quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O crime de Lady Gaga




Marcia Tiburi
marciatiburi@revistacult.com.br
Filósofa e escritora

Lady Gaga é o mais recente ídolo pop da cena internacional. Entenda-se por ídolo pop um indivíduo que encanta as massas com a habilidade artística de que é capaz sendo seu autor ou o mero representante de uma estética inventada por publicitários e estrategistas de produtos culturais. Nesse sentido, todo ídolo pop age como o flautista de Hamelin conduzindo por certo efeito de hipnose uma quantidade sempre impressionante de pessoas. Ele é também um guia estético e moral das massas. A propósito, entenda-se por massa um grupo de indivíduos que, ao se encontrar com outros, perde justamente a individualidade, tornando-se sujeito de sua própria dessubjetivação. Em outras palavras, ele é hipnotizado como se estranhamente desejasse sê-lo. A Indústria Cultural depende desse mecanismo, por meio do qual oferece ao indivíduo a oportunidade de se perder com a sensação de que está ganhando. O ídolo pop é a humana mercadoria que permite o gozo pelo logro que o espectador logrado aplica a si mesmo.

Lady Gaga certamente veio para nos lograr. Mas, como disse Walter Benjamin sobre livros (e também putas), muitas vezes a mercadoria vale muito mais do que o dinheirinho que pagamos por ela.

O paradoxal desejo das massas

Antes de mais nada, é preciso ver que Lady Gaga, a despeito da qualidade boa ou má de si mesma e do que ela produz, vem a nós com números impressionantes. Se na internet seus vídeos são vistos por milhões de pessoas (certamente, quando você ler este artigo, os números serão ainda maiores) é porque ela mesma sabe – ou o diretor e roteirista de seus belos videoclipes nos quais a quantidade aparece, seja na nota de dólar com o rosto de Gaga como no vídeo de “Paparazzi”, seja em “Bad Romance” nos índices na cena dos computadores – que se trata em sua obra da questão da quantidade, mais do que da qualidade. A Indústria Cultural sempre tem na quantidade uma questão mais importante do que a qualidade, mas, se Lady Gaga sabe disso e não o esconde, é porque elevou o cinismo a discurso, mas, ao mesmo tempo, lança-nos uma ironia capaz de fazer pensar.

A questão da quantidade adquire um contorno subjetivo na mentalidade dos indivíduos aniquilados no todo. Assim, uma característica expositiva da condição das massas de nosso tempo é o próprio “desejo de ser massa”. Trata-se da ânsia de adesão ao todo que se disfarça no desejo de saber o que todo mundo sabe, ver o que todo mundo vê. Complicado falar de desejo das massas, quando a “massa” remonta à possibilidade de se deixar moldar pela ação exterior justamente por ausência de desejo. Podemos, no entanto, entendê-lo usando uma imagem gasta como a da ovelha a participar do rebanho. Um modo de ter lugar desaparecendo mimeticamente no todo. Nesse sentido, o desejo de ser massa é o mesmo que nos coloca na situação de fazer parte da audiência fazendo com que liguemos a televisão no programa mais visto, que queiramos ver o filme com a maior bilheteria, que, caso cheguemos a desejar um livro, seja da lista dos mais vendidos. Fazer parte da audiência é a garantia de que em algum momento estaremos juntos, que faremos parte de uma comunidade mesmo que ela seja apenas “espectro”. A angústia da solidão, da separação e da própria individuação desaparece por um passe de mágica da imagem do ídolo pop.

Uma estética pop para o pós-feminismo?

A obra da jovem Lady Gaga não é objeto descartável como a maioria das mercadorias promovidas no contexto da indústria e do mercado cultural. Se nos detivermos em sua música, em sua dança ou em sua imagem isoladamente, não entenderemos o todo da mercadoria. Portanto, é preciso estar atento à performance que ela realiza. A apreciação disto que devemos hoje chamar de obra-produto ou produto-obra deve começar por aí, tendo em vista que, acima de tudo, Lady Gaga é uma performer que agrega em seus vídeos diversas formas artísticas que vão da música ao cinema, passando pela dança e chegando a uma relação curiosa com um aspecto inusitado da produção contemporânea nas artes visuais. Lady Gaga tange em seus vídeos mais famosos questões que estão presentes na obra de artistas contemporâneas que podemos chamar de vanguardistas por falta de expressão melhor, tais como Cindy Sherman, Daniela Edburg e Chantal Michel. No Brasil, Karine Alexandrino, Paola Rettore ou o pernambucano Bruno Vilella praticam a mesma suave ironia até o mais cáustico deboche com trabalhos sobre mulheres mortas.

O tema da mulher morta torna-se quase um lugar-comum na arte contemporânea, como foi no século 19. Naquele tempo, ele representava o impulso próprio do romantismo que via na mulher falecida e inválida um ideal agora retomado de modo irônico por diversas artistas contemporâneas. Lady Gaga vai, no entanto, muito além dessas artistas em termos de coragem feminista. Enquanto elas zombam das mulheres estereotipadas que morrem como Ofélias por um homem, Lady Gaga, de modo mais surpreendente e corajoso do que importantes artistas cultas, dá um passo adiante.

No vídeo de “Paparazzi” fica exposto o amor-ódio que um homem nutre por uma mulher, a invalidez à qual ela é temporariamente condenada por sua violência e, por fim, uma vingança inesperada com o assassinato desse mesmo homem. “Incitação à violência”, pensarão as mentes mais simples; “feminismo como ódio aos homens”, dirá a irreflexão sexista acomodada, quando na verdade se trata de uma irônica inversão no cerne mesmo do jogo simbólico que separa mulheres e homens. Se em “Paparazzi” o deboche beira o perverso autorizado psicanaliticamente (a mulher sai da posição deprimida ou melancólica e aprende a gozar com seu algoz, que ela transforma em vítima), em “Bad Romance”, “o vídeo mais visto de todos os tempos”, mulheres de branco – como noivas dançantes – surgem de dentro de esquifes futuristas para curar uma louca que chora querendo ter um “mau romance” com um homem. Um contraponto é criado no vídeo entre a imagem do rosto da própria Gaga levissimamente maquiado, demarcando o caráter angelical de sua personagem, em contraposição ao caráter doentio da personagem da mesma Gaga de cabelos arrepiados e olhos esbugalhados. Entre eles a bailarina sensual junto de suas companheiras faz o elogio do corpo que é obrigado a se erotizar diante de um grupo de homens.

A noiva é queimada. Sobre a cama, no fim, a noiva como um robô um pouco avariado, mas ainda viva, contempla o noivo cadáver. A ironia é o elogio do amor-paixão, do amor-doença e morte ao qual foi reduzido o amor romântico pela estética pop da ninfa pós-feminista. O feminismo só tem a agradecer.

Em “Telephone”, a estética eleita é a da lésbica e da pin-up. Ambas criminosas. A primeira por ser uma forma de vida feminina que dispensa os homens, a segunda por ameaçá-los com uma estética da captura (a mulher-imagem-de-papel, a mulher “cromo”, a mulher-desenho-animado que configura o conceito do “broto”, do “pitéu”). No mesmo vídeo o personagem de Gaga compartilha com Beyoncé uma cumplicidade incomum entre mulheres.

Esse sinal é dado no meio do vídeo, quando Beyoncé vai resgatar Gaga na prisão e ambas mordem um pedaço de pão, que logo é lançado fora como algo desprezível. A comida mostra-se aí como o objeto do crime. O vídeo é mais que um elogio ao assassinato do mau romance, ou da vingança contra o evidente amor bandido de quem a personagem de Beyoncé quer se vingar. Trata-se de uma profanação da comida pelo veneno que nela é depositado. O amor bandido é morto pela comida, uma arma simbólica muito poderosa associada à imagem da mulher-mãe, da mulher-doação, dedicada a alimentar seu homem na antipolítica ordem doméstica.

O palco é a lanchonete de beira de estrada como em Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. O assassinato é o objetivo do serviço das duas moças perversas que, no fim do vídeo, dançam vestidas com as cores da bandeira norte-americana – meio Mulher Maravilha – diante dos cadáveres de suas vítimas, já que, além do amor bandido, todos morreram. Cinismo? Sem dúvida, mas como paradoxal autodenúncia.

Mas o maior crime de Gaga, aquilo que fará com que tantos a odeiem, não será, no entanto, o feminismo sem-vergonha que ela pratica como uma brincadeira em que o crime é justamente o que compensa? E, como ídolo pop, não poderá soar aos mais conservadores como um modo de rebelar as massas de mulheres subjugadas pela perversa autorização ao gozo, doa a quem doer?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O tempo cura


Elvis Presley, 74 anos


Janis Joplin, 66 anos


Raul Seixas, 64 anos



Cazuza, 51 anos


Elis Regina, 64 anos



Michael Jackson, 50 anos

José Fujocka
fujocka@fineartstudio.com.br
Photodesigner

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Luiz Gonzaga, o eterno rei do baião

Jorge Sanglard
jorgesanglard@yahoo.com.br
Jornalista, pesquisador e produtor cultural

O “Rei do Baião”, o velho Lua, o Gonzagão, nascido Luiz Gonzaga do Nascimento, em 13 de dezembro de 1912, dia de Santa Luzia, na Fazenda Caiçara, depois Araripe, perto de Exu, no sertão pernambucano, cantou como poucos a alegria e a dor da gente de sua terra. Morto em 2 de agosto de 1989, há 21 anos, o sanfoneiro do povo de Deus, a voz da seca, deixou como legado uma música viva e forte, impregnada de alma, coração e fé. É o que deixa claro o seu legado musical. Sua obra é eterna e, 20 anos após sua morte, permanece como uma força da natureza, um grito de liberdade em nome de um povo que ainda luta por sua cidadania. Mas o que pouca gente conhece é o início da trajetória musical de Luiz Gonzaga em Minas Gerais, mais precisamente em Juiz de Fora, onde serviu o Exército durante cerca de cinco anos a partir de 1932.

Pioneiro da canção de protesto, com “Vozes da Seca”, em parceria de 1953 com Zé Dantas, Luiz Gonzaga simbolizou a voz de quem não tinha nem voz, nem vez. Em “Vozes da Seca” o recado social é direto: “Seu dotô, os nordestinos / Têm muita gratidão / Pelo auxílio dos sulistas / Mais dotô, uma esmola / A um homem qui é são / Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão”.

A trajetória de Luiz Gonzaga é um símbolo de persistência, obstinação, talento e força criativa popular. Filho do lavrador e sanfoneiro de oito baixos Januário e de Ana Batista de Jesus, a Santana, Gonzagão foi o segundo dos nove filhos do casal. Quatro de seus irmãos também seriam sanfoneiros. Seu pai era respeitado no sertão nordestino como sanfoneiro e consertador de sanfonas e influenciou os filhos. Aos oito anos, Luiz Gonzaga já tocava em festas e mostrava vocação para a música. Aos 17 anos, um namoro frustrado com a jovem Nazarena, filha de um fazendeiro da região, daria início a uma mudança radical na vida do sanfoneiro.

Em 19 de setembro de 1980, em Juiz de Fora, Minas Gerais, antes do esperadíssimo show “A Vida do Viajante”, ao lado do filho adotivo Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (22/09/1945 – 09/04/1991), o saudoso Gonzaguinha, o velho Lua voltava à cidade que mais marcara a sua vida após sair do Nordeste. Ao conceder um histórico depoimento ao Museu da Imagem e do Som de Juiz de Fora, tendo entre os entrevistadores os amigos Santo Lima, músico que acompanhou seu aprendizado no acordeão, e Romeu Rainho, seu empresário no início dos anos 1950, Luiz Gonzaga lançou um feixe de luz sobre um período pouquíssimo conhecido de sua vida.

Em entrevista emocionada, Gonzagão revelaria detalhes de sua saída de Exu, aos 17 anos, seu alistamento militar com a idade adulterada em um ano, poucos meses antes da eclosão da Revolução de 1930, sua vinda para Juiz de Fora, em 1932, onde viveu por cerca de cinco anos e aprimorou sua musicalidade, a ida para o Rio de Janeiro, em 1939, e o início do sucesso como o porta-voz do sertão, o Rei do Baião.

Gonzagão contou no depoimento ao MIS de Juiz de Fora em detalhes os motivos de ter deixado Exu: “Tudo isso que aconteceu comigo foi por causa de uma surra, uma surra bem dada, aquele castigo que, quando é bem aplicado, na hora exata, dá bons resultados. Foi o que aconteceu comigo. Puxador de sanfoninha, oito baixos, ‘pé de bode’, na companhia de meu pai, Januário, herdei essa vocação de tocador de sanfona. Minha mãe, uma mulher de mão aberta, Dona Santana, coração aberto, chegava a tirar dos filhos para matar um pouco a fome dos pobres. Pois bem, me considero o maior herdeiro, o herdeiro mais bem aquinhoado de meus pais, que nada tinham, mas tinham alma, coração e fé. Eu quis casar muito cedo, em 1930, aos 18 anos incompletos, e o pai da moça disse que eu era um tocadorzinho de merda, que eu não tinha futuro nenhum para sustentar a filha de um homem... E eu achei aquilo um desaforo. Moleque ignorante, raçudo, porque o pirão que mamãe fazia nos dava essa condição de ter bom físico, entendi de tirar a vida do homem. Porque negócio de matar gente no sertão foi mais maneiro, agora é que não é mais. Chamei o homem no canto da feira, assim, ele me enrolou na conversa, me tirou de banda, falou com a minha mãe e ela me expulsou dali da feira, fora da hora, porque ela não tinha vendido sequer as cordas que a gente tinha levado para vender e para poder comprar um quilo de carne e mais umas besteirinhas. Mas ela não quis vender nada, demos no pé e, chegando em casa, ela me cobriu no pau. Uma surra da moléstia. Meu pai me bateu pela primeira vez. Ele nunca havia me batido. Minha mãe tinha mão leve, mas meu pai não. Mas ele achou que eu havia me excedido e entrei no pau também pela mão pesada de meu pai”.

Foi a partir dessa surra de mãe e pai que Luiz Gonzaga resolveu sair de casa, em meados de 1930: “E foi aí que eu arribei, com raiva. Ingressei nas Forças Armadas e, para isso, tive que aumentar a idade, menti, porque eu queria me libertar”. Passou pelo Crato e depois por Fortaleza, no Ceará, onde serviu no 23.º Batalhão de Caçadores. A tensão política que precedia a Revolução de 1930 acabou levando Gonzagão e uma parte de seu batalhão para a cidade de Souza, na Paraíba, onde permaneceram por pouco tempo. Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, Gonzaga foi deslocado com seus companheiros de farda para o interior do Ceará e também para Teresina, no Piauí. Passado o primeiro período alistado, pediu para ser engajado no Exército com destino ao “Sul” e acabou chegando com seu contingente ao Rio de Janeiro em fins de 1931, onde permaneceria internado no Hospital Geral do Exército, durante alguns meses, por ter adoecido.

Em agosto de 1932, Luiz Gonzaga foi destacado para Belo Horizonte, Minas Gerais, para o 12.º RI que, segundo Gonzagão, havia se esfacelado na Revolução de 1930 por ter resistido, leal e fiel ao governo, não se entregando e pagando um preço muito caro. Em novembro de 1932, chegaria a Juiz de Fora sendo destacado como corneteiro do Exército, servindo no 10.º RI. O corneteiro «Bico de Aço», como ficou conhecido, foi engajado e reengajado. Segundo Gonzagão, esse tempo de Exército fez com que se tornasse o mais antigo do grupo, com algumas folgas, e começou a fazer umas farrinhas. Como corneteiro, encantava os namorados com seu toque inusitado do ‘Silêncio’: “Eu estava fazendo da corneta um piston. Eu queria ser artista e danei de florear na corneta, mas eu me dei mal. E, um dia, fui em cana porque toquei bem demais. A disciplina me apanhou e eu tive que tocar o ‘Silêncio’ certo. Porque diziam que era tão bonito o ‘Silêncio’ que eu tocava que os namorados ficavam ali por perto para irem pra casa só depois que eu tocasse. E eu ficava por perto do corneteiro destacado para pedir pra me deixar tocar no lugar dele”.

Foi nesse período que conheceu o violonista e cantor Santo Lima e o sanfoneiro Dominguinhos Ambrósio, que faziam bonitas serenatas e Gonzagão gostava de acompanhá-los: “O Santo Lima cantava e tocava tanto um cavaquinho quanto um banjozinho legal. E a gente ia ali por aquelas ruas que têm aquelas caboclas diferentes, vindas de todas as partes do interior do Estado, vindo por aqui numa vida fácil, fácil, fácil. Muito fácil, mas ninguém queria ir para lá, homem nenhum queria ir lá enfrentar aquela vida fácil. Só queria saber de pegar as caboclas e sair vadiando por aí”.

Foi numa dessas noitadas que Luiz Gonzaga pegou um acordeão, pela primeira vez, das mãos do saudoso Dominguinhos Ambrósio: “Eu do Exército e ele da Polícia Militar, lá da Tapera, do famoso Segundo Batalhão de Minas”. E arremata: “Santo Lima me ensinou a cantar samba, me ensinou até a fazer acorde no violão e no cavaquinho. Eu também andei arriscando por aí, no violãozinho, tocando nas grossas e, na sanfona, procurando as pretas”. Segundo Santo Lima revelou na entrevista, como Gonzagão não tinha nada para fazer à noite acabava carregando o violão para ele no caminho das serenatas. E ainda contou uma história inédita: “O Regimento do Exército ordenou que o Dominguinhos Ambrósio, da PM, ensinasse ao Luiz Gonzaga a escala de 120 baixos e eu fui falar com o Dominguinhos, que reagiu e disse que, por ordem, não ensinaria. Só ensinaria por livre e espontânea vontade e porque gostava demais dele. E assim foi feito”. Mas, uma coisa era certa, Gonzagão já tocava a sanfoninha dele como gente grande e muita gente com os 120 baixos de um acordeão não fazia o que ele criava só com oito baixos.

Em 1937, ainda em Juiz de Fora, já estava pensando em pegar outro caminho: “Minha vida sempre foi andar, meu destino era andar, foi andando, foi amando esse terreno sagrado que me tornei Luiz Gonzaga, mas levei de Juiz de Fora o instrumento e essa vivência musical toda. Em Juiz de Fora, foi onde marquei mais a minha vida, após sair do Nordeste. Eu aprendi alguma coisa com o Santo Lima, com o Elias, músico do 12.º RI, a jazz band do 12.º, conheci o banjista famoso que cantava e sapateava, o Otavinho (Otávio Cataldi do Couto), e também o irmão dele o Mozart (Mozart Cataldi do Couto), que era divino tocando cavaquinho e violão. Conheci ainda o Armênio. E o Dominguinhos me levou a uma rádio para ver como funcionava e até dei uma puxadinha de fole por aí. Mas não havia a intenção de documentar nada naquela época. Acho difícil encontrar algum vestígio desse tempo”.

Com a organização de uma companhia que seria criada dentro do 11.º RI, em São João Del Rei, e, depois de formada, ia para Ouro Fino, no Sul de Minas, Luiz Gonzaga deixou Juiz de Fora. Em 1939, depois de uma década no Exército, daria baixa da caserna e rumaria para o Rio de Janeiro, levando sua sanfona branca de 80 baixos. Sua intenção era aguardar num quartel o navio do Lloyd que seguiria para Recife e depois pretendia voltar para Exu. Mas não foi isso que aconteceu. O atraso do navio fez com que Luiz Gonzaga explorasse a noite da zona boêmia do Mangue, no Rio de Janeiro, onde tocava, pelo dinheiro que pintasse, um repertório distante de suas raízes musicais. Por sugestão de um grupo de estudantes nordestinos, radicados no Rio, passou a tocar “os negocinhos do Nordeste”, isto é, forró, xaxado, maracatu e baião. A partir daí, sua vida começaria a mudar novamente.

Ao apresentar o chamego "Vira e Mexe" no programa de rádio de Ary Barroso conquistou a nota máxima, a nota cinco, e uns trocados, vislumbrando um novo caminho ao tocar as músicas do Nordeste brasileiro, aquelas coisas que ouvia, desde criança, ao lado do pai sanfoneiro Januário. Em março de 1941, Luiz Gonzaga com sua sanfona de 80 baixos substituiria um sanfoneiro na gravação da canção “A viagem do Genésio”, de Genésio Arruda e Januário França, deixando registrado seu batismo de fogo musical. Esta gravação abre o primeiro volume da caixa de três CD. Sua trajetória artística tomaria impulso e, graças a um contrato com a Rádio Tupi e com as gravações de seus primeiros discos de 78 rotações, na RCA, em 11 de março de 1941, Gonzaga dava os primeiros passos concretos para tornar seu nome uma legenda da música popular brasileira de todos os tempos. Segundo o pesquisador José Silas Xavier, as primeiras gravações trazendo Luiz Gonzaga cantando só surgiriam em abril de 1945. Daí pra frente, Gonzagão firmaria sua carreira e conquistaria o país com sua voz e sua sanfona.

De sanfona em punho, Gonzagão percorreu o Brasil inteiro e semeou por este imenso chão seu canto de fé e de esperança. Seu destino foi andar por este país afora e encantar o povo com sua música entranhada nas raízes do Brasil. Os anos 1980 marcaram a retomada do reconhecimento nacional da importância cultural e social do canto de Luiz Gonzaga. A turnê “A Vida do Viajante”, ao lado de Gonzaguinha, resgataria o prestígio de Gonzagão e reafirmaria sua contribuição como mestre da canção popular brasileira.

O produtor Leon Barg, falecido aos 79 anos, no último dia 12 de outubro, no Rio de Janeiro, reeditou em CD pelo selo Revivendo inúmeras preciosidades musicais de Gonzagão. Após uma minuciosa pesquisa, tendo como assistente de produção a filha Lilian Barg, em 2006, Leon lançou um tributo triplo, pela Revivendo, intitulado “Luiz Gonzaga, seu canto, sua sanfona e seus amigos”, numa caixa de CDs em três volumes, que é uma homenagem ao sanfoneiro maior do Brasil e um exemplo do vigor da música de Gonzagão. Barg revelou todo o cuidado em reproduzir faixas históricas extraídas de velhos discos em 78 rpm e de LPs, trazendo 18 canções em cada um dos três CDs e a caixa atesta a importância do mestre Luiz Gonzaga no cenário da música popular brasileira do século XX, além de ser um tributo prestado à preservação da memória musical do Brasil. Constata a força de parceiros como Humberto Teixeira, Zé Dantas e João Silva, entre muitos outros compositores, e ainda revela canções de outros autores, como Walter Santos / Tereza Souza, Dominguinhos / Fausto Nilo, Genésio Arruda / Januário França, Mauro Pires / Messias Garcia, Patativa do Assaré, Rosil Cavalcanti, Onildo Almeida, Raul Sampaio, Luiz Ramalho, Genésio e o “velho” Januário José dos Santos, pai do sanfoneiro.

Entre as raridades reveladas está a gravação de Gonzagão, em 1968, em plena ditadura militar, cantando a emblemática “Prá não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, que gravara, em 1965, a obra-prima “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, também incluída nesta edição histórica. A apresentação desta caixa da Revivendo foi assinada pelo pesquisador José Silas Xavier, uma referência na música popular brasileira, que narrou inúmeras passagens da trajetória do sanfoneiro maior do Brasil e traçou um perfil do compositor e instrumentista, que se tornaria uma das maiores expressões musicais brasileiras de todos os tempos. O referido depoimento de Gonzagão ao MIS de Juiz de Fora serviu de base para parte do texto elaborado por Silas apresentando os CDs. O teor integral da entrevista foi divulgado em primeira-mão, em julho de 1997, pela revista AZ, editada na época pela Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa).

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Clarice Lispector - Infelicidade Inspiradora

José Castello
j.castello@uol.com.br
Escritor e jornalista

Clarice Lispector amou o romancista Lúcio Cardoso, homossexual, e o cronista Paulo Mendes Campos, que era casado. As paixões impossíveis alimentaram sua literatura - e ela não foi a única escritora a se nutrir do fracasso amoroso


A paixão alimenta a literatura ou a enfraquece? Amar leva a escrever ou a calar? Clarice - A Vida de Clarice Lispector, biografia do jornalista norte-americano Benjamin Moser - que chega neste mês ao Brasil com o status de ser a mais completa sobre a autora de Laços de Família e Felicidade Clandestina —, sugere que, mesmo quando o amor é impossível, ele estimula a escrita. Mesmo fracassado, um amor pode ajudar a escrever.

Casada entre 1943 e 1959 com o diplomata Maury Gurgel Valente, Clarice nunca escondeu que se sentia sufocada pela vida conjugal. "Nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente", escreveu em uma carta datada de 1944. Se o casamento com Maury "deu certo" - gerou dois filhos e perdurou por 16 anos - a paixão pelo romancista mineiro Lúcio Cardoso foi muito mais importante para sua escrita, mesmo "dando errado".

Quando se conheceram, em 1940, Clarice tinha 20 anos, e Lúcio - brilhante e sedutor -, 28. Mas era um amor impossível: Lúcio era um homossexual assumido. Havia, porém, lembra Moser, um segundo impedimento: os dois eram "parecidos demais". Mesmo assim, especula Moser, foi esse amor não correspondido que levou Clarice a cultivar a solidão - condição essencial para a escrita. Mais que isso: foi o fracasso no amor que a empurrou para a literatura. Por meio de Lúcio, ela passou a frequentar as rodas literárias do "grupo introspectivo", que se reunia no Bar Recreio, no Rio de Janeiro. Chegou, assim, à poesia metafísica de Augusto Frederico Schmidt e encontrou sua ascendência "mística" em Cornélio Penna e Octavio de Faria, essenciais para a sua obra. Foi Lúcio Cardoso quem sugeriu o título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943). Foi ele, ainda, quem lhe mostrou que as anotações dispersas, que ela tomava às tontas e pareciam incoerentes, eram, na verdade, o seu método.

Nos anos 60, Clarice Lispector se aproximou de outro escritor: o cronista e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. Desde 1959 estava separada de Maury, com quem tinha morado na Itália, Suíça e Estados Unidos. Em junho daquele ano, regressou com os dois filhos ao Brasil, apostando novamente na solidão. Em 1962, porém, envolveu-se com Paulo.

Diz Moser, com astúcia, que ele foi uma "versão heterossexual" de Lúcio Cardoso. Ambos eram mineiros, católicos, talentosos e sedutores. Eram também perdulários, boêmios e alcoólatras. Como Lúcio, Paulo exerceu uma forte influência intelectual sobre Clarice. Mas era outro amor impossível: ele era casado. Mesmo assim os dois viveram uma paixão secreta. Vínculos invisíveis os ligavam. O jornalista Ivan Lessa assim resumiu: "Em matéria de neurose, nasceram um para o outro". Clarice tentava ser discreta, mas não continha a ansiedade. Intimado pela mulher, Paulo partiu com a família para Londres. Moser avalia que o fim do romance isolou Clarice do meio literário e, de um modo mais geral, do "mundo adulto", com o qual ela teve sempre laços muito frágeis. Ela o amou até o fim de seus dias.

Tensão e Loucura

É sempre ambígua e tensa a relação amorosa entre escritores. Influenciada pela filosofia de Jean-Paul Sartre, com quem viveu uma relação heterodoxa, Simone de Beauvoir acreditava que todo amor é impossível, mas que era possível fazer muito de seus destroços. Só porque via o amor como uma experiência desastrosa, Simone conseguiu amar Sartre: não moravam juntos, não tiveram filhos e namoravam outras pessoas. Ele mais que ela. "Não somos a mesma pessoa, mas temos as mesmas recordações", Simone argumentava. Tinha certeza de que, escrevendo, ajudava Sartre a entender quem ele era.

Às vezes, como mostra a relação dos poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, a mistura de literatura e paixão resvala na loucura. Quando se aproximaram, Verlaine, um homem casado, tinha 26 anos, e Rimbaud era um rapazote de 17. Correspondiam-se. Apaixonaram-se. Verlaine se embriagou com as ideias de Rimbaud, que combatia os parnasianos, a família e a pátria. Na busca do "desregramento dos sentidos", abusaram do absinto e do haxixe. Mas brigavam sempre. Verlaine se arrependia sempre. "Volte, volte, amigo. Juro que serei bom", escreveu em carta de 1873. Numa dessas brigas, Verlaine feriu Rimbaud com um tiro no punho. Passou dois anos na prisão. A paixão os destruiu, mas ampliou os limites de sua poesia.

A mistura de amor e literatura tomou uma forma quase perfeita na figura da escritora Lou Andreas-Salomé. Brilhante e sensual, ela "devorou" o espírito de três grandes homens: o poeta Rainer Maria Rilke, o filósofo Friedrich Nietzsche e o fundador da psicanálise, Sigmund Freud. Foram amores distintos - que ela, friamente, chamava de "experiências". Com Rilke, ela viveu uma paixão intensa que esbarrou na fraqueza do poeta. Aos poucos, Lou entendeu que a poesia era, para ele, o avesso do desespero. Ficou com o melhor - o poeta - e se afastou do homem. Pragmática, escreveu: "Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la".

Mesmo quando bordeja o desespero, a paixão sustenta a literatura. Casada em 1912 com o escritor Leopold Woolf, nem o amor salvou Virginia Woolf. Na base da paixão de Leopold por Virginia estava não só o fascínio por sua escrita, mas o desejo de salvá-la da loucura - que enfim, no ano de 1941, levou-a a afogar-se no rio Ouse. A admiração literária e o amor não garantiram a felicidade. Mas a fizeram escrever.

Também é impossível não pensar no poeta britânico Ted Hughes, cujo amor foi insuficiente para salvar a mulher, a norte-americana Sylvia Plath, do suicídio - que ela enfim cometeu em 1963. Um ano antes, cansado, Hughes a deixou. Tantas e tantas vezes a paixão não basta. Mas a importância de Hughes na poesia de Sylvia é indiscutível.

Mesmo quando se torna asfixiante, a paixão não anula a escrita. O caso entre os americanos F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre é uma prova disso. Em carta de 1920, Zelda escreve ao amado: "Eu jamais poderia passar sem você - ainda que me deixasse morrer de fome e me espancasse". A presença esmagadora de Scott não a impediu de escrever um belo romance como Esta Valsa É Minha, de fundo autobiográfico. Já em sua vida pessoal, o amor não lhe bastou. Em 1930, demonstrando a insuficiência da paixão para sustentar uma vida, Zelda foi internada como louca.

Nem todos, como o argentino Adolfo Bioy Casares, tiveram a sorte de transformar a parceria amorosa - no caso, o casamento com a escritora Silvina Ocampo - em fecunda parceira literária. Juntos, escreveram Quem Ama, Odeia, novela simples, mas inspirada, que resume um pouco não só os paradoxos da paixão, mas as relações tensas, porém produtivas, entre amor e literatura.

Adolfo e Silvina são, provavelmente, uma exceção. Mesmo quando fracassa, porém, um amor pode salvar um escritor.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Artistas do sertão

Wilker Sousa
wilkersouza@revistacult.com.br
Jornalista

Na região serteneja do Cariri, artistas locais reforçam a tradição do artesanato

Composta por 12 municípios do sertão cearense, a região do Cariri tem no artesanato uma de suas principais manifestações artísticas. Na esteira da efervescência cultural que toma conta da região durante os dias da Mostra Sesc, artesãos locais ganham maior visibilidade ante os olhares curiosos daqueles que tomam contato com suas obras pela primeira vez. Muitos desses olhares convergem para a sede da Associação dos Artesãos de Juazeiro Mestre Noza, localizada no antigo prédio da cadeia pública de Juazeiro do Norte, onde funciona desde sua criação, em 1985.

O nome é uma homenagem ao pernambucano Inocêncio Medeiros da Costa (1897-1983), o mestre Noza, cuja arte foi estimulada por Padre Cícero nos primórdios de Juazeiro. Fundada a cidade, Padre Cícero buscava desenvolver a economia local, incentivando os moradores a desenvolverem suas aptidões; e foi por meio desta iniciativa que Noza se tornou o primeiro artesão do município. Seu nome hoje catalisa os 275 artistas integrantes da Associação, entre membros efetivos e cadastrados. A diferença é que aos primeiros é conferido o direito de votar e de ser votado em pleitos realizados a cada dois anos. Esculturas em madeira ou argila, xilogravura, literatura de cordel, todas as obras são compradas pela associação, política que, embora dispendiosa, garante a renda de muitos artistas: “seria melhor que os trabalhos ficassem consignados, mas aí não teria mais artesãos porque a maioria tem como única fonte de renda a produção da arte popular”, explica Hamurábi Bezerra da Cruz, 39 anos, presidente da associação.

Dada a marcante tradição religiosa da região, predomina a arte sacra, como atestam as inúmeras representações de Cristo, da Virgem, dos santos, além, é claro, do Padre Cícero, cujo lugar na hierarquia divina parece ultrapassar o status de santo. Há, contudo, outros personagens recorrentes, com destaque para Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré e Lampião. Os preços variam. Questionado sobre os valores, Hamurábi exibe desde as miniaturas de santos a R$ 5, até a escultura em homenagem a Luiz Gonzaga, recém-vendida a turistas norte-americanos por R$ 2.500.

Com o dinheiro das vendas aliado ao fomento estatal (a associação mantém um convênio com o governo do Ceará e o Ministério da Cultura), o intuito é manter viva uma tradição se arrasta por gerações, sem se deixar seduzir por “modernas” técnicas de aprendizado, conforme argumenta Hamurábi: “a gente se sente invadido quando chega alguém para dar oficinas de design, porque querem dizer para gente como tem que fazer. Acredito muito no que é nato. A gente precisa desenvolver a aptidão, mas ninguém pode ensinar o outro a ser artista.”

Não é por enricar

A 45 quilômetros de Juazeiro está o município de Nova Olinda. Ao chegar à cidade, quem procurar por um senhor conhecido por seus trabalhos em couro logo será conduzido à oficina do mestre Espedito Seleiro. Mais do que um apelido, “Seleiro” é uma herança paterna, pois era seu pai quem produzia selas para os vaqueiros da região, inclusive para o bando de Lampião. Quando o pai faleceu em 1971, Espedito já havia aprendido o ofício e o transmitiu aos seus irmãos e filhos. Passados mais de 50 anos dedicados ao artesanato, em 2008 ele recebeu do governo cearense o título de Mestre da Cultura, em reconhecimento à contribuição dada por ele à cultura do estado. A partir de então, passou a receber um salário mínimo, o qual se soma os lucros de sua oficina – apinhada de calçados, bolsas, entre outros muitos artefatos de couro. O dinheiro, contudo, não é um fim: “ Isso é uma coisa que a gente faz por amor à profissão. Eu me dou bem quando estou dentro de uma oficina igual a essa aqui; não é interessado em enricar, é só porque eu adoro o trabalho.”

Há tempos seus artefatos cruzaram a fronteira do sertão nordestino e caíram no gosto de turistas estrangeiros e de brasileiros ilustres como Gilberto Gil. Embora haja uma demanda considerável de pedidos para exportação, o artesão alega não ter condições de atender: “a gente só não manda mais para outros países porque não tem produção para isso. Aqui é diferente de uma fábrica em que todo dia vai gente na sua porta pedir emprego. Aqui eu tenho que começar com alguém bem novinho e quando ele vem a aprender, já está velho.” Enquanto dá atenção aos clientes de variadas idades e graus de escolaridade, Mestre Espedito caminha sob o olhar atento de outro ilustre sertanejo, Luiz Gonzaga, cuja frase estampada no alto da parede é endossada pelos admiradores da cultura popular: “Você pode até cursar na melhor escola, mas não será ninguém se não souber respeitar as ideias e a cultura do povão.”

Humanismo como patologia



Vladimir Safatle
vladimirsafatle@revistacult.com.br
Professor no departamento de filosofia da USP

Há palavras que só podem ser escutadas quando gritadas. Só que, para gritar, é necessário força e, quando algumas dessas palavras não têm mais força para serem gritadas, a única coisa que resta é esperar que elas sejam ouvidas quando reduzirmos tudo o que nelas se contrapõe ao silêncio.

Percebamos, com os olhos de quem descobre um sintoma revelador, que aqueles que gostam de ancorar no porto do “humanismo” são os mesmos que não cansam de olhar para outros mares e chamar os que lá navegam de “niilistas”, “irracionalistas” e, se for necessário, até mesmo de “terroristas”. A estratégia é clara. A partir do momento em que a designação for imposta, nada mais falaremos do designado, pois simplesmente não será possível falar com ele, porque ele, no fundo, nada fala, haveria muito “fanatismo” nesses simulacros de sons e argumentos que ele chama de “fala”, haveria muito “ressentimento” em suas intenções, haveria muito “niilismo” em suas ações.

Bento Prado Júnior, que sabia muito bem o que esse tipo de esconjuração esconde, costumava lembrar, nessas situações, que: “Sempre se é o irracionalista de alguém”. Tudo indica que, infelizmente, caminhamos para um tempo em que será necessário acrescentar: “Sempre se é o niilista de alguém” e, pior, “Sempre se é o terrorista de alguém”. Ou seja, sempre há alguém a querer nos expulsar da razão, da criação, da política. Acusações dessa natureza são apenas a última arma desesperada daqueles que têm medo de a crítica ir “longe demais”, colocar em questão o que, para alguns, não deveria ser questionado, transformar a crítica, de mera comparação entre valores e caso, no questionamento de nossos próprios valores fundamentais.

Natureza segregadora e totalitária

Nesse sentido, que o humanismo só possa atualmente ser pronunciado por meio dessas suas designações impronunciáveis, que ele só possa ser enunciado abrindo esse lugar vazio para o qual todos aqueles que não se reconhecem mais na figura atual do homem devam ser enviados, isso apenas demonstra sua natureza profundamente segregadora e totalitária. Pois, daqui para a frente, o humanismo sempre virá para nos pregar o evangelho da tolerância de condomínio fechado, o racionalismo daqueles que acreditam que a maior realização da justiça é a guerra preventiva contra qualquer coisa que estiver geograficamente a leste da Turquia, daqueles que estão dispostos a falar com todos, desde que todos falem a língua dos seus valores e princípios.

Acima de tudo, “humanismo” será a palavra preferida daqueles que querem nos exilar no presente. Pois uma das maiores características do século 20 foi a luta pela abertura do que ainda não tem figura, luta pela advento daquilo que não se esgota na repetição compulsiva do homem atual e de seus modos. Essas lutas podem ser encontradas nas discussões próprias aos campos da estética, da política, das clínicas da subjetividade, da filosofia. Em vários momentos de nossa história recente, elas mostraram grande força para mover a história, engajar sujeitos na capacidade de viver para além do presente. No entanto, vemos atualmente um grande esforço em apagar tal história, isso quando não se trata de simplesmente criminalizá-la, como se as tentativas do passado de escapar das limitações da figura atual do homem devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a simples descrição de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás, pensar em maneiras novas de recuperar tais momentos nos quais o tempo para e as possibilidades de metamorfose do humano são múltiplas. Pois o humanismo parece querer nos ensinar a cartilha do passado que cheira ao enxofre da catástrofe e o futuro que não pode ser muito diferente daquilo que já existe. Talvez seja o caso, então, de dizer que tudo o que seus defensores, brandos ou não, conseguirão é bloquear nossa capacidade de agir com base em uma humanidade por vir, nos acostumar com um presente no qual, no fundo, ninguém acredita e a respeito do qual muitos já se cansaram. Ou seja, elevar o medo a afeto central da política.