Manoel Ricardo de Lima
manoelrl@uol.com.br
Escritor, professor de literatura portuguesa da UFSC
Charles Nicholl envereda pelo gênero biografia para trazer de volta os tempos de auto-exílio de Rimbaud no continente africano
Em um texto de seu Formas Breves, Um cadáver sobre a cidade, Ricardo Piglia conta sobre uma imagem fotográfica do caixão de Robert Arlt, retirado pela janela da casa, suspenso por cabos e roldanas, pendurado no ar, porque Arlt era “grande demais para passar pelo corredor”, diz ele. É deslocando a imagem que Piglia vai dizer também o quanto pode se ler a partir deste caixão suspenso algum lugar de Arlt na literatura dita argentina: como se aquele caixão ainda pairasse suspenso sobre Buenos Aires para fazer de Arlt o mais contemporâneo entre os escritores argentinos.
Num outro desdobramento, e numa outra forma de tentar ler um cadáver, há uma fotografia singular de Arthur Rimbaud, que está como capa do livro de Charles Nicholl, Rimbaud na África (Nova Fronteira), uma biografia dos tempos de auto-exílio de Rimbaud no continente africano publicada faz pouco: um auto-retrato de 1883, em Harar, Etiópia. A fotografia mostra o poeta francês de pé, próximo a uma árvore, com algumas folhagens rasas ao seu entorno, e de braços firmemente cruzados.
Creio já estar sabido do quanto a poesia do mais que jovem Rimbaud (1854-1891) não deixa também de ser, ao mesmo tempo, uma tensa ao poema moderno - exatamente porque feita e manipulada por aquilo que hoje chamamos de adolescente, impulsos pueris e vertiginosos e, por isso, provável, uma poesia corajosa ao extremo - mas também e principalmente um gesto ao abandono, uma ausência, um retirar-se, uma disposição para sair, uma “palavra profética”: “essa palavra sempre dita e nunca ouvida, que a dobra com um eco prévio, rumor de vento e impaciente murmúrio destinados a repeti-la antecipadamente, correndo o risco de a destruir precedendo-a”, como lembra Maurice Blanchot acerca da palavra de Rimbaud.
Não custa lembrar também a cisma de Mário de Andrade em seu conhecido texto de 1924/1925, A escrava que não é Isaura, quando começa (e repisa uma espécie de Dona Ausente) com a parábola cristã do mito da origem, o homem e a mulher (a mulher nua), esta ausente, para uma outra, a poesia, e a criação de um estatuto, a do “vagabundo genial”.
O fato é que entre lugares aqui, lugares acolá e todos os tempos para todos os lados desde o século XIX, se formos pensar numa cronologia, Rimbaud nos atropela com uma vileza ímpar; e se monta como um cadáver sobre o poema para dizer e exigir um certo seu lugar ali, aqui e acolá, como pairasse suspenso sobre o poema no mundo ocidental moderno e até agora, mais perto. Se muito cedo larga mão da poesia e se se manda para Áden, na ponta africana perto da península arábica, não é isto uma forma de desdém ao que deixa como marca nos seus textos mais que interessantíssimos à sua idade de abandono, 18 anos (são coisas como O Barco Bêbado, Iluminações ou Uma Temporada no Inferno), mas sim uma forma mais simples, cruzar os braços sob uma árvore no continente bárbaro, a civilizar, apenas para talvez suspender ali, naquele instante, o seu próprio e futuro cadáver do poema.
Retocar este exílio de Rimbaud em seu período na África, um período branco, num texto colado à forma atual em que se encontra o gênero da biografia, mercantil e muito fragilizado, logo absolutamente abobalhado, inda mais diante uma dificuldade a documentos, mapas e cartografias deste momento da vida de Rimbaud é quase tarefa sem gesto; e sabemos que há muitas cartas desta época - e publicadas. No Brasil há uma edição da L&PM, de 1983, intitulada Correspondência de Rimbaud, com a correspondência da África, a com Verlaine e as cartas quando de sua estada em Marselha, perto de morrer. Essas cartas sim, muito mais que tudo, são os devidos apontamentos de uma possível biografia de Rimbaud, assim como são os diários íntimos de Kafka e as suas cartas a Felice, a Milena, a Dora; ou a sua Carta ao Pai.
Mais complicado ainda nesta biografia de Rimbaud, é quando se dá a ver a pauta de uma invenção também fragilizada, porque cansativa, provocada por um texto que definha uma paisagem alargada por viagens à solapa do tempo; se só isso, este livro talvez seja nele mesmo um enfado do texto, no texto. Uma simples e rápida passagem do texto de Charles Nicholl, o início do capítulo 17, O caso Lababut, pode demonstrar o quanto a sua biografia de Rimbaud beira a isso tudo: “Cansado dessa farsa de sua amante africana, atormentado pela raiva e pelas incertezas em relação ao emprego com Bardey, ‘entorpecido’ e ‘brutalizado’ pela vida em Áden, Rimbaud começa a considerar novas opções. No dia 20 de outubro de 1884, comemora - se é que se pode dizer isso - seu trigésimo aniversário: ‘Vejo que um terço da minha vida já passou’, escreve ele.” Talvez retomar a imagem da fotografia de Rimbaud que foi utilizada como capa do livro e apontar nela os braços cruzados como de fato um abandono, uma ausência, ou como uma possibilidade para outras formas de revisão de um trabalho tão interessante quanto o seu; e Charles Nicholl pode tomar este como o seu “grand péché radieux”, não mais que isso.
manoelrl@uol.com.br
Escritor, professor de literatura portuguesa da UFSC
Charles Nicholl envereda pelo gênero biografia para trazer de volta os tempos de auto-exílio de Rimbaud no continente africano
Em um texto de seu Formas Breves, Um cadáver sobre a cidade, Ricardo Piglia conta sobre uma imagem fotográfica do caixão de Robert Arlt, retirado pela janela da casa, suspenso por cabos e roldanas, pendurado no ar, porque Arlt era “grande demais para passar pelo corredor”, diz ele. É deslocando a imagem que Piglia vai dizer também o quanto pode se ler a partir deste caixão suspenso algum lugar de Arlt na literatura dita argentina: como se aquele caixão ainda pairasse suspenso sobre Buenos Aires para fazer de Arlt o mais contemporâneo entre os escritores argentinos.
Num outro desdobramento, e numa outra forma de tentar ler um cadáver, há uma fotografia singular de Arthur Rimbaud, que está como capa do livro de Charles Nicholl, Rimbaud na África (Nova Fronteira), uma biografia dos tempos de auto-exílio de Rimbaud no continente africano publicada faz pouco: um auto-retrato de 1883, em Harar, Etiópia. A fotografia mostra o poeta francês de pé, próximo a uma árvore, com algumas folhagens rasas ao seu entorno, e de braços firmemente cruzados.
Creio já estar sabido do quanto a poesia do mais que jovem Rimbaud (1854-1891) não deixa também de ser, ao mesmo tempo, uma tensa ao poema moderno - exatamente porque feita e manipulada por aquilo que hoje chamamos de adolescente, impulsos pueris e vertiginosos e, por isso, provável, uma poesia corajosa ao extremo - mas também e principalmente um gesto ao abandono, uma ausência, um retirar-se, uma disposição para sair, uma “palavra profética”: “essa palavra sempre dita e nunca ouvida, que a dobra com um eco prévio, rumor de vento e impaciente murmúrio destinados a repeti-la antecipadamente, correndo o risco de a destruir precedendo-a”, como lembra Maurice Blanchot acerca da palavra de Rimbaud.
Não custa lembrar também a cisma de Mário de Andrade em seu conhecido texto de 1924/1925, A escrava que não é Isaura, quando começa (e repisa uma espécie de Dona Ausente) com a parábola cristã do mito da origem, o homem e a mulher (a mulher nua), esta ausente, para uma outra, a poesia, e a criação de um estatuto, a do “vagabundo genial”.
O fato é que entre lugares aqui, lugares acolá e todos os tempos para todos os lados desde o século XIX, se formos pensar numa cronologia, Rimbaud nos atropela com uma vileza ímpar; e se monta como um cadáver sobre o poema para dizer e exigir um certo seu lugar ali, aqui e acolá, como pairasse suspenso sobre o poema no mundo ocidental moderno e até agora, mais perto. Se muito cedo larga mão da poesia e se se manda para Áden, na ponta africana perto da península arábica, não é isto uma forma de desdém ao que deixa como marca nos seus textos mais que interessantíssimos à sua idade de abandono, 18 anos (são coisas como O Barco Bêbado, Iluminações ou Uma Temporada no Inferno), mas sim uma forma mais simples, cruzar os braços sob uma árvore no continente bárbaro, a civilizar, apenas para talvez suspender ali, naquele instante, o seu próprio e futuro cadáver do poema.
Retocar este exílio de Rimbaud em seu período na África, um período branco, num texto colado à forma atual em que se encontra o gênero da biografia, mercantil e muito fragilizado, logo absolutamente abobalhado, inda mais diante uma dificuldade a documentos, mapas e cartografias deste momento da vida de Rimbaud é quase tarefa sem gesto; e sabemos que há muitas cartas desta época - e publicadas. No Brasil há uma edição da L&PM, de 1983, intitulada Correspondência de Rimbaud, com a correspondência da África, a com Verlaine e as cartas quando de sua estada em Marselha, perto de morrer. Essas cartas sim, muito mais que tudo, são os devidos apontamentos de uma possível biografia de Rimbaud, assim como são os diários íntimos de Kafka e as suas cartas a Felice, a Milena, a Dora; ou a sua Carta ao Pai.
Mais complicado ainda nesta biografia de Rimbaud, é quando se dá a ver a pauta de uma invenção também fragilizada, porque cansativa, provocada por um texto que definha uma paisagem alargada por viagens à solapa do tempo; se só isso, este livro talvez seja nele mesmo um enfado do texto, no texto. Uma simples e rápida passagem do texto de Charles Nicholl, o início do capítulo 17, O caso Lababut, pode demonstrar o quanto a sua biografia de Rimbaud beira a isso tudo: “Cansado dessa farsa de sua amante africana, atormentado pela raiva e pelas incertezas em relação ao emprego com Bardey, ‘entorpecido’ e ‘brutalizado’ pela vida em Áden, Rimbaud começa a considerar novas opções. No dia 20 de outubro de 1884, comemora - se é que se pode dizer isso - seu trigésimo aniversário: ‘Vejo que um terço da minha vida já passou’, escreve ele.” Talvez retomar a imagem da fotografia de Rimbaud que foi utilizada como capa do livro e apontar nela os braços cruzados como de fato um abandono, uma ausência, ou como uma possibilidade para outras formas de revisão de um trabalho tão interessante quanto o seu; e Charles Nicholl pode tomar este como o seu “grand péché radieux”, não mais que isso.
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