segunda-feira, 27 de julho de 2009

Jean Baudrillard, a simulação desencantada

José Aloise Bahia
josealoise@terra.com.br
Jornalista e escritor

Jean Baudrillard nasceu em 20 de julho de 1929 em Reims, França, numa família de trabalhadores rurais. Faleceu em março de 2007 com 77 anos. Começou a lecionar em 1966 na Universidade de Paris X-Nanterre, onde, juntamente com Henri Lefebvre, completou sua tese de sociologia. Em 1968, publica o livro “O sistema dos Objetos”, influenciado por outro - “Sistema da Moda”, de Roland Barthes. Em 1969, já inserido no grupo de Barthes (Ecole des Hautes Etudes) escreve um importante artigo também sobre a questão dos objetos e a função do signo na revista “Communications”. Seguem-se outros livros: “A Sociedade de Consumo” (1970), “For a Political Economy of the Sign” (1972), “O Espelho da Produção” (1973) e “Seduction” (1979). Rompe com o marxismo já no começo da década de 1970, tornando-se no meio acadêmico, intelectual e político um “ideológico inclassificável”, principalmente depois de publicar “A Transparência do Mal: ensaios sobre os fenômenos extremos”.

Após a metade da década 1980, coincidentemente em seguida a morte de Barthes, assume uma postura bem mais independente em suas análises, não se ligando a grupos ou qualquer corrente de pensamento. Vira um livre-pensador e o “icononoclasta do sistema”. Ao voltar dos Estados Unidos, na França escreve “América” (1986) – que deu origem ao excelente documentário adaptado, com texto e direção de João Moreira Sales e Nelson Brissac Peixoto, realizado em 1989 pela extinta TV Manchete – livro no qual afirma ser os Estados Unidos a realização da utopia da modernidade, e o restante do mundo a versão dublada com legenda no reino das imagens. Isso faz lembrar outro estudo interessante. De autoria de outro francês. Observador atento, Alex de Tocqueville, há quase dois séculos, realizou uma viagem semelhante e escreveu um dos melhores livros de ciência política, adotado em quase todas as universidades do mundo: “A Democracia na América (1835/40)”, ao analisar a sociedade americana, após a guerra da independência em 1776.

Jean Baudrillard e o seu estilo provocante e desafiador, postura profética e apocalíptica, seja em conferências e/ou entrevistas - várias aqui no Brasil - chegou ao auge com as afirmações de que a Guerra do Golfo (1991) não aconteceu. Argumentou que as transmissões televisivas do evento não eram o seu atestado de verdade, credibilidade e com a manipulação das imagens não se podia saber qual dos lados foi vitorioso. Segundo Baudrillard, essa guerra foi um “acontecimento fantoche”. De outra maneira, podemos imaginar que essa guerra foi uma “guerra pós-moderna”. Destituída de “razão”, “vazia” e “simulacral”. Pois a “pós-modernidade” é o tempo/espaço líquido - termo usado por Zygmunt Bauman - caracterizado pelo desaparecimento das grandes narrativas, das ideologias, plugada/ligada pelo excesso e a rapidez das informações, pela estrutura corporal da “carne sem ossos” na confusão entre o real e o imaginário, e a falta de “limites” instrumentais da razão da modernidade, ou seja, a razão da modernidade e a razão contemporânea não dão conta de interpretar as referências e transparências, o mundo dos acontecimentos e as várias manifestações da(s) contemporaneidade(s). Pois vivemos num mundo plural, híbrido, contaminado, fragmentado em constante rotação e (des)rotação. Em fluxo filtrado, contínuo e descontínuo, confuso e aparente. Fugaz. Nos dizeres de Omar Calabrese, habitamos uma “Idade Neobarroca”, na qual tudo é clássico e barroco, moderno e romântico ao mesmo tempo. Confluímos para um mix/mistura do humano e o tecnológico, operacional e pragmático. O reino da ilusão e da desilusão. O reino da morte da própria realidade. Detalhe: Baudrillard sempre recusou o título “pós-moderno”. Vamos dizer que desejasse ser conhecido como um “contemporâneo”. Outro detalhe, que não posso esquecer de mencionar: no final dessa coluna “Um Outro Exercício Estético” de março de 2007, tem uma lista com os principais livros do pensador, publicados em várias editoras no Brasil e Portugal.

Sociedade do Espetáculo - Jean Baudrillard é considerado por muitos o “sociólogo das maiorias silenciosas” e o “filósofo da catástrofe e extinção do real e do social”, por conseguinte um pensador que trabalhou em torno da crítica da “pós-modernidade”, envolvendo toda uma reflexão sobre a tecnologia e suas implicações. Desta maneira, Baudrillard estabelece um novo foco: a reprodução. Em contraste com o paradigma modernista de criação e produção, confirmando o estado de espanto da sociedade contemporânea e a máxima de que não mais existe uma forma crível e aceitável de explicação das coisas em uma era da racionalidade proposital.

O seu objeto de estudo se compõe da análise da sociedade contemporânea enquanto sociedade de consumo, produtora de mitos e estruturas excludentes. A base do pensamento de Jean Baudrillard é construída sob um exame complexo e objetivo dos tempos atuais, em que o ser humano se afasta cada vez mais do mundo real e natural, e se concentra no mundo das imagens da televisão e dos meios de comunicação de massa.

De formação marxista, Baudrillard faz uma reavaliação crítica de alguns postulados escritos por Karl Marx no século 19. Nesta revisão e atualização do pensamento proposto pelo pensador alemão, o autor destaca que o mundo atual é construído a partir de uma nova cultura de massa, na qual as tecnologias da reprodução pautadas nos signos e nas imagens são os elementos ativos de todo o processo. No final da década de 1960, não podemos esquecer também as influências das idéias do também pensador francês, o situacionista Guy Debord, a partir do livro “A Sociedade do Espetáculo”, publicado em 1967, ao apontar que a forma assumida pelas mercadorias, e que substituiria todas as outras no processo de dominação ideológica, seriam as imagens.

É neste novo contexto, o mundo regido pela imagem e o incessante consumo delas, que se impõe a Baudrillard uma série de reflexões, revisões e atualização no pensamento proposto por Marx. Baudrillard principia da máxima do pensador germânico de que o econômico (infra-estrutura) é que determina todos os outros elementos sociais (superestrutura). O modo de produção é a base de todo o sistema. Onde o valor de uso das mercadorias é diretamente proporcional à utilidade e satisfação das necessidades dos indivíduos. O valor de uso constitui o “suporte material” do valor de troca. O valor de troca, subordinado ao valor de uso, estaria relacionado ao mercado, ou seja, a sua “forma de mercadoria”, por extensão é por assim dizer o seu “preço” enquanto mercadoria no mercado, em relação às outras mercadorias existentes, as quais também tiveram trabalho humano socialmente necessário para consumá-las.

A reavaliação crítica de Baudrillard parte do valor de uso para a criação de outros tipos de valores. Já não bastam os valores de uso e troca para mensurar os objetos (as mercadorias) em relação à nova realidade contemporânea. Existe algo, além disso, pois o objeto também tem o valor de símbolo, logo o objeto também possui valor de signo, pleno de sentido e significado. O mundo das trocas agora não somente acontece a partir de “permutas” meramente econômicas de mercadorias e manufaturas, mas também, e quase na sua totalidade, num “novo mundo” de trocas simbólicas, dominado por signos, imagens e representações. Cabe aqui ressaltar que, a partir das reflexões da semiologia e da semiótica, as imagens estão sempre em lugar das coisas e não nas coisas: esse detalhe caracteriza e reforça o seu caráter simbólico. Neste “novo mundo”, os meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, são os elementos que fazem esta mediação e trocas de signos e símbolos. De maneira apocalíptica, a resistência, como aponta Baudrillard, parece estar somente num “ato de recusa” em participar deste sistema do mundo contemporâneo.

Quatro Lógicas Distintas - Para avançar a reflexão é pertinente observar a distinção feita por Baudrillard em relação aos objetos, sob o enfoque de quatro lógicas distintas: 1) A lógica das operações práticas e necessidades individuais (valor de uso); 2) A lógica do mercado (valor de troca); 3) A lógica das trocas simbólicas acontecidas no dia-a-dia (valor de símbolo) e 4) A lógica da representação, diferenciação e status (valor de signo). Um outro aspecto que deve ser ressaltado é esta palavra “status”, que é derivada do latim “statutum”, e se refere a “estatuto”, “sustentação”, “ficar de pé”, ou estar numa situação diante dos olhos do mundo e dos outros; num sentido mais amplo, o “statutum” seria uma espécie de “documento” que organiza os princípios de uma sociedade. Por extensão, “status” é considerado também um tipo de posição diferenciada e favorável numa determinada sociedade; uma consideração, um renome, um prestígio, uma posição que representa a maneira como nos sentimos em relação às outras pessoas, os quais também não deixam de significar como os outros se sentem em relação a nós. Logo, o “status social”, refere-se a um tipo de prestígio publicamente atribuído a posições e trabalhos específicos dentro da sociedade.

Na sociologia de Max Weber, determinados grupos sociais, seus estilos e padrões de vidas diferenciados pressupõem também um sistema de valores, crenças e consumos diferenciados. Todavia, na contemporaneidade, o que realmente importa é o “status social” relacionado ao prestígio atribuído à posição social. É algo semelhante à mesma matriz romana para “Estado”, para definir uma espécie de posição relativa de alguém na sociedade. Eis um elemento singular no novo conjunto de ideologias que diferencia e iguala ao mesmo tempo. Diferencia, pois existem poucos que detêm muito (por exemplo, os capitalistas, que vivem uma situação financeira favorável e controla a riqueza circulante), e iguala, porque também todos querem e procuram este status, o qual pode ou não ser pré-fabricado pelas ideologias dominantes (para contagiar os vários públicos-alvos, ávidos de consumo), partindo do pressuposto psicológico que todo ser humano também é movido pelo desejo e a procura de prestígio, status e diferenciação em relação aos demais. Não podemos esquecer que, no mundo atual, muitos trabalham de maneira ávida, não somente pelo dinheiro em si, a manutenção de suas famílias, etc., mas e principalmente por uma incontrolável vontade de ter status, ser conhecido, reconhecido, famoso, visível, consumado, ser lembrado como “imagem” de sucesso. Este é o reino da imagem em sua forma plena: a sua ostentação e o seu valor de status e prestígio. Adam Smith já preconizava que o prazer proporcionado pela riqueza reside em exibi-la aos outros.

De acordo com as teorias propostas por Baudrillard, as quatro lógicas apresentadas anteriormente equivaleriam às questões da utilidade, do mercado, do presente e do status. Reitero que, no livro “For a Critique of the Political Economy of the Sign”, ele enumera estas lógicas como: primeiro, o objeto torna-se um instrumento; na segunda, um bem; na terceira, um símbolo; e na quarta, um signo. Sendo as mercadorias (objetos) tudo ao mesmo tempo, ou seja, contêm em si todas as quatro lógicas apresentadas (aqui coexistem as influências de Saussure e os estruturalistas – Jakobson, Althusser, Benveniste e até Bourdieu, etc.). Renovo que além do objeto possuir um valor de uso, a base de todos os outros valores, valor de troca e valor de símbolo, ele possui também uma capacidade de representação e significar status (valor de signo).

Em outras palavras, estes objetos são produzidos não somente para saciar uma necessidade humana (o início de tudo), muito mais: para diferenciar e significar um status, prestígio, um estilo de vida, uma ideologia, incorporando-se aí as suas funções psicológicas (o reino das escolhas do indivíduo) e culturais (o reino da sociedade). Neste estágio, as marcas, imagens e grifes valem mais que as próprias mercadorias. Transformam-se em novos signos, sendo este o novo fator de diferenciação, status e valorização que distingue todo o sistema de trocas econômicas. Em termos ideológicos, o discurso assume também outros rumos. Para Baudrillard esta nova sociedade consumista é também a sociedade do discurso da denúncia do próprio consumo.

Um Novo Código - Baudrillard aponta também que esta nova sociedade possui um novo código. Código entendido a partir do livro “Informação, Linguagem, Comunicação” de Décio Pignatari, como a própria língua, ou um novo sistema de símbolos que convencionada, representa e transmite uma mensagem entre uma fonte (emissor) e um destino (receptor). Os novos meios de comunicação, dentro desta nova sociedade, estabelecem “ligação direta” consigo mesmo, e põem em funcionamento um novo sistema de símbolos, o elemento vital que perfaz uma nova economia política, pautada na troca de valores simbólicos e distribuição, que são atualizadas de forma permanente pelos seus vários discursos, sujeitos a algumas interrogações. Entretanto, fechados, pela sua precisão, busca de perfeição e a reivindicação de um “efeito de realidade” advinda das imagens produzidas, perfazendo um cerco bem fortalecido, um bunker, alheio e “inimigo direto” de toda e qualquer crítica. Desta maneira, são os símbolos formados e criados, principalmente pelas imagens, que põem em funcionamento um novo valor de troca entre as pessoas em seus diálogos diários. Eis o princípio de uma novíssima construção social da realidade consubstanciada pela troca mediática, e não somente pelo mundo da vida real e natural.

Pois bem, vamos dizer também que esta nova sociedade possui uma nova linguagem, a partir deste novo código. E este novo código é híbrido. Podemos chamá-lo de código com informações e natureza digital-analógico. Somatória de termos e quantidades do digital: constituída por dígitos, unidades que se manifestam separadamente, como o alfabeto, sistema numérico, notas musicais, etc., como observa e destaca Pignatari, “Todo tipo de cálculo que implique em contagem é digital”, mais as mensagens do tipo analógico: os gráficos, as régua de cálculos, matrizes, etc. A amálgama e absorção das características do sistema analógico pelo digital, conduzindo a criação de computadores e sistemas híbridos mais potentes e modernos, aumentaram a velocidade da informação, permitindo uma visão “mais elaborada” em seu conjunto.

Nesta fusão dos sistemas de códigos, sabemos que o analógico está mais próximo do mundo físico que do mundo mental. O sistema analógico contém em si (de forma implícita) a idéia de modelos, de mediação, mensuração, imitação e sistemas combinatórios, aproximando-se do simulacro, algo criado e controlável, repartidos em unidades do sistema digital. Para Baudrillard este novo código está relacionado com o código binário do DNA, a tecnologia da informática, as imagens bidimensionais e digitais da televisão, a telefonia moderna (em suas várias bandas e a internet) e as inovações e gravações do áudio. Em suma, este novo código é a tecnologia da informação. Nesta fase, o código supera a era do signo lingüístico. Pois, a sua reprodução é de outra ordem, não diretamente do signo enquanto representação, e sim do novo código mediático, que já é a cópia da cópia, apagando aí todos os aspectos do original (a realidade).

Exemplos deste estágio são a realidade virtual, o holograma e as comunicações globais que utilizam as fibras óticas. Aqui, a infração ao código é a própria simulação. É o estágio além da fronteira da realidade, e, sua conseqüência é o total desaparecimento do real. A origem das coisas não parte de sua gênese (a própria realidade natural), mas sim através de combinações, fórmulas, gráficos, sinais codificados e matrizes de números, apagando o limite dos seus opostos e antônimos. Baudrillard observa que vivemos nesta era do novo código, a qual traz as suas conseqüências nefastas nas mudanças rápidas em suas formas simbólicas e materiais, amparadas cada vez num mundo dominado e manipulado pelo exagero das imagens apresentadas pelas agendas e ilhas de edições da mídia.

Transestética - Após os anos de 1980, Baudrillard assume uma concepção mais radical, a partir das conseqüências da difusão do novo código nas sociedades modernas contemporâneas. Neste momento e situação, relembramos que, o código para Baudrillard já está relacionado a todo o sistema bidimensional da computadorização e digitalização existente nos establishments dos países mais desenvolvidos, o qual permite uma perfeita reprodução do objeto ou situação acontecida. Desta maneira acontece o que ele chama de “infração do código”, viabilizando ultrapassar as barreiras do real: eis o princípio da hiper-realidade.

Baudrillard sustenta que a contínua produção das mercadorias sociais, mais precisamente produção de imagens sociais ou signos (as novas mercadorias), produz e reproduz uma economia política não mais e somente de mercadorias (manufaturas), e sim uma economia política do signo, sendo ele o elemento que operacionaliza todas as trocas sociais. Logo, todo o processo de produção, distribuição e manipulação dos signos produzidos em geral, como automóveis, imagens das pessoas, presidentes, artistas, marcas, etc., instiga a formação de um novo tipo de opinião pública. Nesta nova etapa da Indústria Cultural, toda ela operacionalizada pelo significante, não existe mais barreiras referenciais em relação ao signo.

Segundo Baudrillard, no livro Tela Total: mitos-ironias da era do virtual e da imagem, “O significado e o referente foram abolidos para o único proveito do jogo de significantes, de uma formalização generalizada na qual o código já não se refere a nenhuma ‘realidade’ subjetiva ou objetiva, mas à sua própria lógica”. Ocorrendo uma espécie de substituição, dissolução e indistinção do que seja o Verdadeiro e o Falso: a tecnologia dos meios de comunicação de massa não consegue mais reproduzir uma realidade pré-existente, ao contrário, produz o real.

A contemporaneidade é um produto das inter-relações de todas as mídias: a televisão, o vídeo, o cinema, o DVD, a música, a telefonia, o rádio, os jornais e revistas impressas, a fotografia, a internet, o plasma, etc. A produção de sentidos já não passa pelo olhar humano, a própria câmera de televisão incumbe por si só de fazer o olhar. Parecendo que todos os acontecimentos do mundo são dirigidos a elas. Cabendo então a elas (as câmeras de TVs) sua função primordial: produzir as imagens, o espetáculo por inteiro, ocasionando uma inversão de valores, uma mistura sem igual no reino da representação.

Baudrillard apresenta-nos um argumento convincente do seu efeito, em A Ilusão Vital: “Substituímos a transmutação dos valores por sua comutação, sua transfiguração recíproca por sua indiferença mútua e sua confusão. No fundo, sua transdesvalorização. A conjuntura contemporânea de reabilitação de todos os valores e de sua comutação indiferente é a pior de todas. Até mesmo a distinção do útil e do inútil não pode mais ser colocada, devido ao excesso de funcionalidade que leva à sua contaminação – é o fim do valor de uso. O verdadeiro se dilui frente ao mais verdadeiro – é o reinado da simulação. O falso é absorvido pelo demasiado falso para ser falso – é o fim da ilusão estética. E a perda do mal é ainda mais dolorosa que a do bem, a do falso mais dolorosa ainda que a do verdadeiro”. Seria uma situação transestética, de implosão, na qual a arte perde o seu poder como fenômeno próprio, seu poder de reação, suas normas e juízos de valores.

Neste contexto, a reabilitação do valor esbarra na sua própria estratégia fatal, pois ele vai além de si mesmo. Coexistindo um só caminho, como aponta Baudrillard, no mesmo livro citado anteriormente: “Só podemos opor ao destino do valor o destino da forma. Todas as formas se degradaram sucessivamente em valores, tal como as diversas formas de energia se degradam sucessivamente em calor. Degradação na estética como valor, na moral como valor, na ideologia como valor. Mas os próprios valores se degradam, terminando por se confundirem no seio de um universo fractal, aleatório e estatístico, na indiferença e na equivalência, segundo uma aceleração perpétua semelhante ao movimento browniano das moléculas. Perdemos assim o valor de uso; depois o bom e velho valor de troca volatilizado pela especulação, e estamos a caminho de perder até mesmo o valor-signo em proveito de uma sinalética indefinida, perder até mesmo toda uma lógica diferencial do signo para uma circulação logicial indiferenciada. Mesmo o signo não é mais o que era. Entropia física, entropia metafísica: todo valor é colocado sob o signo da entropia, como toda diferença sob o signo da indiferença”.

O novo código, que já opera por todo o mundo, inclusive nos países menos desenvolvidos, é o fator contaminante da forma. O seu desdobramento: “À Hipótese desencantada do valor, opõe-se então a hipótese encantada da forma. Pois se todos os valores parecem em vias de desaparição devido a um processo irresistível, as formas, pelo menos em sonho, parecem indestrutíveis. E a armadilha está em querer salvar os valores a qualquer preço, quando a perda fundamental seria a das formas”.

Simulacro e Simulação: a precessão dos simulacros

De acordo com as idéias e a ontologia de Platão, convencionou-se que a palavra simulacro é uma cópia de uma cópia. Neste particular e na disposição estética geral, observa-se que esta cópia da cópia contém menos verdade associada ao objeto e matriz em questão. Muito mais que uma cópia da cópia, esta evita um contato direto com sua fonte e razão conceitual: a própria realidade.
O livro “Simulacros e Simulação” foi escrito no final da década de 1970 e princípios da de 1980. A tradução do francês para a edição em língua portuguesa de Portugal é de 1991. Num conjunto de ensaios, Baudrillard aborda a questão do hiper-real e suas implicações na perda do referencial por parte da humanidade, através de modelos e modelagem, de uma realidade sem origem nela mesma. O ensaio mais importante e influente é o primeiro: “A Precessão dos Simulacros” (na tradução do francês original para o português de Portugal). Outro, não menos importante e referência teórica, chama-se “Implosão do Sentido nos Media”.

Passemos à exposição e reflexão desses dois textos teóricos. De acordo com o ensaio nativo, a humanidade vive hoje num tempo em que já não se exige que os signos tenham algum contato verificável com o mundo que supostamente representam. Esta passagem no livro é fundamental, como afirma Baudrillard:

Já não existe o espelho do ser e das aparências, do real e do seu conceito. Já não existe coextensividade imaginária; é a miniaturização genética que é a dimensão da simulação. O real é produzido a partir de células miniaturizadas, de matrizes e de memórias, de modelos de comando – e pode ser reproduzido um número indefinido de vezes a partir daí. Já não se tem de ser racional, pois já não se compara com nenhuma instância, ideal ou negativa. É apenas operacional. Na verdade, já não é o real, pois já não está envolto em nenhum imaginário. É um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos combinatórios num hiper-espaço sem atmosfera. Nesta passagem a um espaço cuja curvatura já não é a do real, nem a da verdade, a era da simulação inicia-se, pois, com uma liquidação de todos os referenciais – pior: com a sua ressurreição artificial nos sistemas de signos, material mais dúctil que o sentido, na medida em que se oferece a todos os sistemas de equivalência, a todas as oposições binárias, a toda a álgebra combinatória. Já não se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia. Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação máquina sinalética metaestável, programática, impecável, que oferece todos os signos do real e lhes curta-circuita todas as peripécias. O real nunca mais terá oportunidade de se produzir – tal é a função vital do modelo num sistema de morte, ou antes de ressurreição antecipada que não deixa já qualquer hipótese ao próprio acontecimento da morte. Hiper-real, doravante ao abrigo do imaginário, não deixando lugar senão à recorrência orbital dos modelos e à geração simulada das diferenças”.

Esta discrepância e estranha capacidade dos atuais meios de comunicação de massa, sempre recorrente aos modelos produtivos, fazem com os signos percam a sua capacidade de representação das coisas. Eles se tornam signos vazios e constroem as simulações, dentro de um processo contínuo de produção e circulação de signos, sendo o seu último estágio histórico o das simulações. Assim o simulacro é o oposto da representação, pois ele parte da negação radical do signo como valor, e aniquila todo tipo de referência. Como ressalta Baudrillard: “Enquanto a representação tentar absorver a simulação interpretando-o como falsa representação, a simulação envolve todo o próprio edifício da representação como simulacro”. Aqui os signos não têm nenhum contato verificável e verdadeiro com o mundo representado.

Baudrillard apresenta as passagens e estágios sucessivos da imagem até chegar a condição de simulacro. Partindo de uma evolução das sociedades primitivas (para Baudrillard, aquelas em que o real e os signos estão perfeitamente relacionados) até o estágio atual, caracterizado pela reprodução incessante de signos e informação.

Inicialmente, no plano da história, o signo é “reflexo de uma realidade profunda” (esta fase de acordo com alguns estudiosos seria o estágio da fundação e função de linguagem referencial e/ou científica, postuladas por Jakobson). Aqui a imagem é uma representação perfeita. Uma aparência, guardando vestígios básicos e sagrados com o objeto o qual representa. É o signo por excelência. Num segundo momento, “a imagem mascara e deforma uma realidade profunda”. Ela é um malefício (domínio da má aparência). Baudrillard em algumas entrevistas correlaciona esta etapa à questão da ideologia e falsa consciência, a qual impede que as pessoas deixem de ver o seu verdadeiro estado de alienação e exploração. No terceiro estágio, o signo “mascara a ausência de realidade profunda” e “finge ser uma aparência”, tornando-se o domínio da sedução e fascinação exercida por meios artificiais. Podemos pensar num exemplo apresentado por Baudrillard noutro ensaio do mesmo livro para esta terceira ordem: o desprezo dos iconoclastas pelas imagens divinas, a qual acreditavam que estas próprias imagens (pelo fato de existirem) legitimavam a ausência da própria divindade. O último estágio, o signo “não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro”. É a primazia do simulacro. Esta nova ordem do signo, baseia-se na “Produção desenfreada de real e de referencial, paralela e superior ao desenfreamento da produção material: assim surge a simulação na fase que nos interessa – uma estratégia de real, de neo-real e de hiper-real, que faz por todo o lado a dobragem de uma estratégia de dissuasão”.

Outra maneira de pensar o simulacro - Uma outra interpretação pode ser feita a partir de uma pergunta da jornalista Cristina Mateo, da revista espanhola “AjoBlanco”, no final da década de 1990, para Jean Baudrillard, numa matéria intitulada “Os intelectuais Nunca Existiram”, retirada da internet, com tradução de Rosa Castelo. Na íntegra:

Cristina Mateo: Em “Simulacros e Simulação”, 1978, diz que o real não se pode representar e que são os signos que o constroem, as ‘simulações’. Fala de diferentes ‘ordens de simulacro’ num processo onde a crescente circulação dos signos se converte em domínio e, posteriormente em substituição do real, o seu último estágio é ocupado pelas simulações. Acredita que países do sul da Europa - Espanha em concreto, ainda em processo de elaboração da identidade – terá alcançado essa Terceira Ordem de simulacro, ou ainda mantém uma relação entre o real e os seus signos?

Jean Baudrillard: A minha teoria de simulação indica uma evolução desde o que se poderia chamar sociedades primitivas (aquelas em que o real e os signos estão perfeitamente relacionados) até uma ordem que denominaria como ‘Primeira Ordem’ (os séculos XV a XVIII) onde os signos se referem a um significado determinado pela classe, o prestígio e o status. Chega-se assim a uma ‘Segunda Ordem’ de simulacro que se dá a partir da Revolução Industrial, caracterizada pela reprodução do signo, sem se referir a ele, baseado na lei do valor comercial. Finalmente temos a ‘Terceira Ordem’ de simulacro, que é a nossa sociedade, onde os signos já são pura simulação (tecnologia de informação, genética). Daí que não vejo porque razão Espanha e Itália, onde os meus trabalhos estão traduzidos e conhecidos, não façam parte dessa terceira ordem. E por isto é complicado falar de simulacro nos países do Terceiro Mundo.”

Entretanto a tradução do livro de Baudrillard para o português já faz mais de uma década e a tecnologia da informação e a genética estão, atualmente, bastante evoluídas no Brasil. Tanto no uso da internet, projeto genoma humano, e, também na utilização de imagens simuladas no aprendizado de pilotos de aviação, e em alguns programas televisivos, como o Linha Direta da Rede Globo de Televisão. Mesmo assim, na resposta podemos observar que na “Terceira Ordem” apontada por Baudrillard não existe mais representação e domínio das aparências, mas um reino absoluto da simulação. Este é o reino da sociedade contemporânea, pautada na produção em série de imagens e signos sem nenhuma razão justificada na realidade, onde o objeto é preterido pela imagem, a cópia ao original, o simulacro (a reprodução técnica) ao real. Esta tem sido a história do mundo ocidental. Desde a perda da aura imagética da obra de arte no curso do tempo – como aponta Walter Benjamim – até a era de sua reprodutibilidade técnica, a cultura da humanidade tem perseguido este simulacro perfeito como a própria realidade.

E, hoje, como este simulacro e hiper-real estão presentes no mundo das comunicações sociais? Na sua grande totalidade na programação da televisão, a qual desempenha um papel fundamental ao simular através das imagens o mundo dos acontecimentos, através de informações e notícias, significando o mascaramento da diferença entre o real e o imaginário, entre o ser e a aparência. Elas potencializam o simulacro, o qual é passado como se fosse o real. A TV como a fotografia e a policromia embelezam, enfeitam, espetacularizam o real. Fabricam um hiper-real, um real mais real e mais interessante que a própria realidade. Acresce-se a isto cada vez mais no plano técnico e artificial, instrumentos intensificadores do hiper-real, a utilização da internet, sites, e-mails, telefones e programas de edição e simuladores em computadores num contínuo show de simulação do espaço hiper-real e espetacular, que mexe com o desejo de consumo de todos.

Este hiper-real simulado é fascinante, pois é o real intensificado na forma, cor, tamanho e propriedades. Parece um mundo de sonhos, que existe para nos servir, e que nos modela através da publicidade com suas imagens sedutoras. O mais certo neste ambiente é que entre as pessoas estão a tecnologia e as suas mensagens, notícias, suportes e imagens criadas. Na sua totalidade, a mediação não é mais feita de homem para homem, e sim a partir destes meios, ou seja, de simulações. A função dos meios de informação agora não é somente informar, mas também refazer o mundo a sua maneira e voz, é hiper-realizar o mundo e transformá-lo em espetáculo.

O Povo Tasaday - Um exemplo bastante grotesco de como atua o simulacro a partir da televisão é a história da criança que nunca tinha visto uma galinha na vida. Esta criança fora criado até os seus cinco anos num grande centro urbano e nunca tinha ido à zona rural. Num belo final de semana, os pais levaram-na para passear pelo interior do país. Assim que a família chega ao hotel fazenda foram para um imenso quintal. Após alguns minutos, a criança retorna de forma animada e afirma para sua mãe: “Venha ver a novidade, venha ver a novidade!”. “O que foi?” Perguntou a mãe. A criança de imediato responde: “Mamãe, venha depressa, acabei de ver um Knorr”. Este é o ponto nevrálgico da implosão do signo lingüístico: o signo galinha confunde-se com a própria manufatura, o Caldo de Carne Knorr. A isto, Baudrillard chama de implosão do sentido causado pela mídia no signo. O signo verdadeiro (galinha) perde o seu sentido original, e é ultrapassado pelo seu simulacro (a mercadoria Caldo de Carne Knorr divulgado na TV), a qual tem uma figura (imagem) de uma galinha branca (carijó) num fundo amarelo. Esta imagem mental (a galinha no fundo amarelo) é o fator contaminador, no nosso exemplo, do processo de implosão do signo lingüístico. Eis a realidade virtual.

Concomitantemente, e em resposta à percepção do desaparecimento do real há uma tentativa compensatória de manufaturá-lo, numa hipérbole do que seja verdadeiro, válido e aceito como experiência vivida; dita de outra maneira, o culto à experiência imediata, à realidade crua e intensa, não é a contradição do regime do simulacro, mas o seu efeito simulado.

Baudrillard apresenta um exemplo para sustentar essa hipótese: em 1971, o governo da República das Filipinas decidiu devolver uma pequena tribo de índios Tasaday à floresta virgem, local onde viviam anteriormente durante oito séculos sem contato com o resto das outras espécies, longe, portanto, da influência de outras civilizações. Para Baudrillard, a ciência, querendo proteger o povo Tasaday da sua própria fome destrutiva por conhecimento, na verdade está intercedendo, estendendo e provando o seu poder, embora pareça renunciar a ele. Ao operar a transformação dos Tasaday num modelo em escala, ou simulação de uma civilização primitiva, pré-científica - o outro universal da ciência -, a ciência tanto retira o olhar dos Tasaday quanto os recaptura sem remorsos como representação:

“O índio assim devolvido ao ghetto, no sepulcro de vidro da floresta virgem, volta a ser o modelo de simulação de todos os índios possíveis de antes da etnologia. Esta dá-se assim o luxo de se encarnar para lá de si própria, na realidade ‘bruta’’ destes índios inteiramente inventados por ela – selvagens que devem à etnologia o serem ainda selvagens: que reviravolta, que triunfo para esta ciência que parecia votada a destruí-los. Claro que esses selvagens são póstumos: gelados, criogenizados, esterilizados, protegidos até à morte, tornaram-se simulacros referenciais e a própria ciência se tornou simulação pura”.

Hiper-realidade - A partir desse exemplo, Baudrillard generaliza ao constatar que toda a vida contemporânea foi desmontada e reproduzida num escrupuloso fac-símile. Entretanto, a disposição de tudo isto está longe a calmaria da satisfação ou indiferença; ao contrário, confirma o que falamos antes “uma produção desenfreada de real e de referencial”, de modo que a simulação toma a forma, não de irrealidade como querem crer todos, mas de objetos e experiências manufaturadas que tentam ser muito mais reais do que a própria realidade, nos termos de Baudrillard, “hiper-reais”. Mais precisamente: “hiper-real é a realidade mais real que ela própria”.

O reino da hiper-realidade implementa uma espécie de colapso de todos os opostos reais na constituição de valor e validades dos sentidos, especialmente na esfera política. As idéias de Baudrillard contidas no livro reafirmam que, estando todo o espectro político dominado pela lógica do simulacro, mesmo os antagonismos mais inveterados, como o Capitalismo e o Socialismo, são anulados pela dependência entre seus termos; a autoridade depende da subversão, assim como esta retira daquela energia. Ao que parece, nenhum evento pode abalar ou desestabilizar os modelos de relação política que precedem e interrompe o curso e a interpretação dos sentidos e palavras desses eventos.

Baudrillard exemplifica de maneira extrema com um atentado a bomba num determinado local, que pode ser tanto manifestação e obra de extremistas de esquerda, de provocadores de extrema direita ou de centristas desejosos de desacreditar o extremismo político. Todas as respostas são pré-fabricadas e programadas, igualmente disponíveis e podem ser ativadas de imediato. O ponto resultante é o fato de o poder e a sua eficácia já não serem assimétricas (um grupo tem o poder e o outro carece dele; dado grupo se beneficia de certa situação e outro padece com ela), mas se distribuírem de maneira uniforme pelo espectro político através do modelo da simulação.

No mundo das comunicações sociais, isto nos remete por assim dizer à fase moderna da história das comunicações sociais, onde o detentor do saber é originado no emissor e a verdade é referendada pelo conhecimento e rotinas produtivas com suas objetividades, imparcialidades, métodos e modelos técnicos utilizados na escritura de uma narração informativa, que num futuro imediato transformar-se-á no atributo maior que é a notícia. E assim sucessivamente, alimentando a própria rotina, também um modelo a ser cumprido diariamente, semanalmente, semestralmente, anualmente, onde para cada tempo e espaço delimitados por uma data comemorativa, efeméride, feriado religioso, dia de santo, aniversário da cidade, campeonato de futebol, que se repetirá novamente todos os anos, impondo um modelo a ser copiado, ensinado e maquiado, pois tudo se constitui num mundo igual, onde os fatos sempre acontecem da mesma maneira. Aqui os modelos precedem os fatos:

É que estamos numa lógica de simulação, que já nada tem a ver com uma lógica dos factos e uma ordem das razões. A simulação caracteriza-se por uma precessão do modelo, de todos os modelos sobre o mínimo facto – os modelos já existem antes, a sua circulação, orbital como a bomba, constitui o verdadeiro campo magnético do acontecimento. Os factos já não tem trajetórias próprias, nascem na interseção dos modelos, um único facto pode ser engendrado por todos os modelos ao mesmo tempo. Esta antecipação, esta precessão, este curto-circuito, esta confusão do facto com o seu modelo (acabam-se a falta de sentido, a polaridade dialética, a eletricidade negativa, a implosão dos pólos antagônicos), é sempre ela que dá lugar a todas as interpretações possíveis, mesmo as mais contraditórias - todas verdadeiras, no sentido em que a sua verdade é a de se trocarem, à semelhança dos modelos dos quais procederem, num ciclo generalizado”.

Portanto, neste ciclo incessante e generalizado, todos se beneficiam com uma infração ao código, porque assim o código é consolidado. Nesta situação, os opostos se transformam um no outro; no dizer de Baudrillard, ele “implode”, produzindo “uma causalidade flutuante em que a positividade e a negatividade engendram uma à outra e se intercambiam, onde já não há ativo ou passivo”, em que “todo ato termina, no final do ciclo, tendo beneficiado a todos e sido disseminado em todas as direções”.

Tentativas-Fantoches - O produto deste caldeirão de ansiedade generalizada tem como alvo de conflito nem tanto o poder, mas os signos de poder e o que assombra os participantes deste jogo não é o medo de perder o poder, mas o temor que o próprio poder esteja prestes a desaparecer. Esta situação e reflexão são fundamentais, numa longa citação de Baudrillard:

A única arma do poder, a sua única estratégia contra esta deserção é a de reinjetar real e referencial em toda a parte, é a de nos convencer da realidade social, da gravidade da economia e das finalidades da produção. Para isso usa, de preferência, o discurso da crise mas também, por que não o do desejo. ‘Tomem os vossos desejos pela realidade!’ pode ouvir-se como último slogan do poder, pois num mundo irreferencial, até a confusão do princípio de realidade e do princípio de desejo é menos perigosa que a hiper-realidade contagiosa. Fica-se entre princípios e aí o poder tem sempre razão. Enquanto a ameaça histórica lhe vinha do real, o poder brincou à dissuasão e à simulação, desintegrando todas as contradições à força de produção de signos equivalentes. Hoje, quando a ameaça lhe vem da simulação (a de se volatilizar no jogo dos signos) o poder brinca ao real, brinca à crise, brinca a refabricar questões artificiais, sociais, econômicas, políticas. É para ele uma questão de vida ou de morte. Mas tarde demais. Daí a histeria característica do nosso tempo: histeria da produção e da reprodução do real. A outra produção, a dos valores e das mercadorias, a dos bons velhos tempos da economia política, desde há muito não tem sentido próprio. O que toda uma sociedade procura, ao continuar a produzir e a reproduzir, é ressuscitar o real que lhe escapa. É por isso que esta produção ’material’ é hoje, ela própria hiper-real. Ela conserva todas as características do discurso da produção tradicional mas não é mais que a sua refração desmultiplicada (assim, os hiper-realistas fixam numa verossimilhança alucinante um real de onde fugiu todo o sentido e todo o charme, toda a profundidade e a energia da representação). Assim, em toda parte o hiper-realismo da simulação traduz-se pela alucinante semelhança do Real consigo próprio”.

Por conseqüência, este anseio da perda do poder, geram os vigorosos encontros com a realidade, na forma do perigo ou da crise, mesmo que os próprios encontros dessa espécie atuem para estabilizar ainda mais o controle na simulação. Baudrillard relembra o episódio onde J.F. Kennedy foi assinado porque ainda havia a possibilidade de que ele viesse a possuir um poder real; por outro lado, Lyndon Johnson, Richard Nixon, Gerald Ford e Ronald Reagan, que habitam o reino do simulacro, requerem/requereram “tentativas-fantoches” de assassinato, necessitam da ameaça de morte para velar o fato de que eles mesmos não passam de fantoches simulados. O princípio de provar o real simulacional, permitindo-lhe entrar em contato com o seu negativo potencialmente desastroso ocorre em toda parte do sistema: “A ideologia não corresponde senão a uma malversação da realidade pelos signos, a simulação corresponde a um curto-circuito da realidade e à sua reduplicação pelos signos. A finalidade da análise ideológica continua a ser restituir o processo objetivo, é sempre um falso problema querer reinserir a verdade sob o simulacro”.

TV-Verdade - Seguindo a sua trilha, Baudrillard tece reflexões sobre o fim do panóptico, a suprema máquina descrita por Bentham, usada para controlar todos os lados, linhas, dimensões e voltas do real de um determinado lugar. Num desdobramento do panóptico, Baudrillard apresenta a experiência da TV-Verdade que foi implementada em 1971 com os Louds ao longo de sete meses, com mais de trezentas horas de filmagem direta, mostrando os dramas do cotidiano de uma típica família americana (de certa forma um programa precursor e “correspondente”, nos dias atuais, aos “Reality Shows”, como a “Casa dos Artistas” e “Big Brother Brasil”).

Interessante observar como Baudrillard é taxativo ao comentar que pelo próprio fato desta família se escolher como uma típica família americana, com domicílio na Califórnia, três garagens, cinco filhos, dona de casa, nível social médio, ela já se caracteriza como hiper-real e transmissora do “american way of life” (estilo de vida americano). Convém relembrar, neste momento, o livro “América” escrito em 1986, onde Baudrillard relata a viagem feita aos EUA, e como a sua “xenofobia” disseca a cultura americana, intitulando-a como uma cópia sem modelo, o avesso do sonho e da realidade, o simulacro total: a única sociedade primitiva moderna. Em outras palavras, a utopia da modernidade.

Pois bem, voltemos a questão dos Louds: até que ponto a presença da TV-Verdade e a retransmissão das imagens da família impõem critérios, onde o essencial gira na interrogação dos dois pólos a serem vistos: trata-se da verdade desta família ou da verdade da TV? Baudrillard responde de uma forma longa sobre os princípios ativos e passivos deste processo bastante complexo:

É a TV que é a verdade dos Louds, é ela que é verdadeira, é ela que torna verdadeiro. Verdade que não é a verdade reflexiva nem a verdade perspectiva do sistema panóptico e do olhar, mas a verdade manipuladora, do teste que sonda e interroga, do laser que explora e que corta, das matrizes que conservam as vossas seqüências perfuradas, do código genético que manda nas vossas combinações, das células que informam o vosso universo sensorial. Foi essa verdade que a família Loud se submeteu pelo médium TV, neste sentido, trata-se de facto de uma aniquilação (mas tratar-se-á ainda de verdade?). Fim do sistema panóptico. O olho da TV já não é a fonte de um olhar absoluto e o ideal do controle já não é o da transparência. (.). Outra coisa se passa quando com os Loud: ‘você já não está a ver TV, é a televisão que o vê a si (viver)’ ou ainda: ‘você não está a ouvir. Não entre em Pânico, é não entre em Pânico que o ouve a si’ – viragem do dispositivo panóptico de vigilância (vigiar e punir) para um sistema de dissuasão onde é abolida a distinção entre o passivo e o activo. Já não há imperativo de submissão ao modelo ou ao olhar. ‘Vocês são o modelo!’ Vocês são a maioria!’ Esta é a vertente de uma sociedade hiper-realista, em que o real se confunde com o modelo, como na operação estatística, ou com o medium, como na operação Loud. Este é o estádio ulterior da relação social, o nosso, que já não é o de persuasão (a era clássica da propaganda, da ideologia, da publicidade, etc.), mas o da dissuasão: ‘Vocês são a informação, vocês são o social, vocês são o acontecimento, isto é convosco, vocês têm a palavra, etc.’’’.

Este curto-circuito da vida na TV - do meio e da mensagem, mistura química impenetrável, de acordo com Baudrillard -, nos indica que todos somos Louds submetidos a esta violência inescapável. A este agente exterior forte, ativo e eficaz que nos olha, manipula-nos, informa-nos e nos aponta o zênite do que seja real e faça sentido. O comando agora é externo, o que ocasiona a própria implosão dos sentidos. Nisto reside o começo da simulação, nebulosa, onde emissor e receptor, principio ativo e passivo se misturam, passando a inexistir, mesmo diante da mais moderna conceituação de razão, a noção de limite, onde o atômico do real está excluído. É a etapa da criação artificial do real, a crueldade da desreferencialidade do mundo dos acontecimentos. Seria o princípio da desinformação da informação? A potencialização deste até o status final da contaminação?

Baudrillard ilustra essa relação entre a desinformação e a manipulação, fazendo lembrar as declarações que dera na época da Guerra do Golfo (1991):

Muitos outros acontecimentos (a crise petrolífera, etc.) nunca começaram, nunca existiram, senão como peripécias artificiais – abstract, substituição (‘Ersats’ em alemão) e artefactos de história, de catástrofes e de crises destinadas a manter um investimento histórico sob hipnose. Todos os media e o cenário oficial da informação existem apenas para manter a ilusão de uma acontecionalidade, de uma realidade dos problemas, de uma objetividade dos fatos. Todos os acontecimentos devem ser lidos ao contrário, ou apercebemo-nos (os comunistas ‘’no poder’ em Itália, a redescoberta póstuma, retro, dos goulags e dos dissidentes soviéticos, como a redescoberta, quase contemporânea, por uma etnologia moribunda, da ‘diferença’ perdida dos selvagens) de que estas coisas acontecem demasiado tarde, com uma história de atraso, uma espiral de atraso, que esgotaram o seu sentido com muita antecipação e vivem apenas de uma efervescência artificial de signos, que todos estes acontecimentos se sucedem sem lógica, numa equivalência total das mais contraditórias, numa indiferença profunda pelas suas conseqüências (mas é que já não têm mais: esgotam-se na sua promoção espetacular) – todo o filme da ’actualidade’ dá assim a impressão sinistra de kitsch, de retro e de pornô ao mesmo tempo – isto sem dúvida que todos o sabem e, no fundo, ninguém o aceita. A realidade da simulação é insuportável – mais cruel que o Théâtre de la Cruauté de Artaud, que era ainda o ensaio de uma dramaturgia da vida, o último sobressalto de uma idealidade do corpo, do sangue, da violência de um sistema que já estava a ganhar, no sentido da reabsorção de todos os problemas sem um vestígio de sangue”.

Implosão do Sentido nos Media

É de conhecimento de todos a importância da comunicação como um elemento imprescindível na realização e força fundamental na constituição e coalizão da sociedade, onde homem, sociedade e a própria comunicação estão indissociavelmente ligados enquanto partes ativas do conjunto de acontecimentos, conhecimentos e relações de um processo maior o qual chamamos de História.

O legado do homem das cavernas, a comunicação, possibilita todo um processo de conhecimento grupal e coletivo: uma comunhão e compartilhamento. Todavia, fica a pergunta: o que o homem sempre comunicou? Informação. Nesse panorama, pela etimologia define-se o termo ”informação”, o qual origina-se do latim “formatio”, como os elementos que dão forma, informam e organizam as coisas no mundo. Também neste panorama, a comunicação caminha junto com a informação. Estabelece-se uma sintonia de igualdades, de tornar comum e compartilhar algo organizado. A partir da transmissão deste algo organizado e apreendido pelas civilizações primitivas institui aquilo que os sociólogos chamam de ”cultura humana”.

Esta emancipação cultural do homem, num primeiro momento, é a apropriação do aprendizado e, em seguida, a legitimação que serve para integrar os significados e entendimentos já interligados ao processo. Torna-se algo objetivo a partir da comunicação, pois informa a outrem os conhecimentos adquiridos. A cultura humana torna-se um processo cheio de sentidos. Um processo de comunicação.

Este deveria ser o objetivo da comunicação: a partir do conhecimento da realidade e da idéia de processo, comunicar, informar, ser transmitida e acionada para logo em seguida ser recuperada, entendida. A comunicação como um processo indistinto, onde emissor e receptor, faces da mesma moeda, plenos em capacidade, intervenção e interação, respondendo um ao outro, num contínuo feed-back, realizando os caminhos que a mensagem deve seguir para alcançar a sua meta: a própria comunicação.

Infelizmente, no mundo atual acontece o contrário. Nos dizeres de Baudrillard: “Sejamos claros quanto a isso: se o Real está desaparecendo, não é por causa de sua ausência – ao contrário, é porque existe realidade demais. Este excesso de realidade provoca o fim da realidade, da mesma forma que o excesso de informação põe um fim na comunicação”.

Três Hipóteses - O desdobramento é que vivemos num cativeiro em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido, o qual acarreta uma deflação do sentido, uma implosão de conteúdo. Baudrillard apresenta três hipóteses:

1) Ou a informação produz sentido, mas não tem a potência para compensar a perda brutal de significado em todos os domínios. Mesmo que se injete mais mensagens e conteúdos, a dissipação acontece numa velocidade bem maior. Aqui o problema está nos meios. Deve-se adequar os meios para alcançar os sentidos do entendimento e reflexão;

2) Ou a informação não tem nada a ver com o significado. Ela é operada por um modelo operacional, instrumental, onde uma espécie de código prevaleceria, deixando de lado qualquer traço de relação significativa entre a inflação de informação e a deflação do sentido.

3) Ou, pelo contrário, a correlação é tão grande e necessária que o sentido e conteúdo são anulados pela própria informação. Aqui a perda de sentido é a própria dissolvência da informação e da mídia em geral. Em outras palavras: a informação e a mídia destroem os sentidos.

Baudrillard escolhe esta terceira hipótese, e observa,

Esta é a hipótese mais interessante, mas vai contra as acepções recebidas. Em toda a parte a socialização mede-se pela exposição às mensagens mediáticas. Está dessocializado, ou é virtualmente associal, aquele que está subexposto aos media. Em toda a parte é suposto que a informação produz uma circulação acelerada do sentido, uma mais-valia de sentido homólogo à mais-valia econômica que provém da rotação acelerada do capital. A informação é dada como criadora de comunicação, e apesar do desperdício ser enorme, um consenso geral pretende que existe, contudo, no total, um excesso de sentido, que se redistribui em todos os interstícios do social – assim como um consenso pretende que a produção material, apesar dos seus disfuncionamentos e das suas irracionalidades, resulta ainda assim num aumento de riqueza e de finalidade social. Somos todos cúmplices deste mito. É o alfa e o ómega da nossa modernidade, sem o qual a credibilidade da nossa organização social se afundaria. Ora o facto é que ela se afunda, e por este mesmo motivo. Pois onde pensamos que a informação produz sentido, é o oposto que se verifica”.

A explicação, de acordo com as idéias de Baudrillard do porquê a informação engole avidamente a comunicação, o social e os próprios sentidos, são de duas ordens:

1) A comunicação, atualmente, ao invés de se fazer comunicar, pelo contrário, enfraquece-se na sua própria encenação da comunicação. Neste sentido a comunicação é como um sonho em vigília, é a própria simulação. Tudo é reciclado e chantageado pela palavra, a qual é encenada por um tipo de energia que tem no princípio o modelo, o qual põe fim ao real. Sendo inútil, portanto, saber quem vem em primeiro lugar, a comunicação ou o simulacro, pois aqui o processo é circular, a simulação, o hiper-real, mais real que o próprio real, portanto anulando o próprio real.

2) O pano de fundo desta encenação dita anteriormente é a implosão e a própria desestruturação do real. Aqui Baudrillard, observa que a questão central não é mais a extensão macro da implosão do sentido ao nível micro do signo. E esta análise deve ser feita utilizando uma perspectiva culturológica, onde as transformações acontecidas ligam-se cada vez mais as inovações comunicativas, as quais produzem novas modalidades de percepções interligadas à tecnologia de mídia. Traduzindo, este é o postulado máximo do teórico das comunicações de massa Herbert Marshall MacLuhan: o meio é a mensagem (para MacLuhan, em qualquer tipo de comunicação a mensagem transmitida sempre é influenciada pelos meios empregados para transmiti-lo). Operando desta maneira a neutralização dos conteúdos pela forma e pelo meio.

Como destaca Baudrillard:

O acto de pôr em causa o estatuto tradicional não se fica pelos próprios media, característica da modernidade. A fórmula de MacLuhan Médium is message, que é a fórmula-chave da era da simulação (o médium é a mensagem – o emissor é o receptor – circularidade de todos os pólos – fim do espaço panóptico e perspectivo – esse é o alfa e o ómega da nossa modernidade) esta mesma fórmula deve ser considerada no limite em que, depois de todos os conteúdos e as mensagens se terem volatilizados no médium, ser o próprio médium que se volatiliza enquanto tal. No fundo é ainda a mensagem que dá ao médium as suas cartas de apresentação, é ela que dá ao médium o seu estatuto diferente, determinado, de intermediário da comunicação. Sem comunicação, também o médium cai na indiferença característica de todos os nossos grandes sistemas de juízo e de valor. Um único modelo, cuja eficácia é imediata, gera, simultaneamente a mensagem, o médium e o ‘real’. Numa palavra, Médium is message não significa apenas o fim da mensagem mas também o fim do médium. Já não há media no sentido literal do termo (refiro-me sobretudo aos media electrônicos de massas) – isto é, instância mediadora de uma realidade para uma outra, de um estado do real para outro. Nem nos conteúdos nem na forma. É esse o significado rigoroso da implosão. Absorção dos pólos um no outro, curto-circuito entre os pólos de todo o sistema diferencial de sentido, esmagamento dos termos e das oposições distintas, entre as quais a do médium e do real – impossibilidade, portanto, de toda a mediação, de toda a intervenção dialéctica entre os dois ou de um para o outro. (.). É inútil sonhar com uma revolução pela forma, já que médium e real são a partir de agora uma única nebulosa indecifrável na sua verdade”.

Vale destacar uma observação importante e que gera muita confusão. Prefiro essa forma e interpretação, de acordo com o Manual da Redação: Folha de S. Paulo – Media/Mídia. “Média” é plural de “médium” e significa meios. Deu origem ao jargão mídia, para designar os meios de comunicação. “Media” não tem o plural formado pelo acréscimo de “s” e não leva acento. Os “media” no Brasil são. Como a forma original foi suplantada pelo jargão, admite-se o uso das formas singular (mídia) e plural (mídias). Mídia eletrônica designa os meios de comunicação eletrônicos, como a TV e internet. Mídia impressa indica os meios de comunicação impressos, como jornais e revistas. O termo também designa o profissional da área de publicidade que escolhe os veículos em que um anúncio será divulgado.

Implosão de Falta de Sentido - O fascínio da mídia, o seu espetáculo, é o resultado desta implosão de falta de sentido. Nesta linha de raciocínio, Baudrillard questiona se a mídia está ao lado do poder na manipulação das massas ou estão ao lado das massas na liquidação do sentido, na violência exercida contra o sentido e o fascínio? São os media que induzem as massas ao fascínio, ou são as massas que desviam os media para o espetacular? Baudrillard traça uma estratégia de resistência:

Mogadiscio-Stammhein: os media assumem-se como veículos da condenação moral do terrorismo e da exploração do medo com fins políticos, mas simultaneamente, na mais completa ambigüidade, difundem o fascínio bruto do acto terrorista, são eles próprios terroristas, na medida em que caminham para o fascínio (eterno dilema moral, ver Umberto Eco: como não falar do terrorismo, como encontrar um bom uso dos media – ele não existe). Os media carregam consigo o sentido e o contra-sentido, manipulam em todos os sentidos ao mesmo tempo, nada pode controlar este processo, veiculam a simulação interna ao sistema e a simulação destruidora do sistema, segundo uma lógica absolutamente moebiana e circular – e está bem assim. Não há alternativas, não há resolução lógica. Apenas uma exacerbação lógica e uma resolução catastrófica. (...). A resistência estratégica, pois, é de recusa de sentido e de recusa da palavra – ou de simulação hiper-conformista aos próprios mecanismos do sistema, que é uma forma de recusa e de não aceitação. É o que fazem as massas; remetem para o sistema a sua própria lógica reduplicando-a, devolvem, como um espelho, o sentido sem o absorver. Esta estratégia (se é que ainda se pode falar em estratégia) leva a melhor hoje em dia, por que é essa fase do sistema que levou a melhor”.

Não podemos negar que o mundo contemporâneo vive uma ordem diferente das demais. Antigamente, a experiência do real vivido e aprendido, como afirma Benjamim, era comunicada pelos velhos aos jovens de maneira simples e oral, através de provérbios, de forma prolixa e em histórias. Na contemporaneidade, a nova ordem é caracterizada pela invasão da técnica, a revolução da comunicação e a informática que sobrepõe a tudo e a todos, fazendo com que, e cada vez mais, o patrimônio da informação e objetos estejam desvinculada da experiência direta do homem. A transmissão agora é de outra ordem. É da ordem da técnica e mediação dos suportes da comunicação. Esta nova ordem é a negação, em última instância, do real. Conseqüentemente é a ordem do simulacro. Muniz Sodré no livro “A Máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil” deixa isso claro em sua análise sobre o destino do simulacro:

Como a imagem de Narciso no espelho, o simulacro é inicialmente um duplo ou uma duplicação do real. A imagem no espelho pode ser o reflexo de um certo grau de identidade do real, pode encobrir ou deformar essa realidade, mas também pode abolir qualquer idéia de identidade, na medida em que não se refira mais a nenhuma realidade externa, mas a si mesmo, a seu próprio jogo simulador. Neste caso, o espelho deixa de ser algo que transcendentemente reflita, duplicando, o real, para tornar-se espaço/tempo operacional, com uma lógica própria, imanente. Sem a necessidade de uma realidade externa para validar a si mesmo enquanto imagem, o simulacro é ao mesmo tempo imaginário e real, ou melhor, é o apagamento da diferença entre real e imaginário (entre o ‘verdadeiro’ e o ‘falso’). De fato, um certo imaginário, tecnologicamente produzido, impõe o seu próprio real (o da sociedade industrial), que implica um projeto de escamoteação de outras formas de experiência do real”.

Perplexidade Contemporânea - Como podemos observar, os trabalhos de Baudrillard nos apontam que deixamos para trás a era da duplicação representativa (do real) pela imagem, e entramos num novo tempo: o da duplicação e reprodução simuladora, local onde a imagem assume o papel de validade das coisas, relegando e abolindo o aval da verdade “verdadeira” referenciada no real. “O real não desaparece em proveito do imaginário, ele desaparece em proveito do mais real que o real: o hiper-real. Mais verdadeiro que o verdadeiro: assim é a simulação”.

Baudrillard também argumenta que:

A simulação é o êxtase do real: basta assistir à televisão: todos os fatos reais se sucedem numa relação perfeitamente extática, isto é, em atrações vertiginosas e estereotipadas, irreais e repetidas, que permitem sua sucessão absurda e ininterrupta. Extasiado: assim é o objeto na publicidade, e o consumidor na contemplação publicitária – reviravolta do valor de uso e do valor de troca, até a anulação na forma pura e vazia da marca”.

Em síntese, o hiper-real é muito mais que um método usado para exagerar as conseqüências do real. No entender de Jacque Aumont no livro “A Imagem”: “O simulacro não provoca, em princípio, a ilusão total, mas a ilusão parcial forte o suficiente para ser funcional; o simulacro é um objeto artificial que visa ser tomado por outro objeto para determinado uso – sem que, por isso, lhe seja semelhante”. É um fórum criador e destruidor de signos, fazendo crer que o real focalizado e mostrado como se fosse a única expressão de verdade do real. Na nova ordem do mundo, o real é algo bruto e difícil de ser domado. Já o simulacro é de uma ordem mais calma, organizada, transitória e maleável, permitindo, portanto, a criação de uma hiper-realidade, uma realidade mais real que ela mesma. Um real intensificado, criado e desejável como aparência.

O hiper-real é manso, não reflexivo, um grande fórum conciliador. Ao mesmo tempo apresenta o mal, e serve-se do bem regiamente escolhido e apresentado. Opera, portanto, de maneira plural, integradora e sem qualquer força de exclusão (apesar de que ele por si só é o próprio valor de exclusão) a política, religião, esportes, arte, jornalismo e a ficção. O hiper-real quer é impressionar, seduzir, não para informar ou relatar como bem observa Baudrillard, mas para influenciar e conduzir o público às convicções e conjunto de idéias (ideologia) desejadas pelo emissor, a partir dos anseios e pedidos de segurança social e exigências de felicidade e alegria por parte dos espectadores. Vivemos num mundo de signos, onde se prefere a imagem ao objeto, o simulacro ao real; o hiper-real, que expressa a perplexidade contemporânea.

Principais livros de Jean Baudrillard publicados no Brasil e Portugal:

Simulacros e Simulações (Relógio D´Água, Lisboa, Portugal)
O Sistema dos Objetos (Perspectiva, Brasil)
Para Uma Crítica da Economia Política do Signo (Martins Fontes, Brasil)
Esquecer Foucault (Rocco, Brasil)
A Troca Simbólica e a Morte (Loyola, Brasil)
À Sombra das Maiorias Silenciosas: o fim do social e o
surgimento das massas (Brasiliense, Brasil)
América (Rocco, Brasil)
Tela Total: mito e ironias da era do virtual e das imagens (Sulina, Brasil)
A Ilusão Vital (Civilização Brasileira, Brasil)
O Anjo do Estuque (Sulina, Brasil)
Da Sedução (Papirus, Brasil)
Telemorfose (Mauad, Brasil)
As Estratégias Fatais (Rocco, Brasil)
A Arte da Desaparição (UFRJ)
Senhas (Difel, Brasil)
Power Inferno (Sulina, Brasil)
Partidos Comunistas (Rocco, Brasil)
A Transparência do Mal: ensaio sobre os fenômenos extremos (Papirus, Brasil)
A Troca Impossível (Nova Fronteira, Brasil)
De um Fragmento ao Outro (Zouk, Brasil)
Cool Memories 1 – 1980-1985 (Espaço e Tempo, Brasil)
Cool Memories 2 – Crônicas, 1987-1990 (Estação Liberdade, Brasil)
Cool Memories 3 – Fragmentos, 1991-1995 (Estação Liberdade, Brasil)
Cool Memories 4 – Crônicas, 1996-2000 (Estação Liberdade, Brasil)

sábado, 25 de julho de 2009

Tropicália de Hélio Oiticica – 42 anos

Almandrade
almandrade@ibestvip.com.br
Artista plástico, poeta e arquiteto

“Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formulação do Parangolé, em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e conseqüentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios, etc.” Hélio Oiticica.

Depois do concretismo e o neoconcretismo, a arte brasileira ganhou maturidade para superar o trauma de uma temática nacional / popular, com um nacionalismo antropofágico. As vanguardas construtivas foram as primeiras manifestações que projetaram o Brasil no cenário da modernidade. O concretismo defendia uma depuração formal fundamentado num racionalismo funcional e mecânico contra qualquer pretensão de expressividade, de certa forma, comprometido com a ideologia desenvolvimentista dominante no País nos anos de 1950. O neoconcretismo foi uma reação a tudo isso e uma retomada de valores e expressões nacionais, sem deixar de lado a universalidade da arte.

A incrementação sensorial que caracterizou o neoconcretismo de Hélio Oiticica tinha a intenção de envolver a participação do espectador na criação da obra de arte. O homem como ser no mundo conforme a fenomenologia de Merleau-Ponty. Depois de Mondrian, Malevith, Max Bill, Oiticica redescobre o samba, o corpo e a dança. Sua arte se direciona em sentido contrário do construtivismo, se aproxima do Dadá e de Duchamp, parte para a superação do quadro de cavalete. Uma arte não mais acabada, depois de concluída pelo artista, é objeto de manipulação coletiva, o artista convida ou oferece ao público a possibilidade de experimentar a criação.

A arte sai do museu para o espaço das trocas coletivas. Em 1964 Oiticica inventa o Parangolé, que tem como base estandartes, bandeiras, capas destinadas a ser carregadas ou vestidas pelos espectadores. Uma proposta que vai afirmar o seu programa para desenvolver os penetráveis ou manifestações ambientais, hoje conhecidas como instalações. O rompimento com o suporte tradicional se deu mediante uma reformulação no conceito de arte, com o objetivo de libertar o individuo de condicionamentos estéticos e culturais.

Na exposição NOVA OBJETIVIDADE BRASILEIRA, idealizada e apresentada pelo próprio Oiticica, no Museu de arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967, ele instalou nos jardins do museu um penetrável ou ambiente chamado Tropicália. O País se encontrava sob domínio da ditadura militar. Ócio e criatividade se misturavam na obra, era também uma resposta ou uma provocação contra as condições de vida dentro de uma sociedade determinada por um trabalho autoritário e com uma parcela significativa da população vivendo na pobreza à margem da modernidade industrial.

A Tropicália era um labirinto construído com uma arquitetura improvisada, semelhante às favelas, um cenário tropical com plantas características e araras. O público caminhava descalço, pisando em areia, brita, água, experimentando sensações, no fim do percurso se defronta com um aparelho de TV ligado, um símbolo moderno. A nova imagem do Brasil, os meios de comunicação de massa contrastando com a miséria nacional. Polarizações e impasses da sociedade, da cultura, da estética e da política da arte nos anos de 1960. Radicalidade e experimentação que impulsionou as artes plásticas para o exercício da contemporaneidade.

Não era apenas um conjunto de elementos acústicos, táteis, visuais e semânticos descobertos a partir do envolvimento físico do espectador, que formalizou uma nova idéia de arte, A Tropicália era uma posição ética diante da sociedade. Oiticica falava em derrubar todas as morais, romper as estruturas estabelecidas e todo tipo de conformismo. Uma herança anarquista. Sem abandonar procedimentos construtivos recorreu à experiência plurisensorial para formatar um pensamento articulando o precário, o prazer e a razão, num deslumbrante espetáculo.

Oiticica quando pensou o conceito da tropicália como uma coisa ampla, não contava com a repercussão ao se transformar num movimento artístico cultural que contagiou o cenário brasileiro. Pregava uma integração entre as linguagens artísticas: artes plásticas, dança, música. A Tropicália inventada por Hélio Oiticica, não era a criação do mito tropicalista de araras e bananeiras como foi divulgado, era uma posição crítica diante de problemas e impasses na arte, na cultura e na política advindos do sentimento de culpa da vanguarda com a linguagem nacional e do regime político implantado no País a partir de 1964. Tinha uma pretensão explícita de objetivar uma linguagem brasileira de vanguarda que fizesse frente à imagética pop e op internacionais.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O affaire Dreyfus

Leda Tenório da Motta
ltmotta@pucsp.br
Professora no programa de estudos pós-graduados em comunicação e semiótica da PUC SP, pesquisadora do CNPq, crítica literária e tradutora

Proust está na casa dos vinte anos e trabalha numa obra menor – Jean Santeuil –, quando, em setembro de 1894, remexendo numa lixeira, num final de expediente, na legação alemã em Paris, os serviços de contra-espionagem do governo francês encontram uma folha de papel – documento mais tarde conhecido como “borderô” – fadada a ser explosiva. Nela, um autor anônimo oferecia informações sigilosas sobre os movimentos da artilharia francesa ao adido militar daquele país, com que a França estivera recentemente em guerra, e para o qual perdera traumaticamente a Alsácia e a Lorena. Imediatamente, as suspeitas recaem sobre um oficial do Estado-Maior, o Capitão Alfred Dreyfus, filho de uma opulenta família de judeus da Alsácia, estabelecida, há algum tempo em Paris, e pertencente à alta sociedade.

Nessas circunstâncias, Dreyfus é preso em outubro desse mesmo ano e, com a comprovação fraudulenta de sua responsabilidade, atestada a partir de exames do documento manuscrito pelo perito grafólogo Bertillon, que é então o Chefe do Serviço de Identidade Judiciária da Prefeitura de Polícia de Paris, é condenado à prisão perpétua por espionagem e alta traição. Conduzido à Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, em 1895, ele passaria ali quatro anos. Num primeiro momento, a família evita tomar qualquer providência que não junto às instituições do Estado, descartando partir para qualquer tipo de ativismo fora dessa instância. É só quando esse método fracassa que os Dreyfus pensam em protestar publicamente, mas então, o problema já havia virado um Caso que os ultrapassa, tornando-se uma questão nacional. Encampado por políticos e intelectuais franceses, o Caso Dreyfus divide a França em dois. A imprensa ilustra essa cisão: o Figaro é militarista, os republicanos e os radicais de esquerda têm o Aurore e o Journal du siècle como plataforma.

Mas o escândalo propriamente dito, começa em 1896, quando, numa primeira reviravolta, o novo Chefe do Serviço de Informação, o coronel Georges Picquart, que acabaria pondo sua carreira em risco na busca da verdade – e entrando para o romance de Proust, já que é um freqüentador do círculo dreyfusista da Sra. Verdurin, pelo menos enquanto ela não se dá conta de que ele deslustra seu salão –, passa a dirigir as suspeitas na direção de um outro militar, um comandante de origem húngara, filho de uma família ilustre que deu à França altos dignitários políticos, por nome Charles Ferdinand Esterházy. Picquart termina por acusar Esterházy de ser o espião que se procura e o dono da letra do borderô. Então, cópias fac-similadas do controvertido documento que serve de corpo de delito ao processo, e é publicado no Le Matin, no mês de outubro, são espalhadas pelas ruas de Paris pelos primeiros revisionistas. A partir daí, difundem-se, cada vez mais, pela cidade, rumores de que as provas levantadas contra Dreyfus são armadas. Em sua biografia de Proust, o professor Jean-Yves Tadié estabelece que é na casa de Madame Strauss que o escritor ouve falar nessa possibilidade, pela primeira vez, sendo autorizado por essa côterie que defende corajosamente Dreyfus a transgredir o pretenso patriotismo da facção oposta

De um lado e de outro, as militâncias se acirram. À direita, o governo, o exército nacionalista, os partidos conservadores, a Igreja. À esquerda, os anticlericais, os republicanos, os socialistas, as forças progressistas. Acusado de conspirar a favor dos dreyfusistas, Picquart cai rapidamente em desgraça e é transferido para a Tunísia. Mas Esterhazy não escapa a um processo. Julgado, em janeiro de 1898 por um conselho de guerra, ele é absolvido, ao passo que, pouco depois, é Picquart quem é julgado e condenado. Segue-se a esses fatos uma primeira onda de violência nas ruas, principalmente na capital, que se agravaria em 1899. É em fevereiro de 1898, um mês depois da absolvição de Esterhazy, que Émile Zola publica, no jornal L´Aurore, o famoso “J´accuse”, libelo em forma de carta aberta ao presidente Félix Faure que é, para alguns, um dos atos mais revolucionários do século. Seu belo gesto é seguido pelo de um grupo de intelectuais que lançam o “Manifesto dos cento e quatro”, também conhecido como “petição dos intelectuais”, numa iniciativa que conta com o particular empenho de Proust e de alguns de seus amigos (não anti-semitas) e que seria endossada, entre outros, por Anatole France, convencido pelo próprio Proust a entrar na briga.

Os acontecimentos só fazem se precipitar, daí por diante. Nesse mesmo mês de fevereiro, Zola é detido, sob a acusação de difamar os militares que defenderam Esterhazy. Começa o processo de Zola. O jovem Marcel Proust acompanha essas sessões, de que nos fala em seu abortado Jean Santeuil. Condenado a um ano de prisão, Zola foge para Londres. Ao regressar à França, em junho de 1898, seria recepcionado como um verdadeiro diretor de consciência. Mas morreria sem ver o fim do processo. Três anos mais tarde, ele morre, em seu quarto, em Paris, asfixiado pelo monóxido de carbono proveniente da lareira, ao que parece, acidentalmente, em circunstâncias que nunca foram completamente esclarecidas, havendo, até hoje, quem acredite na possibilidade de alguma ação criminosa, o que nenhum inquérito policial jamais confirmou. Mas antes disso, nesses mesmos primeiros meses de 1898 em que tudo parece acontecer, é decretada a prisão de Picquart. Proust lhe enviaria na cadeia um exemplar de Les plaisirs et les jours. Pouco mais tarde, quando estivessem finalmente esclarecidos os fatos, Picquart seria feito Ministro da Guerra.

Porém o golpe de cena mais espetacular ainda estava por vir. Como o exército e os generais classistas afirmassem, desde sempre, manter em seu poder algumas provas suplementares irrefutáveis da culpabilidade de Dreyfus, no ano de 1899, um novo ministro da guerra, Cavaignac, mais um anti-semita em ação, decide torná-las públicas. É o começo do fim. As referidas provas – novos papéis com a letra de Dreyfus – logo revelam-se tão inconsistentes quanto as anteriores, o comandante-em-chefe Henri é preso, confessa sua falsificação e se suicida na prisão. Isso desencadeia uma última reação do grupo de intelectuais dreyfusistas, paradoxalmente concentrado na rive droite parisiense, berço dos ricos e dos nobres, e mais uma campanha de apoio aos militares, que articula representantes da pequena burguesia reacionária, de que logo nasceria a Action Française, espécie de versão local da nossa Tradição, família propriedade. E ao mesmo tempo, acende o ódio ao judeu. Há motins por toda parte no país – em Nantes, Nancy, Rennes, Bordeaux –, e manifestações em Paris. O clamor da esquerda leva à revisão do processo, solicitada desde a época do “Manifesto dos cento e quatro”. Esterhazy, de quem se desconfia, cada vez mais, que agira a mando de seus superiores, deixa a França, em 1899.

Nesse mesmo ano, a sentença contra Dreyfus é comutada em pena de 10 anos de prisão. Dreyfus é indultado, ainda em 1899, pelo novo presidente da república, Émile Loubet. Ele entraria com um novo pedido de revisão, que é ignorado até 1906, quando, finalmente, recebe de volta seus galões. Salta então à vista que fora a frustração vivida pela França diante dos alemães que levara os militares, no afã de recuperar a honra perdida, a procurar num judeu o inimigo interno associado ao inimigo externo. Estabelecida uma nova ordem política, Picquart é feito Ministro da Guerra (1906-1909) e Clemenceau, Ministro do Interior e Presidente do Conselho de Ministros (1906).

Notando que o Caso Dreyfus, na verdade, nunca terminou, Hannah Arendt escreve, nos anos de 1950, decênio da edição original de As Origens do totalitarismo: “... nem a primeira nem a segunda guerra mundial fizeram esquecer o processo. Quando Dreyfus morreu, em 1935, a imprensa, por medo, não comentou a questão. Ainda hoje, embora em menor escala, o Caso Dreyfus divide a política francesa[1]”.

Por sua vez, Julia Kristeva lembra, em Le Temps sensible, onde se interessa demoradamente pelas relações entre o judaísmo e o romance de Proust, que Dreyfus seria ainda agredido, quando das manifestações de rua ocorridas no momento da transferência dos despojos mortais de Zola para o Panteão, em 1908, e que o agressor seria inocentado.

A agressão se repetiria em 1985, quando François Mitterrand e seu ministro da cultura Jacques Lang, que haviam encomendado uma escultura em homenagem a Dreyfus, tentaram implantá-la no pátio da École Militaire, sendo impedidos pelos militares. Inaugurada no Jardim das Tulheirias, em 1988, ela está hoje no sixième arrondissement, na Place Pierre-Lafue, perto da prisão da rua do Cherche Midi em que o capitão judeu-francês foi degradado, em 1895, e constituiu-se num marco importante para as atividades do Centenário da reabilitação de, em 2006.

De 1895 a 1930, data em que se estabelece, em definitivo, a inocência, com a publicação do diário do adido militar alemão nas mãos do qual caíra o borderô, foram 35 anos. Sabe-se, desde então, que o culpado era Esterházy, e que ele não estava sozinho. Nesta paródia de romance de Balzac, como também disse Hannah Arendt que ela era, todo o estado francês se comprometera.

Imagine-se Proust diante de tudo isso!

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[1] - Op. cit., p.112-113.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Barracobama ou tem branco no samba





Mathilda Kóvak
madmath@uol.com.br
Escritora, compositora e roteirista

Vocês que são brancos que se (des)entendam. Meu querido John Winston Lennon dizia que a mulher era o negro do mundo. Concordo com ele. Entretanto, não basta ser nem mulher nem negro pra passar incólume pelas tentações deste mundo. Margareth Thatcher era mulher e deu o pontapé inicial nesta que é a era mais cruel e injusta dos modern post modern times. Idi Amin, negro, era uma belezura de caráter. E o que dizer de Condoleeza Rice, mulher e negra?! Minhas condolências pra ela.
Mas eu fiquei emocionada, confesso, com a eleição de Barack Obama. Até porque ele é elegantérrrrimo, e sua mulher, mais ainda, o que poderia significar, no mínimo, uma reviravolta rumo à extinção das louras de farmácia, este grupo étnico desprovido de estética. Um negro na Presidência dos Estados Unidos! Todos muito admirados e admiradores deste fenômeno, como se ele fosse um chimpanzé de circo, que tivesse aprendido a andar de bicicleta na corda bamba. E eu estava quase caindo neste conto do pastor – Martin Luther King – quando, hoje, pela manhã, a empregada olhou o jornal e me perguntou: “é esse que é o presidente preto?!” E eu respondi, orgulhosa: “É!” “Mas ele nem é preto!”, revidou ela. E eu corrigi: “Claro que é. Não tá vendo?!” E ela insistiu, olhando a foto de um sujeito impecavelmente vestido, com ares de burguês bem nascido: “Não é não!” Então, eu resolvi me deter alguns minutos na foto e, finalmente, entendi o que ela queria dizer. Sim, ela tinha razão. Obama não é negro. Obama é um norte-americano branco, criado no Mid-West, formado em Harvard. Os negros norte-americanos estão morrendo de fome no Mississipi. Minha empregada é filha de índio. Ela vê a alma da pessoa. E ela estava coberta de razão. Um negro de classe média, da geração de Obama, nos EUA, não tem a menor idéia do que seja o racismo perpetrado pela pobreza econômica. Para ele, o racismo é uma idéia tão remota quanto é, para um jovem judeu, o holocausto. E foi só por isto que logrou ser eleito. Se ele tivesse nascido no Mississipi, estaria, como alguns amigos meus, pedindo esmolas nas ruas de Nova Orleans.

Morei em Nova York, na era Bush Pai, e o que aconteceu ali, então, foi muito parecido com o que aconteceu na era Bush Filho. Os Estados Unidos estavam entrando em recessão. A família Bush não prima pela inteligência, muito menos pela criatividade. Então, a solução era a mais burra e bruta: inventar uma guerra no Golfo, pra vender armas e salvar a economia americana, como, aliás, os democratas, Roosevelt e Kennedy, fizeram antes dele. Não adiantou nada. E os democratas retomaram o poder com Bill Clinton. É tradição o Partido Democrata se favorecer às custas das burradas do Partido Republicano. Saí de NY, em 1991. Voltei em 1995 e, depois, pela última vez, em 1999. De 95 a 99, isto é, em quatro anos, Nova York se transformou radicalmente. Manhattan estava caríssima e cheia de rednecks. E o Brooklyn, nas áreas mais ricas, idem. E, na área pobre, onde eu morava, um luxo. Os negros pobres tiveram que se mudar dali. Os artistas alternativos, negros, imigrantes de todo jeito, foram banidos pra periferia ou se mudaram pra Califórnia, com os preços dos aluguéis lá em cima. Meu amigo, Saul Bickman, um judeu de setenta anos, contudo, se beneficiou da valorização imobiliária. Herdou de sua mulher uma town house de três andares. Alugou o último e viveu desta renda até morrer, com direito a viagens pelo mundo. De 1989, quando o conheci, até 1995, Saul se dizia socialista. Em 1999, ele celebrava o capitalismo. Um dia, fiquei, como de costume, hospedada em sua casa. Depois de voltar de Manhattan, estupefata com os preços , fui dormir embalada por um pânico indefinido. Sonhei, naquele dia 29 de setembro de 99, com pessoas se jogando do World Trade Center e com a palavra “crash.” Acordei e contei a meus amigos o sonho, afirmando: “vai haver um novo crash da bolsa. O capitalismo vai acabar.” Todo mundo riu. Fomos, em seguida, para Wall Street, e tiramos fotos minhas apontando para as torres e minhas e de Ana Pinta, uma amiga, com o polegar pra baixo, em frente a elas. Outra premonição eu tive na Thompkins Square, dias antes, no Village. Enquanto esperava meu ex-marido, num banco, vi um cachorro meio estranho correndo de um canteiro para o outro. Não demorou muito até que eu me desse conta de que o cão era na verdade uma enorme ratazana. Quando meu então marido chegou, eu disse: “Nova York vai ser comandada pelos ratos. Um milhão por habitante. “ Quando chegamos, naquele outro dia, a Wall Street, nos deparamos com uma passeata, cujo símbolo era um rato gigante. Rimos muito. E ficamos naquela palhaçada premonitória.

Dois anos depois, acordo com uma amiga que trabalha em TV, me intimando a ligar a televisão pra ver meu presságio materializado. Estremunhada de sono, liguei no onze de setembro e achei que estavam bombardeando Nova York. Quando o segundo avião derrubou a segunda torre, pensei: “então, era um airplane crash! E não um crash da bolsa.”

Mas era um crash da bolsa, sim. Um crash que o airplane crash adiou por dez anos, mas que ocorreu exatamente num dia 29 de setembro, como eu sonhara. Não conto isto tudo com o intuito de provar meus pendores de profeta. Mas, antes, para refletir com vocês sobre estes fatos. George W. Bush não venceu as eleições. Os democratas deram o trono pra ele de bandeja, porque não queriam que o crash explodisse em suas mãos. Claro, o crescimento dos Estados Unidos foi vertiginoso. Não era real. Em seu bojo, veio montada a maior dívida interna da história de um país. Todo americano é um devedor. E, por tabela, nós aqui também. Então, deixaram a batata quente pro imbecil do Bush. E ele o que fez?! Seguiu a velha receita da família. Uma guerrinha pra vender armas. Não colou outra vez. O crash explodiu com força total. E agora Bill Clinton sorri de orelha a orelha. Ele está de novo no poder, na forma de Osama, oops, Obama. Elegante, fino, culto e, melhor ainda, negro. Quem é que vai desconfiar de que um mulato seja, na verdade, um branco azedo wasp?! Hillary não daria pé. Já lhe levou os chifres, sabe-se lá o que uma mulher traída não é capaz de fazer quando de posse do poder... Então, lá vem o negão cheio de paixão. E pouca compaixão por seu povo. Obama é um gato. É o Fred Astraire da política. Mas, de negro, só tem o pai e a avó. A mulher e as filhas. Ele mesmo, e talvez nem saiba disto, é uma artimanha de um branco Rinso, pra deixar um white trash de saia justa. O ciclo do petróleo já está pela hora da morte. O etanol está ali, na América do Sul, para onde o panaca do Bush nunca olhou, graças a Allah. Então, vamos nessa. A Europa e a Rainha Elizabeth II estão salvos! A maior colônia européia vai recuperar o que parecia perdido. A ameaça asiática não passou de um susto. Os capitalistas democratas garantirão um lucro estupendo aos seus iguais. A exemplo do governo Clinton, o governo Obama proporcionará um crescimento econômico gigantesco ao planeta. E uma miséria inversamente proporcional. God save the Queen! Max Weber e Karl Marx brigaram à toa. Nem capitalismo, nem comunismo. O mundo nunca deixou de ser feudal.

Eliane, mulher, índia, empregada, enxerga, sem precisar das lentes de aumento dos analistas políticos, a alma sedenta dos poderosos. Eleitos pela maioria ignara, a unanimidade burra, num processo ginasiano – “quem quer aquele monitor, levanta o dedo!” – intitulado democracia liberal. George W.Bush e sua extrema burrice estavam enterrando de vez o Império Americano, com seus silicones, suas louras falsas, seus gases poluidores, seus cabelos esticados... O fim deste império anglo-saxônico poderia significar um recomeço pós-Idade Mídia, neo-renascentista, pro resto do mundo. Clinton é um hipócrita. Al Gore, um mentiroso. Desde quando dono de fazenda de tabaco pode defender o meio-ambiente? E, by the way, que papo é este do Obama de combater a poluição com energia nuclear?!

Barack nunca foi pantera negra, animal em extinção. Nem creio que ele saiba o que seja isto. Ele que é um Afro-American. Os Black Panthers eram black. E black is beautiful.

Ou Barack deixa a cabeleira crescer redonda e selvagem. Ou eu não engulo mais um yuppie, mais um mauricinho, seja lá de qual for a cor. Lugar de mulher e negro não é na presidência de uma superpotência. É na super impotência de ser. Mas, de estilingue em punho, atirando pedras contra todo e qualquer poder.

E viva Angela Davis! Pantera negra do mundo. Black panther is beautiful!

Anexo: Sátira por Jib Jab




terça-feira, 7 de julho de 2009

Cazuza, cronista do Brasil

Amador Ribeiro Neto
amador.ribeiro@uol.com.br
Professor de teoria da poesia e literatura comparada na UFPB. mestre pela USP e doutor pela PUC-SP

Cazuza descobriu o Brasil. Escancarou a cara do país. A golpes de lâmina, é claro. Como convém a um poeta. A navalha de sua “músicapoesia” cortou fundo. Deixou uma cicatriz para as cobaias de Deus continuarem seu (dele/delas) caminho. Afinal, ele disse: “o tempo não pára”, “a burguesia fede” e “o nosso amor a gente inventa”.

Cazuza foi farol na praia de uma geração que mal conhecia o blues, ignorava a prevenção da Aids e vivia porraloucamente a ‘abertura política’ (promovida de cima pra baixo – e por militares). O garoto rebelde e insatisfeito com a vida burguesa que herdara não hesitou em colocar sua dor e seu tesão nas paradas de sucesso.

Ao som do blues e colado ao corpo da amada ele pede: “me avise quando for a hora”. Gritando um rock primitivo desafia: “Brasil, mostra tua cara”. Nos anos 80 ele é a voz e poesia de uma geração que tivera na Tropicália sua última escalada sócio-poético-musical.

Um jovem bonito e cheio de vontades mete o dedo na ferida dos corações aflitos e das mentes politicamente insatisfeitas. Une amor e política no mesmo palco. Sem sucumbir ao panfletarismo de uma certa corrente ‘engajada’ da MPB, surgida à época dos festivais, mantém-se atento às denúncias e avanços do melhor do rock internacional. Mas não se descuida da excelente MPB dos anos 20, 30 e 40, não sem razão conhecida como “Época de Ouro”.

Antenado com o ontem e o agora, nunca hesitou em expor as dores de um eu-lírico dilacerado pelo desamparo, pela falta de amor, pela inadequação ao mundo: “você me quer? / você cuida de mim? / mesmo que eu seja uma pessoa / egoísta e ruim?” ele pergunta sem dissimulações, mergulhado na poeticidade da linguagem infantil de um certo Bandeira. Mas se no poeta pernambucano o lado frágil e criança emerge em situações bem-humoradas (como em ‘Madrigal tão engraçadinho’), em Cazuza o adulto volta à infância através da (fratura) da carência afetiva (exposta).

Talvez por isto mesmo um de seus discos se intitule “Só se for a 2”, o que aponta para a inclusão do outro no projeto deste sujeito primeiro. O outro aparece como possibilidade do eu safar-se do inferno. O outro é figura fundante e fundamental. É a possibilidade do céu na terra. Ainda que provisoriamente.

Mas quem é este outro? É o homem, a mulher, o governo, a família, a religião, a droga, o sexo; enfim, o escambau. O outro é complemento de aproximação e repulsa. Motivo de amor e escárnio. O outro é, de fato, complemento indispensável. Tanto a solidão pessoal como a marginalidade social são inimigos combatidos pela evocação do outro.

A não segregação entre indivíduo apaixonado e prática política é uma das metas mais almejadas pelos artistas. Infelizmente a maior parte sucumbe a um ou outro pólo. Com Cazuza não. Ele sente e sabe. Canta: “Meu partido é um coração partido”. Que deve ser entendido também como “Meu partido é um coração-partido”.

Por isto o eu de suas composições ama sobre jornais: retratos e representações da vida cotidiana. Política, lazer, economia, esporte, cultura, classificados. Todas as notícias, todos os assuntos, todos os temas se amalgamam em Cazuza

Assim, Rimbaud e Dolores Duran passeiam por suas letras e músicas de mãos, copos, drogas e corpos dados. Noel Rosa e Mick Jagger, idem. Lupicínio Rodrigues e Jack Kerouac são companheiros de estrada na busca desenfreada por sentidos para a vida nonsense. A busca por uma estabilidade emocional e sócio-política deste eu aflito encontra em Fassbinder e em Glauber Rocha a violência/virulência de imagens cinematográficas neobarrocas. Os ambientes soturnos de Fassbinder e o sol enlouquecedor de Glauber refletem-se/reverberam-se nos artifícios das letras e dos acordes de Cazuza. Viva Cazuza!

Anexo: Entrevista para Teresa Cristina Rodrigues.

sábado, 4 de julho de 2009

O presidente negro: um olhar brasileiro sobre a eugenia nos Estados Unidos da América




Dirce Waltrick do Amarante
dwa@matrix.com.br
Professora de literatura infanto-juvenil na UFSC

Em julho de 1926, Monteiro Lobato disse a um amigo que tivera “uma idéia-mãe! Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos.” Tratava-se de uma ficção científica, como afirmou Lobato, e se passaria no ano 2228, às vésperas da escolha do 88ª presidente americano.

Fragmentos desse romance, que se chamou, inicialmente, O choque das raças, começaram então a ser publicados no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, no qual Lobato já colaborava.

A matéria do jornal, anunciando a publicação dos excertos da obra, dizia o seguinte: “O choque das raças será o primeiro livro nosso que vai transpor as fronteiras e que apresenta uma feição mundial.” Apesar dessa propaganda, quando Lobato foi para Nova Iorque, em 1927, onde atuaria como adido cultural, não havia ainda conseguido editar o seu romance por lá: “Meu romance não encontra editor. (...). Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue-frio o belo crime que sugeri.”

O crime a que Lobato se refere é o da esterilização da raça negra. Segundo o enredo do seu livro, isso aconteceria antes da posse do primeiro presidente negro americano, no ano 2228, eleição que provocaria o colapso do Império Americano.

O fato é que o romance, sob o pretexto de contar uma estória de amor entre a filha de um cientista norte-americano, que herdara do pai um “porviroscópio”, aparelho capaz de prever o futuro, e um brasileiro medíocre, que sonhava em ter um carro Ford, expõe às claras idéias eugenistas sobre o progresso social, tais como as já pregadas no Brasil pelo médico Renato Kehl, no seu livro Lições de eugenia (1929), onde se lê que “a nacionalidade brasileira só embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano.” Segundo o próprio Lobato, aliás, o seu romance, que duas décadas mais tarde se intitularia O presidente negro, deveria ser dedicado ao seu amigo Kehl, já que era o seu “grito de guerra pró-eugenia”.

Nada disso surpreende. Adepto do movimento eugenista brasileiro, como lembra a historiadora Pietra Diwan, Lobato aceitava, ao lado de outros intelectuais da época, “a constatação, por parte dos europeus, da impossibilidade de progresso do Brasil dada a sua composição racial (...).” Embora não seja segredo sua filiação às agremiações eugenistas e a simpatia que nutria pela causa, esse viés do pensamento do escritor nem sempre é estudado no Brasil. Preferimos enfatizar apenas o Lobato criador do Sítio do Picapau Amarelo e o sanitarista engajado, como se a faceta eugênica, se mencionada, pudesse impedir a apreciação do lado maior da sua obra. Muitas vezes, o Sítio do Picapau Amarelo é descrito como “uma espécie de paraíso” num mundo em plena ascensão do nazismo e do fascismo, um lugar “aberto para todos, sem discriminação”. Será? Dificilmente um atento leitor da obra do escritor aceitará essa interpretação. Tia Nastácia, por exemplo, a negra cozinheira do sítio, não raramente é chamada de ignorante por outros personagens da trama e até mesmo pela ponderada dona Benta: “– Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. (...) que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir histórias de outras criaturas igualmente ignorantes (...).” A boneca Emília arremata dizendo que as histórias da tia Nastácia “parecem-me muito grosseiras e bárbaras – coisa de negra beiçuda, como a tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto.”

Naturalmente, o leitor poderá afirmar que, nesses exemplos, não é a ideologia do escritor que está sendo expressa, mas sim o ponto de vista de seus personagens, que, historicamente situados, não poderiam senão emitir tais opiniões. Desconfio, porém, que esse argumento seja um subterfúgio para não encarar as questões incômodas que cercam a obra de Lobato.

O fato é que o escritor expõe nos seus livros idéias paradoxais: se por um lado Tia Nastácia é tida como ignorante, por outro lado é à sabedoria popular da “negra velha” que a pernóstica boneca recorre seguidamente. Em A chave do tamanho, Emília, nossa Alice tupiniquim, entre um tamanho e outro, cita uma máxima de tia Nastácia, atestando a validade de sua fala e opiniões. Dona Benta vai ainda mais longe e a compara a um filósofo chinês.

Em O presidente negro, também encontramos os paradoxos raciais que povoam a atmosfera ideológica do sítio, mas de forma muito mais explícita. O livro propaga com entusiasmo alguns preceitos do movimento eugênico brasileiro, ou seja, a supervisão da imigração, a esterilização das supostas “raças inferiores” e o controle de casamentos para que não houvesse miscigenação racial: “ou extirpamos os negros já, ou dentro de meio século seremos forçados a aceitar a solução negra, asfixiados que estamos pela maré montante do pigmento.” Ao final do romance, porém, a heroína, branca e de olhos azuis, se rende aos encantos do brasileiríssimo e provavelmente miscigenado protagonista da trama, originado uma raça mista, como que à revelia do autor.

Deve-se mencionar ainda que, a certo momento da obra, uma das soluções cogitadas pelos americanos para livrarem-se dos negros seria enviá-los para o Amazonas, mas “a idéia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado a trocar a identidade americana por qualquer outra.” Muito menos pela identidade brasileira, já que no Brasil prevalecia, de acordo com as cartas de um desiludido Lobato, a “miséria econômica, física, biológica e moral da nossa gente”.

Assim, no romance, uma possível solução definitiva para o problema racial seria investir num processo científico de “embranquecimento”, semelhante àquele usado, parece-me, por Michael Jackson, mais de meio século depois da publicação da ficção científica lobatiana. Aliás, como todos os negros do livro, Michael Jackson também ficou “horrivelmente esbranquiçado”, segundo expressão do escritor brasileiro. Apesar disso, explica um dos personagens do romance, “embranquecê-los aproximava-os dos brancos na cor, embora não lhes alterasse o sangue nem o encarapinhamento dos cabelos. O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até ali a ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar.”

Para citar um exemplo mais atual, Barack Obama, o primeiro presidente negro dos E.U.A., na sua autobiografia A origem dos meus sonhos, recorda-se que, na infância, viu uma “fotografia da revista Life mostrando um homem negro que havia tentado trocar de pele. Imagino outras crianças negras, naquela época e agora, passando por momentos semelhantes de revelação. Talvez esse momento aconteça mais cedo para a maioria: o aviso dos pais para não cruzar os limites de uma determinada vizinhança, ou a frustração por não ter o cabelo igual ao da Barbie (...).” Obama conclui, porém, dizendo que foi uma criança feliz, pois teve “a oportunidade de viver uma infância livre da autodescrença.”

Apesar dos esforços para tornar brancos os negros, nesse romance, a alma deles permanecia “escura”. Portanto, a eleição de um presidente negro, mesmo que este tenha se tornado esbranquiçado no transcorrer da trama, era um pesadelo, ou “era coisa bem pior – fato!”

Contudo, na ficção de Lobato, a raça branca tem a seu favor “o número e a superioridade mental”, portanto rapidamente desenvolveram um tônico capilar de “desencarapinhamento” – “as negras, sobretudo, viviam num perpétuo sorrir-se a si próprias, (...). O seu enlevo ao correrem as mãos pelas macias comas omegadas levava-as a esquecer o longuíssimo passado da humilhante carapinha.” --, cuja eficácia chegava ao ponto de tornar estéreis os negros, ao mesmo tempo que lhes alisava o cabelo. Assim, lendo o romance, percebemos que venceu o “verdadeiro” povo americano: “Tua presidência seria inútil. Tudo é inútil quando o futuro não existe.”

Quanto ao Sítio do Picapau Amarelo, é possível observar que, nele, as “raças inferiores” da trama também não deixam herdeiros e não há qualquer possibilidade de que isso venha a acontecer, já que a negra Tia Nastácia e o caboclo Tio Barnabé são solteiros convictos e pessoas de idade. A frase de um dos personagens de O presidente negro poderia também ser proferida por um dos habitantes brancos do sítio: “Tua raça foi vítima do que chamarás traição do branco e do que chamarei as razões do branco.”

Admirador de Henry Ford e do way of life americano, parece-me que Lobato não conseguiu perceber que os conflitos raciais no Brasil e nos Estados Unidos eram muito distintos entre si. No Brasil, Lobato não teve dificuldade para publicar o seu romance, uma vez que, desde a abolição da escravatura, a impressão que temos é a de que já cumprimos a nossa obrigação com a raça negra, ao deixá-la vagar livremente pelo país. Em Pequena história da República, Graciliano Ramos fala da abolição da escravatura no Brasil como sendo uma entre tantas outras decisões tomadas sem planejamento ou desacompanhadas do necessário apoio estratégico: “A alegria tumultuosa dos negros foi substituída por uma vaga inquietação. Escravos, tinham a certeza de que não lhes faltaria um pedaço de bacalhau, uma esteira na senzala (...); livres, necessitavam prover-se dessas coisas – e não se achavam aptos para obtê-las.”

Nos Estados Unidos, apesar do sectarismo racial que persiste até hoje, o romance futurista de Lobato foi considerado uma afronta aos cidadãos americanos negros, uma vez que o país tinha consciência de estar em dívida com eles. O provável editor do livro nos Estados Unidos opinou: “Infelizmente, porém, o enredo central é baseado em um assunto particularmente difícil de se abordar neste país, porque ele irá, certamente, acender o tipo mais amargo de sectarismo e, por esta razão, os editores são invariavelmente avessos à idéia de apresentá-lo ao público leitor (...). Estivesse o senhor lidando com a invasão de uma nação estrangeira, ou raça, a reação seria bem diferente, mas o negro é um cidadão americano, uma parte integrante da vida nacional (...).”

A propósito da questão racial nos Estados Unidos, ontem e hoje, Barack Obama, na sua autobiografia, lembra que a sua mãe “contava as histórias de alunos no Sul dos Estados Unidos que eram obrigados a ler livros herdados das escolas brancas e ricas, mas que conseguiam se tornar médicos, advogados e cientistas, (...).” No Brasil, como apontou Graciliano Ramos, a sociedade deixou os negros circularem livremente, sem restrições de fronteiras, não lhes oferecendo, porém, nada além disso, e nem mesmo a livros de segunda mão eles parecem ter tido acesso livre, na época de Lobato.

No tocante ao pedido de alteração da trama do romance, solicitada pelo potencial editor norte-americano, Lobato confessou que nada mudaria na sua história, pois era sim que via os Estados Unidos da América.

Não poderia deixar de mencionar, finalmente, a descrição das mulheres em O presidente negro, já que são apresentadas como dependentes dos (e submissas aos) homens: elas, depois de uma tentativa “irrefletitida” de independência, admitem seu “erro” e reconhecem que sem o concurso do “macho” nada valeriam no mundo. Mais um paradoxo lobatiano, pois sabemos que, no Sítio, as mulheres brancas, diferentemente dessas, são independentes.

Passado quase um século da publicação de O presidente negro, muitos de seus prognósticos já viraram realidade: os americanos de hoje já têm o seu primeiro presidente negro. Outros prognósticos do escritor também já se concretizaram, em parte ou no todo: o mundo virtual da Internet: “Descobriram-se novas ondas, e o transporte da palavra, do som e da imagem, do perfume e das mais finas sensações táteis passou a ser feita por intermédio delas (...). O serviço, o teatro, o concerto é que passaram a vir ao encontro do homem. Foi espantosa a transformação das condições do mundo quando a maior parte das tarefas industriais e comerciais começou a ser feita de longe pelo radiotransporte.”

Outra tecnologia atual que Lobato previu foi o processo eletrônico de votação: “os eleitores não saíam de casa – radiavam simplesmente os seus votos com destino à estação central (...). Um aparelho engenhosíssimo os recebia e apurava automaticamente e instantaneamente (...).”

O presidente negro expõe, em conclusão, um Lobato incontestavelmente eugenista, mas também o revela um inspirado visionário, atento às novas tecnologias e até mesmo à evolução da cosmética (alisamento permanente de cabelo, “embranquecimento” da pele). O livro é um convite para se reler – com visada necessariamente crítica e nada condescendente -- a obra inteira do escritor, principalmente o Sítio do Picapau Amarelo, que, ao ser divulgado exclusivamente como Literatura Infanto-Juvenil, deixou de ser relido pelos adultos e, ultimamente, parece se distanciar das próprias crianças, que o conhecem, cada vez mais, apenas pela televisão, DVD e adaptações, não raro, deturpadas da obra.