terça-feira, 15 de março de 2011

Sonhos Imperfeitos

Rodrigo C. Vargas

Ondas rolando sobre pequenas cidades, frágeis. Cotidianos desaparecidos, selvagens. A terra tremendo, o ar furioso e contaminado. Centenas de imagens nipônicas resumindo tudo a pó, repetidas na minha frente. Sentado no sofá, alguma coisa mudou. Eu senti algo parecido com o que é comumente conhecido como Déjà vu. Não era meu e eu não conseguia lembrar. Depois comecei a relacionar as imagens. Apesar de saber que a história é feita de fatos repetidos, o que eu via não saiu de nenhum livro. Toda esse drama está claramente representado num clássico do cinema mundial: Sonhos de Akira Kurosawa, produzido em 1990.

A terra preta banhada de sangue e os gritos vindos de todos os lugares me remeteram ao sonho número seis, Monte Fuji em Vermelho. Neste capitulo, Kurosawa descreve o caos íntimo, uma premonição. Nem Dali conseguiu tocar tão fundo no inconciente. O desespero daqueles milhares aos pés do Monte Fuji em erupção, respirando o ar negro expelido de uma usina nuclear em chamas. No filme o homem que se diz responsável pela falha que expôs o povo à radiação diz preferir a morte rápida de um afogamento à lenta provocada pela radiação.

Akira conduziu sua obra com ternura, mesmo nos momentos viscerais. Portanto, por mais que tudo pareça pesadelo, o sonho é a forma que encontrou de mostrar que o caos modifica o homem quase sempre para melhor. No cinema a catástrofe foi causada pelo homem, a realidade que o Japão vive hoje é natural. Resta uma pergunta: natural ou naturalizada? Não há resposta. Não adianta tentar.

Os filhos do sol nascente não desejam a eterna repetição do recomeço. É assim desde Hiroshima e Nagasaki. É assim desde o princípio. A angustia desse povo estruturado é saber que o que vem de fora muitas vezes é mais forte do que o que vem de dentro. Essa é a verdadeira ordem natural das coisas. Espero que um dia mude.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Literatura e Carnaval: Fragmentos de um inventário da alegria



Miguel Leocádio Araújo
miguel.leocadio@hotmail.com
Mestre em literatura brasileira pela UFC

Quando Jorge Amado publicou seu primeiro romance em 1931, o Brasil já era O país do carnaval. O protagonista da narrativa retornava ao país depois de anos em Paris. Voltara afrancesado e pedante, achando que tudo aqui representava atraso. Ele aporta no Rio de Janeiro em pleno carnaval: a cidade ferve de calor e alegria e o samba corre em todos os ouvidos. Ele observa tudo entre o olhar crítico e lascivo e enfim rende-se aos encantos da festa.

Este exemplo nos dá uma impressão de que existe uma vertente da cultura letrada interessada no tema, a ponto de fixar sua atmosfera nas páginas de literatura. Nada mais cabível num país que, de forma bastante original, forjou para si um momento de catarse coletiva, dando indícios de uma identidade cujos traços de irreverência, crítica e insatisfação podem mostrar-se, embora escondidos sob a máscara da celebração com música, cores, imaginação e sensualidade. Materiais mais do que adequados para exercícios de plasticidade descritiva, que a literatura faz, entre as reflexões sobre o homem e sua condição. Os nossos escritores não ficaram alheios a isso, sobretudo na literatura do século XX.

Se mapearmos a produção literária brasileira, em diversos gêneros, observaremos a recorrência do tema. Desde João do Rio, uma tradição se fortaleceu. O cronista escreveu sobre a magia e a lascívia dos cordões, das guerras de confete, dos corsos, das fantasias, dos encontros às escuras e sobre como a Rua do Ouvidor se tornava intransitável. O seu carnaval era o da região central do Rio, com seus blocos de sujos e entrudos. Em “O bebê de tarlatana rosa”, seu conto mais conhecido, essas práticas são ficcionalizadas, porém envoltas numa atmosfera que beira o horror e causa nojo. Numa linguagem totalmente pessoal, o escritor manda seu recado: caídas as máscaras, pode-se encontrar podridão. Ele abriria, assim, caminhos para o Modernismo. Aliás a própria Semana de Arte Moderna ocorreu em fevereiro. Mera coincidência?

Mário de Andrade foi um dos que soube fazer do carnaval pano de fundo para situações de seus personagens. Em Amar, verbo intransitivo, a narrativa finda com uma cena de carnaval. Na paulicéia desvairada e carnavalesca não há espaço para as tristezas, mas para os projetos de um futuro que chegará depois da quarta-feira de cinzas.

Oswald de Andrade, em Pau Brasil, deixou poemas sobre o tema. Mas foi com “Escapulário” que pôde virar item de carnaval. Os versos “No Pão de Açúcar/De cada dia/Dai-nos Senhor/A Poesia/De cada dia” foram musicados por Caetano Veloso, transformando-o em um sambão bem adequado a um desfile momino e à necessidade de poesia no cotidiano que os carnavalescos, às vezes, entendem bem.

Manuel Bandeira publicou, antes da Semana, um livro de poesia apropriadamente intitulado Carnaval. Ali aparecem pierrôs, colombinas, arlequins, fantasias e musicalidade que sobra num poeta que transita do simbolismo para o varguardismo modernista. O “Sonho de uma terça-feira gorda” e o “Poema de uma quarta-feira de cinzas” são expressões de um pensamento poético que já ruma para o cotidiano, ao qual o poeta será freqüentemente associado.

Mesmo Clarice Lispector lembrou-se do carnaval no conto “Restos do carnaval”, em que uma menina fantasiada de flor vive a tristeza de ter a mãe doente em casa. Depois de ter saído na chuva para conseguir remédio, a flor murcha, a fantasia se destrói; e a sua única salvação seria ainda ser reconhecida como flor, e não como simples menina... Clarice ainda estava longe de mostrar a alegria de que é constituído o festejo, pois mostra-se uma alegria difícil e melancólica de um carnaval quase malogrado.

Luís Fernando Verísssimo colocou num de seus contos de verão uma situação de carnaval. Trata-se de um flerte de crianças, que só ocorre no carnaval e se repete no baile do ano seguinte. A cada ano, uma nova fantasia; até que “Bandeira branca” anuncia a terna alegria do romantismo de carnaval...

Alegria fácil ou difícil, o fato é que o carnaval permanece tema que mobiliza os escritores. A adoção do tema por prosadores e poetas chama a atenção para seu senso de oportunidade no trato com o material de que se origina a literatura: como pretexto para escrever sobre coisas da vida, toma-se o carnaval como ambiente para a problemática de personagens – a festa se entremeia a vidas. Neste sentido, a literatura, como outras manifestações artísticas, apodera-se do vivido pelo povo como forma de representar o real. E o carnaval faz parte deste nosso real.