quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Humanismo como patologia
Vladimir Safatle
vladimirsafatle@revistacult.com.br
Professor no departamento de filosofia da USP
Há palavras que só podem ser escutadas quando gritadas. Só que, para gritar, é necessário força e, quando algumas dessas palavras não têm mais força para serem gritadas, a única coisa que resta é esperar que elas sejam ouvidas quando reduzirmos tudo o que nelas se contrapõe ao silêncio.
Percebamos, com os olhos de quem descobre um sintoma revelador, que aqueles que gostam de ancorar no porto do “humanismo” são os mesmos que não cansam de olhar para outros mares e chamar os que lá navegam de “niilistas”, “irracionalistas” e, se for necessário, até mesmo de “terroristas”. A estratégia é clara. A partir do momento em que a designação for imposta, nada mais falaremos do designado, pois simplesmente não será possível falar com ele, porque ele, no fundo, nada fala, haveria muito “fanatismo” nesses simulacros de sons e argumentos que ele chama de “fala”, haveria muito “ressentimento” em suas intenções, haveria muito “niilismo” em suas ações.
Bento Prado Júnior, que sabia muito bem o que esse tipo de esconjuração esconde, costumava lembrar, nessas situações, que: “Sempre se é o irracionalista de alguém”. Tudo indica que, infelizmente, caminhamos para um tempo em que será necessário acrescentar: “Sempre se é o niilista de alguém” e, pior, “Sempre se é o terrorista de alguém”. Ou seja, sempre há alguém a querer nos expulsar da razão, da criação, da política. Acusações dessa natureza são apenas a última arma desesperada daqueles que têm medo de a crítica ir “longe demais”, colocar em questão o que, para alguns, não deveria ser questionado, transformar a crítica, de mera comparação entre valores e caso, no questionamento de nossos próprios valores fundamentais.
Natureza segregadora e totalitária
Nesse sentido, que o humanismo só possa atualmente ser pronunciado por meio dessas suas designações impronunciáveis, que ele só possa ser enunciado abrindo esse lugar vazio para o qual todos aqueles que não se reconhecem mais na figura atual do homem devam ser enviados, isso apenas demonstra sua natureza profundamente segregadora e totalitária. Pois, daqui para a frente, o humanismo sempre virá para nos pregar o evangelho da tolerância de condomínio fechado, o racionalismo daqueles que acreditam que a maior realização da justiça é a guerra preventiva contra qualquer coisa que estiver geograficamente a leste da Turquia, daqueles que estão dispostos a falar com todos, desde que todos falem a língua dos seus valores e princípios.
Acima de tudo, “humanismo” será a palavra preferida daqueles que querem nos exilar no presente. Pois uma das maiores características do século 20 foi a luta pela abertura do que ainda não tem figura, luta pela advento daquilo que não se esgota na repetição compulsiva do homem atual e de seus modos. Essas lutas podem ser encontradas nas discussões próprias aos campos da estética, da política, das clínicas da subjetividade, da filosofia. Em vários momentos de nossa história recente, elas mostraram grande força para mover a história, engajar sujeitos na capacidade de viver para além do presente. No entanto, vemos atualmente um grande esforço em apagar tal história, isso quando não se trata de simplesmente criminalizá-la, como se as tentativas do passado de escapar das limitações da figura atual do homem devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a simples descrição de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás, pensar em maneiras novas de recuperar tais momentos nos quais o tempo para e as possibilidades de metamorfose do humano são múltiplas. Pois o humanismo parece querer nos ensinar a cartilha do passado que cheira ao enxofre da catástrofe e o futuro que não pode ser muito diferente daquilo que já existe. Talvez seja o caso, então, de dizer que tudo o que seus defensores, brandos ou não, conseguirão é bloquear nossa capacidade de agir com base em uma humanidade por vir, nos acostumar com um presente no qual, no fundo, ninguém acredita e a respeito do qual muitos já se cansaram. Ou seja, elevar o medo a afeto central da política.
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