segunda-feira, 30 de novembro de 2009
A sintomatologia esquizóide na multiplicidade psíquica de Fernando Pessoa
Tadeu Bahia
tadeu.bahia@hotmail.com
Historiador, poeta e memorialista
Se existe uma tarefa complexa, está é, sem sombra de dúvidas, a análise literária. A complexidade não reside, porém, na interpretação coerente e exata da obra em si, mas ante a tudo, é preciso que exista – via de regra – uma harmonia, uma comunhão espiritual profunda, diria mesmo dialética, por parte da alma do analista, ou crítico literário, para com a alma do autor da obra.
É necessário que aconteça um equilíbrio e harmonia transcendentes, uma conjugação perene do Ser que não possa ser explicada nem pelos estudos da Lógica, ou da Filosofia, tampouco pela Ética; é preciso que as almas entrem numa fusão absoluta e completa a fim de que possamos encontrar aquela palavra que os crentes de todas as religiões há séculos perseguem e que se denomina: PERFEIÇÃO!
Partindo desta premissa, explicitamos que é humanamente impossível tecer comentários sobre a Obra Poética - Literária do monumental escritor e poeta português, Fernando Antônio de Nogueira Pessoa, devido justamente à universalidade e à magnificência de todo o seu conjunto, que se abre aos nossos olhos latino americanos com todo seu turbilhão violento, convulso, indomável e maravilhoso aonde não o poderão conter nem os próprios rochedos dos mares infinitos da Eternidade...
Ser o Fernando Pessoa é uma questão óbvia de espírito, e, compreender o âmago do Ser do Fernando Pessoa, esta é, também, uma questão óbvia de espírito, pois não existe um equilíbrio perfeito, harmônico e UNO na visão espiritualista e, portanto cosmológica do próprio SER do Fernando Pessoa. O Fernando Pessoa não se define: ELE É! Portanto, o que se É não pode entrar em julgamento porque explicita e implicitamente existe.
Daí a existência do fenômeno português Fernando Pessoa ser um fato indiscutível e consumado não só na Literatura Lusitana, mas também na própria Literatura Universal, por que antes de haver sido o Fernando Pessoa, ele próprio já pré – concebia a existência material e concreta daquele que viria a ser o Fernando Pessoa.
O Fernando Pessoa antes de nascer, já havia tido a visão interior - premonitiva, a consciência profética de todos os grandes predestinados... o ventre universal e antológico do qual foi gerado é o mesmo que foi banhado por aquele esperma ardente e caudaloso que também fez gerar o sol, a lua, as estrelas, os profetas,... e os poetas! O Fernando Pessoa é uma significação que se move. E o significado existe. Portanto É!
Nascido em Portugal no dia 13 de junho de 1888, na noite ruidosa, alegre e festiva de Santo Antônio, o Fernando Pessoa ao sair do útero materno já moldava oniricamente no seu EU a figura sombria, arredia e errante que caracterizou para sempre a sua alma.
Com o espírito marcado por uma apatia profunda e generalizada, oriunda dos traumas afetivos e recalques espirituais marcantes passados na fase da primeira infância, principalmente quando perde o seu pai aos seis anos de idade, acontecimento que choca o pequenino Fernando porque parece que seu pai lhe tinha um afeto imenso, um amor desbragado e incomensurável, e a criança, que até aquela época gozava de uma liberdade espiritual sadia sob todos os aspectos, se recolhe a si mesmo. Interioriza-se. Fecha-se em seu “casulo”.
O Fernando Pessoa tranca-se na sua pequenina “crisálida”. O mundo de agora em diante será ele mesmo, dentro de si, com as suas circunstâncias e perplexidades, refletindo-se diante do seu próprio e inexorável espelho.
Fernando Pessoa e o Narciso... ou o Narciso deitado no divã do analista Fernando Pessoa, buscando a imagem perdida dentro do seu próprio Ser. O mundo de agora em diante será o próprio Fernando Pessoa, imerso dentro de si com toda a sua intensidade e insanidade oníricas.
A vida fácil e tranqüila acaba com a morte do pai, que deixa viúva a sua mãe e órfãos, o pequenino Fernando e mais um irmãozinho que logo em seguida morre. Sua mãe começa a sofrer os primeiros apertos financeiros e desfaz-se da rica mobília da casa, os seus espelhos, jóias familiares e é obrigada, com o garoto Fernando, a mudar de residência, agora moram numa casa acanhada, modesta e simples.
Passados alguns meses a mãe do Fernando Pessoa casa-se em segundas núpcias, por procuração, com um oficial – menor que servia até então na África do Sul e logo depois se muda para esta nova localidade com o novo marido, contando o Fernando Pessoa apenas sete anos de idade. Esta mudança súbita de lar, de categoria social superior para inferior em tão pouco tempo, a degradação social que passa a mãe, a perda da pátria – mater, Lisboa, com todas as suas tradições seculares, magias e encantamentos etc. marcam profundamente a alma sensível do Fernando Pessoa.
Ao chegar à África do Sul a mãe o isola num Internato... Na solidão daquela casa de meninos abandonados, rejeitados pelos seus pais e pela própria vida, o pequenino Fernando procura a companhia dos livros e através de estudos e leituras procura um lenitivo que coloque um fim na sua dor, a sua infinita e eterna melancolia...
A sua mãe se enche de novos filhos, o Fernando Pessoa assiste a tudo passivo, à distância. Há um “Édipo” recolhido dentro do seu ser. A lembrança saudosa do irmãozinho morto lhe vem às lembranças através recordações dolorosas de nítidos pesadelos, no calor febril das suas madrugadas insones e desesperadas.
A chegada de novos irmãozinhos, um atrás do outro, a repulsa do sangue do Fernando Pessoa aos seus pequeninos irmãos, a revolta infantil profunda que se enraíza no seu espírito, tão novo, mas tão profundamente marcado pelo sofrimento da ausência do amor familiar... o seu autismo, a sua indiferença, as suas primeiras indagações espirituais ainda numa idade precoce, a falta de amor, a carência afetiva significada na ausência do amor materno, o amor primordial e único que de agora em diante será carinho e proteção para com as novas crianças da família recém criada.
O abandono material e espiritual precoces fez do Fernando Pessoa uma criança triste, sorumbática e silenciosa, retraída do mundo exterior e voltada exclusivamente para dentro de si mesmo. Do lado de fora ele era UM... do lado de dentro ele era VÁRIOS! O Fernando Pessoa consegue superar, patologicamente, no repúdio, na rejeição doentia, os nascimentos dos seu novos irmãos, os quais, ao virem para este mundo, roubaram-lhe o lugar de filho amado e querido.
A sua adolescência viria a ser marcada pelo seu caráter estritamente esquizóide, oriundo de uma ambivalência espiritual que já o dominava desde a fase da sua primeira infância. O Fernando Pessoa trouxera consigo todas as suas mazelas, tristezas, melancolias e desenganos que brotavam dentro d’alma em raízes ácidas, profundas e verdadeiras e que irá acompanhá-lo até a sua morte. Aos dezessete anos muda-se para da África do Sul, aonde deixa a mãe, o padrasto e os novos irmãos a fim de estudar em Lisboa, porém, devido ao seu temperamento esquizotímico e irrequieto, a sua passagem na universidade é efêmera, não estudando nem um ano completo.
O “autismo” é uma característica comum a todas as formas conhecidas de esquizofrenia, (são conhecidos quatro tipos clássicos: 1 – Esquizofrenia Simples; 2 – Esquizofrenia Hebefrênica; 3 – Esquizofrenia Catatônica e 4 – Esquizofrenia Paranóide), apresenta-se no caso do Fernando Pessoa na incapacidade do paciente estabelecer relações normais com o ambiente. Segundo Bleuler, o enfermo compreende a interpreta o mundo no sentido dos “seus desejos e fantasias”, e, desta maneira, não tem condições de adaptar-se às exigências da realidade.
Segundo as opiniões de outro estudioso da área, o Dr. Minkowshi, o “autismo” seria a perda do contato vital com a realidade, “... ultrapassando as funções isoladas, se encontra em todas as manifestações da pessoa alterada, isto é, tanto em sua ideação, quanto as suas reações afetiva, em sua volição e em seu comportamento.”
Ora! Encontramos todos estes sintomas no Fernando Pessoa, objeto desta análise, na sua angústia profunda e verdadeira, mesclada a uma solidão sem limites que lhe foi outorgada pela sua mãe, a figura que ele mais amava, transtornando desse modo toda a “estrutura do Ser” do Fernando Pessoa. Associada à angústia surge de imediato à síndrome depressiva aliada à irritabilidade, a qual se une à melancolia... Dois estados de espírito numa só pessoa! Dicotomia do EU!
Uma indiferença marcante do EU, o caos absoluto, as divagações absurdas e magistrais do Espírito e o silêncio abissal nos lábios trêmulos e finos... crises constantes de ansiedade, o pranto convulso, desesperado e só, um mal estar intenso, inexplicável, uma depressão sem fim...
A FUGA!
A fuga de si mesmo através a dispersão espiritual, através do álcool, através dos versos! A ambivalência aguda é outro traço característico do seu espírito doentio o qual não é contraditório porque não discute consigo; ele discute com ELES...
ELES são os OUTROS! Os heterônimos conhecidos do Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caieiro que co-habitam iluminados no interior do espírito enfermo do Fernando Pessoa. Um homem de alma solitária e incompreendido pelos homens, mas, compreensível a si próprio! Um homem só e incapaz de adaptar-se ao mundo exterior. O seu comportamento é estranho e os seus atos, sob a lógica racionalista da razão humana, são destituídos de quaisquer espécies de sentidos.
“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente!”
Característica primordial no comportamento esquizóide do Fernando Pessoa é o seu afastamento da realidade, também das outras pessoas. Existe uma relação superficial, diríamos aparente. Raros são os amigos... não tem mulheres, e, em casos de supostos amores só conhecemos o da Ofélia Queiroz que é um fato merecedor de análises e estudos. Uma vida exterior passiva, inexistente, todavia, uma vida interior que explode, vibra e sublima-se em criações poéticas magistrais que mais se assemelham aos rastros dos cometas nas profundezas azuis e poéticas do firmamento. O Fernando Pessoa isola-se dentro de si próprio... e VIVE!
O mundo verdadeiro que existe e pulsa dentro dele, dentro do seu EU, biparte-se em vários fragmentos de diamantes coloridos e brilhantes. Cada fragmento de diamante é um ente assexuado e lindo, diferente e universal, com sua personalidade e pensamentos próprios, que nada tem a ver com a Unidade Cósmica.
A UNIDADE CÓSMICA NÃO EXISTE!
O que realmente existe solto no espaço são fragmentos de diamantes d’Alma que possuem vida própria, atitudes e vontades próprias e que dentro do espírito do Fernando Pessoa constroem o seu exclusivo e inexorável Universo. O seu próprio e impenetrável casulo... O Fernando Pessoa não é um... e múltiplo! E é justamente esta multiplicidade que o faz sob reviver.
Citamos o Fernando Pessoa quando ele diz: “A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a mistificação.” A partir desta citação pessoana vislumbramos a fuga do poeta frente ao seu próprio mundo, à sua inexorável irrealidade e constatamos a busca de si próprio através da ambivalência dispersa e doentia, a qual, por ser complexa aos demais mortais, foi suficiente para moldar o irreal imaginário tanto no consciente, como no inconsciente do poeta.
Encontramos o poeta imerso no seu universo singular, na busca constante da sua despersonalização buscando unicamente a unicidade da sua poesia. Ao despersonalizar-se, ele transforma-se no criador... no pretenso deus de si mesmo, e diante desta surreal gênese poética o Fernando Pessoa consegue multiplicar os seus EUS, fazendo gerar no âmago d’Alma figuras bizarras e incandescentes de MAGO, BRUXO e travestido de DEUS ele dá o sopro da vida ao Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caieiro, Bernardo Soares e outros dignos e ilustres heterônimos que fazem parte do seu consciente e subconsciente esquizóides.
Ao despersonalizar-se, ELE EXISTE...
E ao existir... ELE É!
Eis o grande mistério do poeta Fernando Pessoa.
O paciente esquizóide possui um caráter predominantemente místico, porém múltiplo no seu universo mágico interior. Lúcido em consciência, todavia aparentando às demais pessoas um estado de ânimo apático, passivo, indiferente. Indiferença esta que é profundamente aguda no campo afetivo. O Fernando Pessoa é um homem só, carente de afetos e ausente de iniciativas exteriores.
Uma catatonia periódica invade-lhe o espírito e o Fernando Pessoa deprime-se, tornando-se débil e presa fácil da ansiedade. A sua personalidade biparte-se, fragmenta-se... e nas suas cálidas e oníricas alucinações ele escreve cartas a si mesmo, mantendo uma correspondência ativa e constante com os seus EUS, pois, como ele mesmo narra numa das suas cartas íntimas, que quando sentia abandonado e sozinho: “... distraia-se escrevendo cartas para si mesmo!”
A esquizofrenia andejava pelas alamedas e corredores da sua alma. Visita então o Álvaro de Campos, o Poeta da Água e lê com o mesmo as suas maravilhosas Odes Marítimas. Depois o Fernando Pessoa vai passar à tarde com o inominável Alberto Caieiro, o Poeta da Terra, com os pés firmes e plantados na terra, com todo o seu enraizamento no REAL, no chão onde pisa, na razão material das coisas, de todas as coisas!
Quando o crepúsculo desce por trás dos montes e telhados azuis românticos de Lisboa, o Fernando Pessoa despede-se do Alberto Caieiro e vai passar a noite com o Ricardo Reis, o Poeta do Ar, o poeta garceziano das alucinações metafísicas e delírios os mais fascinantes, aquele poeta habitante do onírico e que sonha de uma maneira mais leve, absolutamente solta da realidade, conseguindo planar tranqüilo, misterioso e surreal no silêncio dos seus passos noturnos.
A ÁGUA, A TERRA e O AR... três elementos constituintes do Universo Cósmico do Fernando Pessoa que individualmente não se mistura a eles. Cada qual com a sua substância, a sua essência e a sua identidade poética. Cada um com o seu cósmico e inexorável elemento criador, no seu individualismo concreto, frente à multiplicidade esquizóide criativa do Fernando Pessoa que se transforma no quarto elemento, O FOGO, e parodiando a estória da FÊNIX, o poeta lusitano renasce de si mesmo, das suas próprias cinzas criadoras, gerando-se do seu próprio pó!
Este é o quarto elemento, senhores, o próprio Fernando Pessoa que surge num ímpeto insano e ardente derrubando e queimando as barreiras do tempo e do espaço, estourando as represas do EU, fazendo rolar em grossas e maravilhosas torrentes ensurdecedoras os versos cristalinos, alcoólicos e alquímicos da sua poesia!
A poesia do Fernando Pessoa é muito mais que infinita porque ele consegue transcender e romper os limites do próprio universo e desta maneira, tornar-se mais conhecida do que as propagandas da Coca-Cola e os casos de pedofilia na Igreja Católica, que vergonhosamente dominam os noticiários internacionais e as redes da internet pelo mundo inteiro.
A Poesia Pessoana engloba a COSMOLOGIA POÉTICA TOTAL, como no final da década de sessenta já havia profetizado o poeta e arqueólogo baiano Ivan Dórea Soares num dos seus ensaios poéticos para o extinto Jornal da Bahia, antigo baluarte cultural contra a Ditadura em terras baianas que ainda sob ameaças de prisões e torturas, tive a elevada honra de participar.
Desconhecendo as ameaças simplórias e poéticas da Ditadura em tempos idos, continuei a ler e a vivenciar no meu espírito rebelde a poesia romântica e esquizóide do Fernando Pessoa, rompendo com os cânones ortodoxos e conceitos abstratos do fazer poético, alicerçando dentro de mim as bases da minha própria eternidade onírica, sob a sombra azul, translúcida, absoltamente livre e infinita daquele Deus Histórico da poesia lusitana.
...há um transbordamento surdo, um ruído que abala os alicerces do próprio Ser e parodiando o Deus – Cristão, o Fernando Pessoa cria os céus e a terra...
“a terra, porém, era sem forma e vazia;
Havia trevas sobre a face do abismo”
(Vers. 2, Cap. 1 – GÊNESIS)
...e o Fernando Pessoa no sétimo dia da sua criação, resolve criar somente o HOMEM, à sua própria imagem e semelhança, quando surgem então os heterônimos oriundos daquela...
“neblina que subia da terra
e regava toda a superfície do solo”
(Vers. 6, Cap. 2 – GÊNESIS)
...o Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o Alberto Caieiro surgem nos Jardins do Éden do Fernando Pessoa, bipartindo-se, fragmentando-se e povoando a Terra...
...até a consumação dos Séculos, de todos os Séculos... até o desenlace fatal dos tempos!
Falece o Fernando Pessoa no dia 30 de novembro de 1935, em Lisboa, com a idade de 47 anos, vítima de cirrose hepática, devido ao uso e o abuso do álcool que lhe foi companhia fiel e constante nos últimos dias de solidão neste mundo.
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