “grito de guerra pró-eugenia”.
Nada disso surpreende. Adepto do movimento eugenista brasileiro, como lembra a historiadora Pietra Diwan, Lobato aceitava, ao lado de outros intelectuais da época, “a constatação, por parte dos europeus, da impossibilidade de progresso do Brasil dada a sua composição racial (...).” Embora não seja segredo sua filiação às agremiações eugenistas e a simpatia que nutria pela causa, esse viés do pensamento do escritor nem sempre é estudado no Brasil. Preferimos enfatizar apenas o Lobato criador do Sítio do Picapau Amarelo e o sanitarista engajado, como se a faceta eugênica, se mencionada, pudesse impedir a apreciação do lado maior da sua obra. Muitas vezes, o Sítio do Picapau Amarelo é descrito como “uma espécie de paraíso” num mundo em plena ascensão do nazismo e do fascismo, um lugar “aberto para todos, sem discriminação”. Será? Dificilmente um atento leitor da obra do escritor aceitará essa interpretação. Tia Nastácia, por exemplo, a negra cozinheira do sítio, não raramente é chamada de ignorante por outros personagens da trama e até mesmo pela ponderada dona Benta: “– Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. (...) que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir histórias de outras criaturas igualmente ignorantes (...).” A boneca Emília arremata dizendo que as histórias da tia Nastácia “parecem-me muito grosseiras e bárbaras – coisa de negra beiçuda, como a tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto.”
Naturalmente, o leitor poderá afirmar que, nesses exemplos, não é a ideologia do escritor que está sendo expressa, mas sim o ponto de vista de seus personagens, que, historicamente situados, não poderiam senão emitir tais opiniões. Desconfio, porém, que esse argumento seja um subterfúgio para não encarar as questões incômodas que cercam a obra de Lobato.
O fato é que o escritor expõe nos seus livros idéias paradoxais: se por um lado Tia Nastácia é tida como ignorante, por outro lado é à sabedoria popular da “negra velha” que a pernóstica boneca recorre seguidamente. Em A chave do tamanho, Emília, nossa Alice tupiniquim, entre um tamanho e outro, cita uma máxima de tia Nastácia, atestando a validade de sua fala e opiniões. Dona Benta vai ainda mais longe e a compara a um filósofo chinês.
Em O presidente negro, também encontramos os paradoxos raciais que povoam a atmosfera ideológica do sítio, mas de forma muito mais explícita. O livro propaga com entusiasmo alguns preceitos do movimento eugênico brasileiro, ou seja, a supervisão da imigração, a esterilização das supostas “raças inferiores” e o controle de casamentos para que não houvesse miscigenação racial: “ou extirpamos os negros já, ou dentro de meio século seremos forçados a aceitar a solução negra, asfixiados que estamos pela maré montante do pigmento.” Ao final do romance, porém, a heroína, branca e de olhos azuis, se rende aos encantos do brasileiríssimo e provavelmente miscigenado protagonista da trama, originado uma raça mista, como que à revelia do autor.
Deve-se mencionar ainda que, a certo momento da obra, uma das soluções cogitadas pelos americanos para livrarem-se dos negros seria enviá-los para o Amazonas, mas “a idéia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado a trocar a identidade americana por qualquer outra.” Muito menos pela identidade brasileira, já que no Brasil prevalecia, de acordo com as cartas de um desiludido Lobato, a “miséria econômica, física, biológica e moral da nossa gente”.
Assim, no romance, uma possível solução definitiva para o problema racial seria investir num processo científico de “embranquecimento”, semelhante àquele usado, parece-me, por Michael Jackson, mais de meio século depois da publicação da ficção científica lobatiana. Aliás, como todos os negros do livro, Michael Jackson também ficou “horrivelmente esbranquiçado”, segundo expressão do escritor brasileiro. Apesar disso, explica um dos personagens do romance, “embranquecê-los aproximava-os dos brancos na cor, embora não lhes alterasse o sangue nem o encarapinhamento dos cabelos. O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até ali a ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar.”
Para citar um exemplo mais atual, Barack Obama, o primeiro presidente negro dos E.U.A., na sua autobiografia A origem dos meus sonhos, recorda-se que, na infância, viu uma “fotografia da revista Life mostrando um homem negro que havia tentado trocar de pele. Imagino outras crianças negras, naquela época e agora, passando por momentos semelhantes de revelação. Talvez esse momento aconteça mais cedo para a maioria: o aviso dos pais para não cruzar os limites de uma determinada vizinhança, ou a frustração por não ter o cabelo igual ao da Barbie (...).” Obama conclui, porém, dizendo que foi uma criança feliz, pois teve “a oportunidade de viver uma infância livre da autodescrença.”
Apesar dos esforços para tornar brancos os negros, nesse romance, a alma deles permanecia “escura”. Portanto, a eleição de um presidente negro, mesmo que este tenha se tornado esbranquiçado no transcorrer da trama, era um pesadelo, ou “era coisa bem pior – fato!”
Contudo, na ficção de Lobato, a raça branca tem a seu favor “o número e a superioridade mental”, portanto rapidamente desenvolveram um tônico capilar de “desencarapinhamento” – “as negras, sobretudo, viviam num perpétuo sorrir-se a si próprias, (...). O seu enlevo ao correrem as mãos pelas macias comas omegadas levava-as a esquecer o longuíssimo passado da humilhante carapinha.” --, cuja eficácia chegava ao ponto de tornar estéreis os negros, ao mesmo tempo que lhes alisava o cabelo. Assim, lendo o romance, percebemos que venceu o “verdadeiro” povo americano: “Tua presidência seria inútil. Tudo é inútil quando o futuro não existe.”
Quanto ao Sítio do Picapau Amarelo, é possível observar que, nele, as “raças inferiores” da trama também não deixam herdeiros e não há qualquer possibilidade de que isso venha a acontecer, já que a negra Tia Nastácia e o caboclo Tio Barnabé são solteiros convictos e pessoas de idade. A frase de um dos personagens de O presidente negro poderia também ser proferida por um dos habitantes brancos do sítio: “Tua raça foi vítima do que chamarás traição do branco e do que chamarei as razões do branco.”
Admirador de Henry Ford e do way of life americano, parece-me que Lobato não conseguiu perceber que os conflitos raciais no Brasil e nos Estados Unidos eram muito distintos entre si. No Brasil, Lobato não teve dificuldade para publicar o seu romance, uma vez que, desde a abolição da escravatura, a impressão que temos é a de que já cumprimos a nossa obrigação com a raça negra, ao deixá-la vagar livremente pelo país. Em Pequena história da República, Graciliano Ramos fala da abolição da escravatura no Brasil como sendo uma entre tantas outras decisões tomadas sem planejamento ou desacompanhadas do necessário apoio estratégico: “A alegria tumultuosa dos negros foi substituída por uma vaga inquietação. Escravos, tinham a certeza de que não lhes faltaria um pedaço de bacalhau, uma esteira na senzala (...); livres, necessitavam prover-se dessas coisas – e não se achavam aptos para obtê-las.”
Nos Estados Unidos, apesar do sectarismo racial que persiste até hoje, o romance futurista de Lobato foi considerado uma afronta aos cidadãos americanos negros, uma vez que o país tinha consciência de estar em dívida com eles. O provável editor do livro nos Estados Unidos opinou: “Infelizmente, porém, o enredo central é baseado em um assunto particularmente difícil de se abordar neste país, porque ele irá, certamente, acender o tipo mais amargo de sectarismo e, por esta razão, os editores são invariavelmente avessos à idéia de apresentá-lo ao público leitor (...). Estivesse o senhor lidando com a invasão de uma nação estrangeira, ou raça, a reação seria bem diferente, mas o negro é um cidadão americano, uma parte integrante da vida nacional (...).”
A propósito da questão racial nos Estados Unidos, ontem e hoje, Barack Obama, na sua autobiografia, lembra que a sua mãe “contava as histórias de alunos no Sul dos Estados Unidos que eram obrigados a ler livros herdados das escolas brancas e ricas, mas que conseguiam se tornar médicos, advogados e cientistas, (...).” No Brasil, como apontou Graciliano Ramos, a sociedade deixou os negros circularem livremente, sem restrições de fronteiras, não lhes oferecendo, porém, nada além disso, e nem mesmo a livros de segunda mão eles parecem ter tido acesso livre, na época de Lobato.
No tocante ao pedido de alteração da trama do romance, solicitada pelo potencial editor norte-americano, Lobato confessou que nada mudaria na sua história, pois era sim que via os Estados Unidos da América.
Não poderia deixar de mencionar, finalmente, a descrição das mulheres em O presidente negro, já que são apresentadas como dependentes dos (e submissas aos) homens: elas, depois de uma tentativa “irrefletitida” de independência, admitem seu “erro” e reconhecem que sem o concurso do “macho” nada valeriam no mundo. Mais um paradoxo lobatiano, pois sabemos que, no Sítio, as mulheres brancas, diferentemente dessas, são independentes.
Passado quase um século da publicação de O presidente negro, muitos de seus prognósticos já viraram realidade: os americanos de hoje já têm o seu primeiro presidente negro. Outros prognósticos do escritor também já se concretizaram, em parte ou no todo: o mundo virtual da Internet: “Descobriram-se novas ondas, e o transporte da palavra, do som e da imagem, do perfume e das mais finas sensações táteis passou a ser feita por intermédio delas (...). O serviço, o teatro, o concerto é que passaram a vir ao encontro do homem. Foi espantosa a transformação das condições do mundo quando a maior parte das tarefas industriais e comerciais começou a ser feita de longe pelo radiotransporte.”
Outra tecnologia atual que Lobato previu foi o processo eletrônico de votação: “os eleitores não saíam de casa – radiavam simplesmente os seus votos com destino à estação central (...). Um aparelho engenhosíssimo os recebia e apurava automaticamente e instantaneamente (...).”
O presidente negro expõe, em conclusão, um Lobato incontestavelmente eugenista, mas também o revela um inspirado visionário, atento às novas tecnologias e até mesmo à evolução da cosmética (alisamento permanente de cabelo, “embranquecimento” da pele). O livro é um convite para se reler – com visada necessariamente crítica e nada condescendente -- a obra inteira do escritor, principalmente o Sítio do Picapau Amarelo, que, ao ser divulgado exclusivamente como Literatura Infanto-Juvenil, deixou de ser relido pelos adultos e, ultimamente, parece se distanciar das próprias crianças, que o conhecem, cada vez mais, apenas pela televisão, DVD e adaptações, não raro, deturpadas da obra.
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