Amador Ribeiro Neto
amador.ribeiro@uol.com.br
Professor de teoria da poesia e literatura comparada na UFPB. mestre pela USP e doutor pela PUC-SP
Cazuza descobriu o Brasil. Escancarou a cara do país. A golpes de lâmina, é claro. Como convém a um poeta. A navalha de sua “músicapoesia” cortou fundo. Deixou uma cicatriz para as cobaias de Deus continuarem seu (dele/delas) caminho. Afinal, ele disse: “o tempo não pára”, “a burguesia fede” e “o nosso amor a gente inventa”.
Cazuza foi farol na praia de uma geração que mal conhecia o blues, ignorava a prevenção da Aids e vivia porraloucamente a ‘abertura política’ (promovida de cima pra baixo – e por militares). O garoto rebelde e insatisfeito com a vida burguesa que herdara não hesitou em colocar sua dor e seu tesão nas paradas de sucesso.
Ao som do blues e colado ao corpo da amada ele pede: “me avise quando for a hora”. Gritando um rock primitivo desafia: “Brasil, mostra tua cara”. Nos anos 80 ele é a voz e poesia de uma geração que tivera na Tropicália sua última escalada sócio-poético-musical.
Um jovem bonito e cheio de vontades mete o dedo na ferida dos corações aflitos e das mentes politicamente insatisfeitas. Une amor e política no mesmo palco. Sem sucumbir ao panfletarismo de uma certa corrente ‘engajada’ da MPB, surgida à época dos festivais, mantém-se atento às denúncias e avanços do melhor do rock internacional. Mas não se descuida da excelente MPB dos anos 20, 30 e 40, não sem razão conhecida como “Época de Ouro”.
Antenado com o ontem e o agora, nunca hesitou em expor as dores de um eu-lírico dilacerado pelo desamparo, pela falta de amor, pela inadequação ao mundo: “você me quer? / você cuida de mim? / mesmo que eu seja uma pessoa / egoísta e ruim?” ele pergunta sem dissimulações, mergulhado na poeticidade da linguagem infantil de um certo Bandeira. Mas se no poeta pernambucano o lado frágil e criança emerge em situações bem-humoradas (como em ‘Madrigal tão engraçadinho’), em Cazuza o adulto volta à infância através da (fratura) da carência afetiva (exposta).
Talvez por isto mesmo um de seus discos se intitule “Só se for a 2”, o que aponta para a inclusão do outro no projeto deste sujeito primeiro. O outro aparece como possibilidade do eu safar-se do inferno. O outro é figura fundante e fundamental. É a possibilidade do céu na terra. Ainda que provisoriamente.
Mas quem é este outro? É o homem, a mulher, o governo, a família, a religião, a droga, o sexo; enfim, o escambau. O outro é complemento de aproximação e repulsa. Motivo de amor e escárnio. O outro é, de fato, complemento indispensável. Tanto a solidão pessoal como a marginalidade social são inimigos combatidos pela evocação do outro.
A não segregação entre indivíduo apaixonado e prática política é uma das metas mais almejadas pelos artistas. Infelizmente a maior parte sucumbe a um ou outro pólo. Com Cazuza não. Ele sente e sabe. Canta: “Meu partido é um coração partido”. Que deve ser entendido também como “Meu partido é um coração-partido”.
Por isto o eu de suas composições ama sobre jornais: retratos e representações da vida cotidiana. Política, lazer, economia, esporte, cultura, classificados. Todas as notícias, todos os assuntos, todos os temas se amalgamam em Cazuza
Assim, Rimbaud e Dolores Duran passeiam por suas letras e músicas de mãos, copos, drogas e corpos dados. Noel Rosa e Mick Jagger, idem. Lupicínio Rodrigues e Jack Kerouac são companheiros de estrada na busca desenfreada por sentidos para a vida nonsense. A busca por uma estabilidade emocional e sócio-política deste eu aflito encontra em Fassbinder e em Glauber Rocha a violência/virulência de imagens cinematográficas neobarrocas. Os ambientes soturnos de Fassbinder e o sol enlouquecedor de Glauber refletem-se/reverberam-se nos artifícios das letras e dos acordes de Cazuza. Viva Cazuza!
amador.ribeiro@uol.com.br
Professor de teoria da poesia e literatura comparada na UFPB. mestre pela USP e doutor pela PUC-SP
Cazuza descobriu o Brasil. Escancarou a cara do país. A golpes de lâmina, é claro. Como convém a um poeta. A navalha de sua “músicapoesia” cortou fundo. Deixou uma cicatriz para as cobaias de Deus continuarem seu (dele/delas) caminho. Afinal, ele disse: “o tempo não pára”, “a burguesia fede” e “o nosso amor a gente inventa”.
Cazuza foi farol na praia de uma geração que mal conhecia o blues, ignorava a prevenção da Aids e vivia porraloucamente a ‘abertura política’ (promovida de cima pra baixo – e por militares). O garoto rebelde e insatisfeito com a vida burguesa que herdara não hesitou em colocar sua dor e seu tesão nas paradas de sucesso.
Ao som do blues e colado ao corpo da amada ele pede: “me avise quando for a hora”. Gritando um rock primitivo desafia: “Brasil, mostra tua cara”. Nos anos 80 ele é a voz e poesia de uma geração que tivera na Tropicália sua última escalada sócio-poético-musical.
Um jovem bonito e cheio de vontades mete o dedo na ferida dos corações aflitos e das mentes politicamente insatisfeitas. Une amor e política no mesmo palco. Sem sucumbir ao panfletarismo de uma certa corrente ‘engajada’ da MPB, surgida à época dos festivais, mantém-se atento às denúncias e avanços do melhor do rock internacional. Mas não se descuida da excelente MPB dos anos 20, 30 e 40, não sem razão conhecida como “Época de Ouro”.
Antenado com o ontem e o agora, nunca hesitou em expor as dores de um eu-lírico dilacerado pelo desamparo, pela falta de amor, pela inadequação ao mundo: “você me quer? / você cuida de mim? / mesmo que eu seja uma pessoa / egoísta e ruim?” ele pergunta sem dissimulações, mergulhado na poeticidade da linguagem infantil de um certo Bandeira. Mas se no poeta pernambucano o lado frágil e criança emerge em situações bem-humoradas (como em ‘Madrigal tão engraçadinho’), em Cazuza o adulto volta à infância através da (fratura) da carência afetiva (exposta).
Talvez por isto mesmo um de seus discos se intitule “Só se for a 2”, o que aponta para a inclusão do outro no projeto deste sujeito primeiro. O outro aparece como possibilidade do eu safar-se do inferno. O outro é figura fundante e fundamental. É a possibilidade do céu na terra. Ainda que provisoriamente.
Mas quem é este outro? É o homem, a mulher, o governo, a família, a religião, a droga, o sexo; enfim, o escambau. O outro é complemento de aproximação e repulsa. Motivo de amor e escárnio. O outro é, de fato, complemento indispensável. Tanto a solidão pessoal como a marginalidade social são inimigos combatidos pela evocação do outro.
A não segregação entre indivíduo apaixonado e prática política é uma das metas mais almejadas pelos artistas. Infelizmente a maior parte sucumbe a um ou outro pólo. Com Cazuza não. Ele sente e sabe. Canta: “Meu partido é um coração partido”. Que deve ser entendido também como “Meu partido é um coração-partido”.
Por isto o eu de suas composições ama sobre jornais: retratos e representações da vida cotidiana. Política, lazer, economia, esporte, cultura, classificados. Todas as notícias, todos os assuntos, todos os temas se amalgamam em Cazuza
Assim, Rimbaud e Dolores Duran passeiam por suas letras e músicas de mãos, copos, drogas e corpos dados. Noel Rosa e Mick Jagger, idem. Lupicínio Rodrigues e Jack Kerouac são companheiros de estrada na busca desenfreada por sentidos para a vida nonsense. A busca por uma estabilidade emocional e sócio-política deste eu aflito encontra em Fassbinder e em Glauber Rocha a violência/virulência de imagens cinematográficas neobarrocas. Os ambientes soturnos de Fassbinder e o sol enlouquecedor de Glauber refletem-se/reverberam-se nos artifícios das letras e dos acordes de Cazuza. Viva Cazuza!
Anexo: Entrevista para Teresa Cristina Rodrigues.
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