quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Emily Dickinson e a voz da imortalidade

Pedro Maciel
pedro_maciel@uol.com.br
Cronista

Emily Dickinson (1830/1886) inaugura a fase moderna da poesia norte-americana. Coube a ela, com suas imagens e visões, criar uma nova estética. Emily tratou de temas universais, como a vida e a renúncia, o amor e a dor, a fé e Deus e, sobretudo, a imortalidade. Emily, com seu espírito atormentado, e desesperançado abordou ao mesmo tempo a morte e a imortalidade. Aflorou suas agonias e êxtases para transcender desse mundo rotineiro e banal: “Viver é assombroso, nem deixa lugar para qualquer outra ocupação”. Ela viveu reclusa quase a vida toda na cidade onde morava, Amherst, em Massachusetts.

Emily não publicou nenhum livro em vida. Em 1862 o crítico Thomas Higginson recebia uma carta da poeta pedindo sua opinião sobre quatro poemas. O crítico ficou perplexo com as inovações estéticas e escreveu-lhe pedindo para adiar a publicação dos poemas. Emily respondeu: “Sorrio quando você sugere que eu protele a “publicação” _ o que está longe de meus projetos, como o firmamento dos dedos _ se eu conhecesse a fama, eu não poderia fugir a ela _ se não a conhecesse, ela me perseguiria o dia inteiro _ e eu perderia a aprovação de meu cachorro _ minha condição de mendigo é melhor.”

Os poemas de Emily foram publicados em 1890, quatro anos após a sua morte, numa edição de 480 exemplares, custeados pela sua irmã mais nova. Só em 1954 toda a sua obra (1.775 poemas), ganha uma edição completa e definitiva. Os editores e críticos alegavam que “os poemas são bizarros e as rimas enviesadas”.

Poeta “inspirada”, incompreendida em sua época, seus versos revelam a ruptura do ritmo cadenciado dos românticos, a sintaxe telegráfica, a condensação do pensamento e mostram a livre pontuação com travessões, substituindo os pontos e vírgulas e criando poemas fragmentados, já totalmente modernos.

“50 Poemas”, de Emily Dickinson (Ed. Imago), traduzidos por Isa Marà Lando, infelizmente, é um equívoco de interpretação. Os poemas se perdem na busca do ritmo e das idéias que jogam com a analogia, essência do método dickinsoniano de poetar.

Talvez o poeta devesse ser traduzido apenas por um outro poeta. Afinal, nem todos dominam a melodia “controlada por palavras-chave, cada parte expressando o todo”, e nem a alteração da batida métrica que “retarda ou acelera o próprio tempo” _ dimensões que nem sempre são apreendidas pelos tradutores ou críticos.

No Brasil, Augusto de Campos, em “O anticrítico” (Cia das Letras) e Ana Cristina César, tradutora de alguns poemas publicados em suplementos, conseguiram transcriar a densidade de Dickinson. “Emily é intraduzível, e em português mais do que qualquer outra língua. Tínhamos alguma suspeita disso. Terrível Emily! Realiza o máximo de magia com o mínimo de sons...”, anotou o crítico Paulo Rónai na introdução de “Uma centena de poemas”, tradução de Aíla de Oliveira Gomes (Queiroz Editor).

Para concluir esta breve notícia sobre a poesia de Emily Dickinson, é bom ressaltar que, ela e Walt Whitman (os dois principais nomes da poesia norte-americana do século 19), não falam a mesma língua poética. Emily filia-se à tradição apolínea, ao contrário de Walt Whitman, autor do épico Leaves of Grass, poeta dionisíaco, peregrino, uma espécie de avô dos beats, cantador que mapeou a nova terra americana.

Enquanto Emily é poeta dos monossílabos, da linguagem sintética, das verdades nas entrelinhas: “Dizer toda a verdade, mas obliquamente”. Na poesia de Emily os versos falam baixo, fazem um silêncio quase religioso. Não há lamento, choradeira ou autopiedade, e sim a experiência sensível, pronta para resgatar o mundo metafísico e lúdico para o nível humano, demasiadamente humano.

***

Duas versões para um mesmo poema

Quem está morrendo, amor,
Precisa de tão pouco:
Um copo d’água, o Rosto
Discreto de uma Flor,
Um Leque, talvez, Uma Dor Amiga,
E a Certeza que nenhuma cor
Do Arco-Íris perceba
Quando embora for.

(Tradução de Ana Cristina César)

The Dying need but little, Dear

The Dying need but little, Dear,
A Glass of Water’s all,
A Flower’s unobtrusive face
To punctuate the Wall,
A Fan, perhaps, a Friend’s Regret
And Certainty that one
No color in the Rainbow
Perceive, when you are gone.

Quem morre, Querido, de pouco precisa

Quem morre, Querido, de pouco precisa
Apenas um Copo d’Água
O Rosto discreto da flor
Pontuando a Parede lisa,
Um Leque, talvez, do Amigo a Mágoa
E a certeza de que alguém
No Arco-Íris não verá mais cor
Depois que você se for.

(Tradução de Isa Marà Lando)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Flor: Bela ou Espanca?





Márcia de Oliveira Pinto
marciadeopinto@hotmail.com
Jornalista

Quem é realmente Florbela Espanca? Apenas mais uma poetisa romântica e exagerada de subjetivismo? Ou uma poetisa à frente se seu tempo? A poetisa eleita, aquela que diz tudo e tudo sabe? Nos versos de Eu, ela nos diz: “Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte, Sou a crucificada... a dolorida...”. Estes versos corroboram a confissão presente no livro “Afinado Desconcerto (Contos, cartas e diário)” (2002) que traz o escrito de 11/01/1930 do seu diário: “Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo – uma alma – se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me.” E para conhecer Florbela, só há um caminho a seguir: sua poética.

A crítica anuncia o surgimento poético de Florbela desligado de preocupações de conteúdo humanista ou social. Uma poesia exagerada, carregada de sentimentalismo, acusada de ser piegas, adocicada, redundante e melodramática. Maria Lúcia Dal Farra no prefácio de “Poemas” (1996) nos informa que Florbela foi ignorada por completo pelo público leitor e pela crítica. “Sua obra tinha sido vagamente saudada na altura, pelos comentaristas de plantão, como mais uma das (abundantes e inexpressivas) flores do galante ramalhe das poetisas de salão”.

É certo que o universo temático de Florbela centra-se no Amor e em seus derivados. E o que é o amor senão algo extremamente humanista e social? A sua obra poética evidencia uma ampla gama de estados emocionais ligados ao amor, desde a exaltação dos sentidos (entrega por inteiro), até ao desejo de sacrifícios, oscilando entre momentos de plenitude e de grande fragilidade emocional, decorrentes dos permanentes e eternos desencontros das relações amorosas. Veja nos versos de Inconstância: “E este amor que assim me vai fugindo, É igual a outro amor que vai surgindo, Que há de partir também... nem eu sei quando...” Mesmo assim, para Florbela, amar é o que importa. Esta experiência única é a força motriz da sua alma, e por isso ela quer “Amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém!”

O amor sugere um sentir onde o erotismo é um ingrediente presente. “Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente, Tudo o que é vida e vibra eternamente, É tu seres meu, Amor, e eu ser tua!”. O Erotismo é exaltado em vários escritos que para a época se consideravam impróprios. Tudo produto duma moral que interditava a mulher de exprimir seus desejos e o seu prazer sexual. As sugestões mais ousadas sobre sexo eram tidas como degradação ou como provocação. Foi por isso que o “Livro de “Sóror Saudade””(1923) foi considerado um livro mau, desmoralizador para a sociedade da época. Mas o que Florbela pretende é romper com os comportamentos tidos como convenientes e moralmente correto. Ela serve-se de múltiplos motivos para dar vida aos seus poemas e para transpor para o que escreve as suas vivências pessoais. “Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver, Pois que tu és já toda a minha vida!”. Nos versos do famoso poema “Fanatismo” podemos identificar a veemência passional da sua linguagem, marcadamente pessoal, centrada nas suas próprias frustrações e anseios.

A sensualidade, o erotismo, a morte e o sonho são elementos que combinados, adquirem uma feição positiva. Para Florbela “a morte ganha uma avaliação positiva, de um universo liberto das cadeias da convenção, das hierarquias, das referências codificadas, da proibição, das restrições. E o motivo do sonho e o da morte se imbricam então para compor esse estado paralelo ao real, que descobre um espaço de marginalidade, habitado apenas pelo princípio feminino”. Como nos versos de Súplica (II): “Vem pra mim, amor...Ai não desprezes, A minha adoração de escrava louca!, Só te peço que deixes exalar, Meu último suspiro na tua boca!...”

É notável, como o erotismo, tabu feminino, até então, e ainda para além do seu tempo é um dos traços mais inovadores e importantes da sua poética. Ela aspira a um estado ilimitado, definido, simbolicamente, pelo desejo sexual, o que faz com que alguns dos símbolos que percorrem a sua obra tenham claras conotações eróticas. “Frêmito do meu corpo a procurar-te, Febre das minhas mãos na tua pele (...) Estonteante fome, áspera e cruel, Que nada existe que a mitigue e a farte!”. Ao mesmo tempo, assiste-se a uma espiritualização do erotismo e a uma conversão, que, simultaneamente, reprime o erotismo, mas não lhe consegue resistir. Observe os versos de Volúpia: “No divino impudor da mocidade, Nesse êxtase pagão que vence a sorte, Num frêmito vibrante de ansiedade, Dou-te o meu corpo prometido à morte! (...) E do meu corpo os leves arabescos, Vão-te envolvendo em círculos dantescos, Felinamente, em voluptuosas danças...”.

As prerrogativas eróticas masculinas transformam-se em femininas, como a atualizar e a desmistificar, a partir da sua própria experiência de mulher, o verdadeiro agente da dependência. “Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços... – São teus braços dentro dos meus braços, Via Láctea fechando o Infinito.”

Marcada de um forte ímpeto passional, a obra de Florbela revela e acentua esse erotismo que contagia o sujeito poético. Florbela dá o primeiro passo rumo à livre abordagem da intimidade feminina e à acentuação de um erotismo que subverte a tradição que é dominado pelo masculino, revelando assim, uma pulsão erótica, em que o eu feminino da poetisa se afirma. Essa gradual afirmação do eu feminino culmina com a exaltação da beleza e das capacidades de sedução exercidas pela mulher. “Mas eu sou a manhã: apago estrelas! Hás de ver-me, beijar-me em todas elas, Mesmo na boca da que for mais linda! E quando a derradeira, enfim, vier, Nesse corpo vibrante de mulher, Será o meu que hás de encontrar ainda...”.

A poetisa quebrou preconceitos, dogmas, algemas e correntes, porém não pode quebrar todos. Florbela não pode ser separada da sua condição de mulher e das suas paixões na sociedade em que vivia. Mas tentou, como revela nos versos de A mulher: “Sê forte, corajoso, não fraquejes, Na luta; sê em Vênus sempre Marte”. Em uma carta enviada a um amigo em 27/07/1930, ela pergunta: “Incompreendida! Que quererá isto dizer? Quase nada... quem não compreende sou eu; eu é que não compreendo os outros, os seus prazeres, os seus gostos, as suas fontes de água clara onde se lavam e onde se contemplam.”.

Florbela d’Alma da Conceição Espanca não se ligou claramente a qualquer movimento literário. Para alguns estudiosos ela é Simbolista, para outros Modernista. O que podemos afirmar é que sua poesia apresenta um caráter confessional, sentimental. Poetisa de excessos sim, com voz marcadamente feminina. Mesmo acusada de pecar por exagero, sua poesia tem suscitado interesse contínuo de leitores e investigadores. É tida como a grande figura feminina das primeiras décadas da literatura portuguesa do século XX.

Sua poesia é Bela e Espanca! Bate na alma, fala ao coração. Encanta, emociona, intriga, arrebata. Como afirma Roland Barthes (1974), a literatura é sempre uma perversão, ou seja, uma prática que visa abalar o sujeito. Nesse sentido Florbela cumpriu o papel pervertido de desestabilizar o leitor e provocar a catarse necessária a toda obra de arte.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A sintomatologia esquizóide na multiplicidade psíquica de Fernando Pessoa

(Almada Negreiros)

Tadeu Bahia
tadeu.bahia@hotmail.com
Historiador, poeta e memorialista

Se existe uma tarefa complexa, está é, sem sombra de dúvidas, a análise literária. A complexidade não reside, porém, na interpretação coerente e exata da obra em si, mas ante a tudo, é preciso que exista – via de regra – uma harmonia, uma comunhão espiritual profunda, diria mesmo dialética, por parte da alma do analista, ou crítico literário, para com a alma do autor da obra.

É necessário que aconteça um equilíbrio e harmonia transcendentes, uma conjugação perene do Ser que não possa ser explicada nem pelos estudos da Lógica, ou da Filosofia, tampouco pela Ética; é preciso que as almas entrem numa fusão absoluta e completa a fim de que possamos encontrar aquela palavra que os crentes de todas as religiões há séculos perseguem e que se denomina: PERFEIÇÃO!

Partindo desta premissa, explicitamos que é humanamente impossível tecer comentários sobre a Obra Poética - Literária do monumental escritor e poeta português, Fernando Antônio de Nogueira Pessoa, devido justamente à universalidade e à magnificência de todo o seu conjunto, que se abre aos nossos olhos latino americanos com todo seu turbilhão violento, convulso, indomável e maravilhoso aonde não o poderão conter nem os próprios rochedos dos mares infinitos da Eternidade...

Ser o Fernando Pessoa é uma questão óbvia de espírito, e, compreender o âmago do Ser do Fernando Pessoa, esta é, também, uma questão óbvia de espírito, pois não existe um equilíbrio perfeito, harmônico e UNO na visão espiritualista e, portanto cosmológica do próprio SER do Fernando Pessoa. O Fernando Pessoa não se define: ELE É! Portanto, o que se É não pode entrar em julgamento porque explicita e implicitamente existe.

Daí a existência do fenômeno português Fernando Pessoa ser um fato indiscutível e consumado não só na Literatura Lusitana, mas também na própria Literatura Universal, por que antes de haver sido o Fernando Pessoa, ele próprio já pré – concebia a existência material e concreta daquele que viria a ser o Fernando Pessoa.

O Fernando Pessoa antes de nascer, já havia tido a visão interior - premonitiva, a consciência profética de todos os grandes predestinados... o ventre universal e antológico do qual foi gerado é o mesmo que foi banhado por aquele esperma ardente e caudaloso que também fez gerar o sol, a lua, as estrelas, os profetas,... e os poetas! O Fernando Pessoa é uma significação que se move. E o significado existe. Portanto É!

Nascido em Portugal no dia 13 de junho de 1888, na noite ruidosa, alegre e festiva de Santo Antônio, o Fernando Pessoa ao sair do útero materno já moldava oniricamente no seu EU a figura sombria, arredia e errante que caracterizou para sempre a sua alma.

Com o espírito marcado por uma apatia profunda e generalizada, oriunda dos traumas afetivos e recalques espirituais marcantes passados na fase da primeira infância, principalmente quando perde o seu pai aos seis anos de idade, acontecimento que choca o pequenino Fernando porque parece que seu pai lhe tinha um afeto imenso, um amor desbragado e incomensurável, e a criança, que até aquela época gozava de uma liberdade espiritual sadia sob todos os aspectos, se recolhe a si mesmo. Interioriza-se. Fecha-se em seu “casulo”.

O Fernando Pessoa tranca-se na sua pequenina “crisálida”. O mundo de agora em diante será ele mesmo, dentro de si, com as suas circunstâncias e perplexidades, refletindo-se diante do seu próprio e inexorável espelho.

Fernando Pessoa e o Narciso... ou o Narciso deitado no divã do analista Fernando Pessoa, buscando a imagem perdida dentro do seu próprio Ser. O mundo de agora em diante será o próprio Fernando Pessoa, imerso dentro de si com toda a sua intensidade e insanidade oníricas.

A vida fácil e tranqüila acaba com a morte do pai, que deixa viúva a sua mãe e órfãos, o pequenino Fernando e mais um irmãozinho que logo em seguida morre. Sua mãe começa a sofrer os primeiros apertos financeiros e desfaz-se da rica mobília da casa, os seus espelhos, jóias familiares e é obrigada, com o garoto Fernando, a mudar de residência, agora moram numa casa acanhada, modesta e simples.

Passados alguns meses a mãe do Fernando Pessoa casa-se em segundas núpcias, por procuração, com um oficial – menor que servia até então na África do Sul e logo depois se muda para esta nova localidade com o novo marido, contando o Fernando Pessoa apenas sete anos de idade. Esta mudança súbita de lar, de categoria social superior para inferior em tão pouco tempo, a degradação social que passa a mãe, a perda da pátria – mater, Lisboa, com todas as suas tradições seculares, magias e encantamentos etc. marcam profundamente a alma sensível do Fernando Pessoa.

Ao chegar à África do Sul a mãe o isola num Internato... Na solidão daquela casa de meninos abandonados, rejeitados pelos seus pais e pela própria vida, o pequenino Fernando procura a companhia dos livros e através de estudos e leituras procura um lenitivo que coloque um fim na sua dor, a sua infinita e eterna melancolia...

A sua mãe se enche de novos filhos, o Fernando Pessoa assiste a tudo passivo, à distância. Há um “Édipo” recolhido dentro do seu ser. A lembrança saudosa do irmãozinho morto lhe vem às lembranças através recordações dolorosas de nítidos pesadelos, no calor febril das suas madrugadas insones e desesperadas.

A chegada de novos irmãozinhos, um atrás do outro, a repulsa do sangue do Fernando Pessoa aos seus pequeninos irmãos, a revolta infantil profunda que se enraíza no seu espírito, tão novo, mas tão profundamente marcado pelo sofrimento da ausência do amor familiar... o seu autismo, a sua indiferença, as suas primeiras indagações espirituais ainda numa idade precoce, a falta de amor, a carência afetiva significada na ausência do amor materno, o amor primordial e único que de agora em diante será carinho e proteção para com as novas crianças da família recém criada.

O abandono material e espiritual precoces fez do Fernando Pessoa uma criança triste, sorumbática e silenciosa, retraída do mundo exterior e voltada exclusivamente para dentro de si mesmo. Do lado de fora ele era UM... do lado de dentro ele era VÁRIOS! O Fernando Pessoa consegue superar, patologicamente, no repúdio, na rejeição doentia, os nascimentos dos seu novos irmãos, os quais, ao virem para este mundo, roubaram-lhe o lugar de filho amado e querido.

A sua adolescência viria a ser marcada pelo seu caráter estritamente esquizóide, oriundo de uma ambivalência espiritual que já o dominava desde a fase da sua primeira infância. O Fernando Pessoa trouxera consigo todas as suas mazelas, tristezas, melancolias e desenganos que brotavam dentro d’alma em raízes ácidas, profundas e verdadeiras e que irá acompanhá-lo até a sua morte. Aos dezessete anos muda-se para da África do Sul, aonde deixa a mãe, o padrasto e os novos irmãos a fim de estudar em Lisboa, porém, devido ao seu temperamento esquizotímico e irrequieto, a sua passagem na universidade é efêmera, não estudando nem um ano completo.

O “autismo” é uma característica comum a todas as formas conhecidas de esquizofrenia, (são conhecidos quatro tipos clássicos: 1 – Esquizofrenia Simples; 2 – Esquizofrenia Hebefrênica; 3 – Esquizofrenia Catatônica e 4 – Esquizofrenia Paranóide), apresenta-se no caso do Fernando Pessoa na incapacidade do paciente estabelecer relações normais com o ambiente. Segundo Bleuler, o enfermo compreende a interpreta o mundo no sentido dos “seus desejos e fantasias”, e, desta maneira, não tem condições de adaptar-se às exigências da realidade.

Segundo as opiniões de outro estudioso da área, o Dr. Minkowshi, o “autismo” seria a perda do contato vital com a realidade, “... ultrapassando as funções isoladas, se encontra em todas as manifestações da pessoa alterada, isto é, tanto em sua ideação, quanto as suas reações afetiva, em sua volição e em seu comportamento.”

Ora! Encontramos todos estes sintomas no Fernando Pessoa, objeto desta análise, na sua angústia profunda e verdadeira, mesclada a uma solidão sem limites que lhe foi outorgada pela sua mãe, a figura que ele mais amava, transtornando desse modo toda a “estrutura do Ser” do Fernando Pessoa. Associada à angústia surge de imediato à síndrome depressiva aliada à irritabilidade, a qual se une à melancolia... Dois estados de espírito numa só pessoa! Dicotomia do EU!

Uma indiferença marcante do EU, o caos absoluto, as divagações absurdas e magistrais do Espírito e o silêncio abissal nos lábios trêmulos e finos... crises constantes de ansiedade, o pranto convulso, desesperado e só, um mal estar intenso, inexplicável, uma depressão sem fim...

A FUGA!

A fuga de si mesmo através a dispersão espiritual, através do álcool, através dos versos! A ambivalência aguda é outro traço característico do seu espírito doentio o qual não é contraditório porque não discute consigo; ele discute com ELES...

ELES são os OUTROS! Os heterônimos conhecidos do Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caieiro que co-habitam iluminados no interior do espírito enfermo do Fernando Pessoa. Um homem de alma solitária e incompreendido pelos homens, mas, compreensível a si próprio! Um homem só e incapaz de adaptar-se ao mundo exterior. O seu comportamento é estranho e os seus atos, sob a lógica racionalista da razão humana, são destituídos de quaisquer espécies de sentidos.

“O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente!”

Característica primordial no comportamento esquizóide do Fernando Pessoa é o seu afastamento da realidade, também das outras pessoas. Existe uma relação superficial, diríamos aparente. Raros são os amigos... não tem mulheres, e, em casos de supostos amores só conhecemos o da Ofélia Queiroz que é um fato merecedor de análises e estudos. Uma vida exterior passiva, inexistente, todavia, uma vida interior que explode, vibra e sublima-se em criações poéticas magistrais que mais se assemelham aos rastros dos cometas nas profundezas azuis e poéticas do firmamento. O Fernando Pessoa isola-se dentro de si próprio... e VIVE!

O mundo verdadeiro que existe e pulsa dentro dele, dentro do seu EU, biparte-se em vários fragmentos de diamantes coloridos e brilhantes. Cada fragmento de diamante é um ente assexuado e lindo, diferente e universal, com sua personalidade e pensamentos próprios, que nada tem a ver com a Unidade Cósmica.

A UNIDADE CÓSMICA NÃO EXISTE!


O que realmente existe solto no espaço são fragmentos de diamantes d’Alma que possuem vida própria, atitudes e vontades próprias e que dentro do espírito do Fernando Pessoa constroem o seu exclusivo e inexorável Universo. O seu próprio e impenetrável casulo... O Fernando Pessoa não é um... e múltiplo! E é justamente esta multiplicidade que o faz sob reviver.

Citamos o Fernando Pessoa quando ele diz: “A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a mistificação.” A partir desta citação pessoana vislumbramos a fuga do poeta frente ao seu próprio mundo, à sua inexorável irrealidade e constatamos a busca de si próprio através da ambivalência dispersa e doentia, a qual, por ser complexa aos demais mortais, foi suficiente para moldar o irreal imaginário tanto no consciente, como no inconsciente do poeta.

Encontramos o poeta imerso no seu universo singular, na busca constante da sua despersonalização buscando unicamente a unicidade da sua poesia. Ao despersonalizar-se, ele transforma-se no criador... no pretenso deus de si mesmo, e diante desta surreal gênese poética o Fernando Pessoa consegue multiplicar os seus EUS, fazendo gerar no âmago d’Alma figuras bizarras e incandescentes de MAGO, BRUXO e travestido de DEUS ele dá o sopro da vida ao Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caieiro, Bernardo Soares e outros dignos e ilustres heterônimos que fazem parte do seu consciente e subconsciente esquizóides.

Ao despersonalizar-se, ELE EXISTE...

E ao existir... ELE É!

Eis o grande mistério do poeta Fernando Pessoa.

O paciente esquizóide possui um caráter predominantemente místico, porém múltiplo no seu universo mágico interior. Lúcido em consciência, todavia aparentando às demais pessoas um estado de ânimo apático, passivo, indiferente. Indiferença esta que é profundamente aguda no campo afetivo. O Fernando Pessoa é um homem só, carente de afetos e ausente de iniciativas exteriores.

Uma catatonia periódica invade-lhe o espírito e o Fernando Pessoa deprime-se, tornando-se débil e presa fácil da ansiedade. A sua personalidade biparte-se, fragmenta-se... e nas suas cálidas e oníricas alucinações ele escreve cartas a si mesmo, mantendo uma correspondência ativa e constante com os seus EUS, pois, como ele mesmo narra numa das suas cartas íntimas, que quando sentia abandonado e sozinho: “... distraia-se escrevendo cartas para si mesmo!

A esquizofrenia andejava pelas alamedas e corredores da sua alma. Visita então o Álvaro de Campos, o Poeta da Água e lê com o mesmo as suas maravilhosas Odes Marítimas. Depois o Fernando Pessoa vai passar à tarde com o inominável Alberto Caieiro, o Poeta da Terra, com os pés firmes e plantados na terra, com todo o seu enraizamento no REAL, no chão onde pisa, na razão material das coisas, de todas as coisas!

Quando o crepúsculo desce por trás dos montes e telhados azuis românticos de Lisboa, o Fernando Pessoa despede-se do Alberto Caieiro e vai passar a noite com o Ricardo Reis, o Poeta do Ar, o poeta garceziano das alucinações metafísicas e delírios os mais fascinantes, aquele poeta habitante do onírico e que sonha de uma maneira mais leve, absolutamente solta da realidade, conseguindo planar tranqüilo, misterioso e surreal no silêncio dos seus passos noturnos.

A ÁGUA, A TERRA e O AR... três elementos constituintes do Universo Cósmico do Fernando Pessoa que individualmente não se mistura a eles. Cada qual com a sua substância, a sua essência e a sua identidade poética. Cada um com o seu cósmico e inexorável elemento criador, no seu individualismo concreto, frente à multiplicidade esquizóide criativa do Fernando Pessoa que se transforma no quarto elemento, O FOGO, e parodiando a estória da FÊNIX, o poeta lusitano renasce de si mesmo, das suas próprias cinzas criadoras, gerando-se do seu próprio pó!

Este é o quarto elemento, senhores, o próprio Fernando Pessoa que surge num ímpeto insano e ardente derrubando e queimando as barreiras do tempo e do espaço, estourando as represas do EU, fazendo rolar em grossas e maravilhosas torrentes ensurdecedoras os versos cristalinos, alcoólicos e alquímicos da sua poesia!

A poesia do Fernando Pessoa é muito mais que infinita porque ele consegue transcender e romper os limites do próprio universo e desta maneira, tornar-se mais conhecida do que as propagandas da Coca-Cola e os casos de pedofilia na Igreja Católica, que vergonhosamente dominam os noticiários internacionais e as redes da internet pelo mundo inteiro.

A Poesia Pessoana engloba a COSMOLOGIA POÉTICA TOTAL, como no final da década de sessenta já havia profetizado o poeta e arqueólogo baiano Ivan Dórea Soares num dos seus ensaios poéticos para o extinto Jornal da Bahia, antigo baluarte cultural contra a Ditadura em terras baianas que ainda sob ameaças de prisões e torturas, tive a elevada honra de participar.

Desconhecendo as ameaças simplórias e poéticas da Ditadura em tempos idos, continuei a ler e a vivenciar no meu espírito rebelde a poesia romântica e esquizóide do Fernando Pessoa, rompendo com os cânones ortodoxos e conceitos abstratos do fazer poético, alicerçando dentro de mim as bases da minha própria eternidade onírica, sob a sombra azul, translúcida, absoltamente livre e infinita daquele Deus Histórico da poesia lusitana.

...há um transbordamento surdo, um ruído que abala os alicerces do próprio Ser e parodiando o Deus – Cristão, o Fernando Pessoa cria os céus e a terra...

“a terra, porém, era sem forma e vazia;

Havia trevas sobre a face do abismo”

(Vers. 2, Cap. 1 – GÊNESIS)

...e o Fernando Pessoa no sétimo dia da sua criação, resolve criar somente o HOMEM, à sua própria imagem e semelhança, quando surgem então os heterônimos oriundos daquela...

“neblina que subia da terra

e regava toda a superfície do solo”

(Vers. 6, Cap. 2 – GÊNESIS)

...o Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o Alberto Caieiro surgem nos Jardins do Éden do Fernando Pessoa, bipartindo-se, fragmentando-se e povoando a Terra...

...até a consumação dos Séculos, de todos os Séculos... até o desenlace fatal dos tempos!

Falece o Fernando Pessoa no dia 30 de novembro de 1935, em Lisboa, com a idade de 47 anos, vítima de cirrose hepática, devido ao uso e o abuso do álcool que lhe foi companhia fiel e constante nos últimos dias de solidão neste mundo.

Fernando Pessoa: a escrita como intensidade




Nilson Oliveira
nilson_olliveira@yahoo.com.br
Escritor e editor

O sol dos trópicos pos a febre da pirataria antiga

nas minhas veias intensivas.

Alvaro de Campos

Figuras como os filósofos José Gil e Alain Badiou são casos que cintilam no horizonte pessoano. Suas obras são calçadas por uma intensidade que revela e faz revelar uma abertura para outras margens. Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa (Relume Dumara 2003), de José Gil, e Pequeno Manual de Inestética (Estação Liberdade 2002), de Alain Badiou, são livros que, sem engano, combatem, ombro a ombro, para fazer perseverar, na poética e no pensamento, o lastro de Fernando Pessoa.

UMA CONVERGÊNCIA POSSÍVEL


De Fernando Pessoa a Gilles Deleuze, de Deleuze a Pessoa, de Pessoa a toda a sua diversidade heteronímica, José Gil atravessa indo e vindo o cruzamento entre poesia e filosofia, convergindo as duas para a mesma esfera circulante, ecoando numa velocidade além de si para a atmosfera de um inusitado projeto: uma modernidade que se afirma pela superação da transcendência metafísica. Definindo o seu livro como um objeto um tanto estranho, José Gil, através das suas movimentações, arrasta os leitores para uma incursão surpreendente no labirinto pessoano, marcando os pontos convergentes nos quais a poética de Pessoa se deixa perfilar pelos conceitos de Deleuze – trazer para o comentário do texto pessoano instrumentos conceituais deleuzianos. Com efeito, mais surpreendente ainda é ver em Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa, José Gil erigir, num plano límpido e perspicaz, conexões entre a filosofia de Deleuze e a poesia de Pessoa, explicitando no seu processo conceitos fundamentais de Deleuze, no aberto do espaço pessoano, lançando mão a questões fundamentais, do tipo: Como construir o plano da imanência ou como construir um corpo-sem-orgãos? Através delas, José Gil indica que os conceitos de Deleuze, questões traçadas em Mille Plateaux, ganham uma imensa vitalidade, quando utilizados como ferramentas de análise no labirinto conceitual dos personagens de Fernando Pessoa, ora expressos em Alberto Caeiro, o devir-outro, ora em Álvaro de Campos, o corpo-sem-órgãos, ora em muitos outros: Bernardo Soares, Fernando Pessoa, etc..., revelando no seu curso, a análise de Gil, uma clareira por onde, através de Gilles Deleuze, areja e reverbera a poesia e o pensamento de Fernando Pessoa.

José Gil deixa claro, no entanto, que o objetivo do seu livro não é comparar Pessoa com Deleuze, mas sim trazer para o comentário do texto pessoano instrumentos conceituais Deleuzianos, e a um só tempo perceber os pontos de convergência, na escrita e no pensamento, entre Deleuze e Pessoa, operando para edificar, no aberto da multiplicidade, um horizonte possível.

SER CONTEMPORÂNEO DE PESSOA

Em Pequeno Manual de Inestética, Alain Badiou, em capitulo dedicado a Fernando Pessoa faz uma aposta que incide em um atravessamento que desloca, revolve, dialoga, na superfície poética de Fernando Pessoa. Badiou se espraia para as bandas do inusitado, tangenciando por dentro e por fora de Pessoa fazendo emergir, pela agilidade de seu movimento, a ponta de um pensamento que desde sempre foi outro, pois Fernando Pessoa foi um artista da palavra, logo um criador, um pensador conceitual que atravessou a escrita gerando dobras e redobras de pensamentos, seja no jogo calidoscópio do múltiplo, nas cintilações de cada heterônimo, seja na tarefa de pensar o impensado, a palavra nova. Badiou, em suas analises, percebe, e a um só tempo faz perceber, a intensidade de Pessoa. Com ele, numa minuciosa analise, Badiou perfila a sombra do contemporâneo, fazendo valer a força de Pessoa, da sua obra, do seu pensamento. E nos diz : o pensamento-poema de Pessoa abre uma via que não chega a ser nem platônica nem anti-platônica, pois naturalmente, Pessoa estava fora dessa. Ele pensou, muito antes de Deleuze, que há dentro do desejo uma espécie de univocidade maquínica. Segundo Badiou: a linha de pensamento singular desenvolvida por Pessoa é tal que nenhuma das figuras estabelecidas pela modernidade filosófica está apta a sustentar sua tensão. Badiou examina a relação poética entre Pessoa e o platonismo: Um grande poema não é a voz do ser nem um encaminhamento em direção à palavra. Ele é uma experimentação local do pensamento no infinito da língua. Segundo Badiou: Fernando Pessoa propõe uma solução a um problema preciso cujos dados ele próprio construiu por meio de imagens, cadências e estilo afirmativo. Trata-se da ligação entre filosofia e vida , entre a filosofia e outras formas de pensamento e de criação. Com efeito, pensar Fernando Pessoa é lançar mão de um sistema vital, de um movimento criativo em que: escrita, pensamento, sensação, se atravessam. Tudo num movimento só, num jorro de intensidade no qual o pensamento persevera. Portanto a tarefa de pensar Fernando Pessoa na atualidade consiste em está atento a um conjunto de movimentações que revolvem sua obra para lances cada vez mais inusitados, curiosos, inesperados, Nomes como Badiou, Jose Gil, são referencias essenciais para qualquer aposta em Pessoa, mas também, em outra margem, em conexões do possível, no jogo intenso das suas próprias movimentações, cabem nomes como Leila Perrone Moises, autora de Fernando Pessoa – aquém do eu além do outro; Rinaldo Gama, autor de O Guardador de Signos: Caeiro e Pessoa; Fernando Segolin, autor de As linguagens Heteronímicas de Pessoa; Eduardo Lourenço, autor de Fernando Pessoa Revisitado; Benedito Nunes, autor de O Dorso Do tigre; o poeta Ney Ferraz Paiva e suas conexões inventivas com Pessoa.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Lévi-Strauss e o espírito dos insetos




Sérgio Medeiros
panambi@matrix.com.br
Escritor e professor de literatura na UFSC

A noção de que o mundo é povoado de outros sujeitos ou pessoas, além dos seres humanos, é uma concepção ameríndia, ou extra-ocidental, e pressupõe às vezes um monismo ao qual o pensamento ocidental (não a arte ocidental, bem entendido) parece resistir, como bem mostrou Philippe Descola, no seu já clássico Par-delà nature et culture (Gallimard, Paris, 2005). Descola é um dos mais ilustres herdeiros de Claude Lévi-Strauss, ao lado do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. No livro citado, Descola chama a atenção, inicialmente, para a hierarquia entre objetos animados e inanimados. Os animais e as plantas, por possuírem alma e subjetividade, como os povos ameríndios reconhecem, perceberiam os seres humanos como outro, porém, não necessariamente como humanos, gente. Para cada perspectiva, a sua pirâmide. Os insetos, no entanto, podem (ou não) ficar à margem dessa ordem (a comunidade das “pessoas”, num sentido amplo), correspondendo, entre os Achuar, àquilo que chamamos “natureza”, ao lado dos peixes e das ervas, que parecem ser destituídos de alma. Essa concepção não-dualista do mundo pode, enfim, ser mais ou menos radical, nesta ou naquela tribo amazônica, menos entre os Achuar e mais entre os Makuna, por exemplo, onde o fenômeno é evidente.

No centro das cosmologias ameríndias deparamos, então, guiados pela crítica etnológica de Lévi-Strauss e de seus herdeiros, Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro, com a complexa relação entre a subjetividade humana (e outras subjetividades, como deuses, espíritos, mortos) e os animais, relação que o perspectivismo tentará deslindar.

Se “os animais são gente, ou se vêem como pessoas”, eles possuiriam uma forma interna humana, a qual, geralmente, só os xamãs (seres transespecíficos) poderiam perceber. “Essa forma interna”, esclarece Viveiros de Castro, “é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal”. Os seres animados compartilhariam, como se pode deduzir, uma mesma essência, apenas sua forma visível difere, mas ela é enganosa, pois, no fundo, é uma “roupa” que se pode despir (concepção provavelmente panamericana).

A consulta aos quatro volumes das Mitológicas, de Claude Lévi-Strauss, sem dúvida fornece numerosos exemplos que confirmam a teoria perspectiva e lançam luz, ainda, sobre o papel dos insetos na origem da cultura. Aos insetos, como vimos, nega-se às vezes que tenham “alma”, mesmo em cosmogonias indígenas, que poderão inseri-los, simplesmente, no reino “natural”. Em O Cru e o Cozido (Cosacnaify, São Paulo, 2004), primeiro volume das Mitológicas, há várias referências a larvas e insetos, destacando-se as formigas, dotadas de “espírito”: elas podem estar ligadas, segundo certos mitos, ao dom das plantas cultivadas (os seres humanos receberam seus bens culturais de animais, por mais humildes que estes pareçam). Os insetos, porém, são também “naturais”, e já estão presentes, de forma eloqüente, num trabalho anterior de Lévi-Strauss, Tristes Trópicos (Companhia das Letras, São Paulo, 2004), alimentando-se de secreções ou embriagados pelo suor de suas vítimas. Nas palavras de Lévi-Strauss, descrevendo sua estada no Brasil central, “ávidos por suor, brigam pelos locais mais favoráveis, comissuras dos lábios, olhos e narinas onde, como que inebriados pelas secreções de sua vítima, preferem ser destruídos ali mesmo do que voar”.

A possibilidade, trazida à tona pelo perspectivismo, de utilizar textos de Lévi-Strauss como referência para estudar, no mundo contemporâneo, as fronteiras cada vez mais porosas ou indecidíveis entre humanos e não-humanos, entre natureza e cultura, talvez seja a maior prova da atualidade do seu pensamento.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Viva Raposo!

Rodrigo C. Vargas

Último stalinista cearense, o poeta e livreiro Manoel Coelho Raposo me recebeu em seu escritório – abarrotado de memórias - no começo de março deste ano ao som de Sumaré, canção composta por ele em parceria com Bernardo Neto (disco parte integrante do ultimo exemplar da revista O Saco de 1987). Raposo andava devagar, limitado por um enfisema pulmonar que o fez abandonar a volta da revista de cultura cearense mais importante dos anos 1970. Ainda assim, mostrava vigor na fala e no olhar.

Procurei Raposo porque queria entrevistá-lo sobre O Saco. Chegando lá a primeira coisa que me pediu foi para falar, antes de mais nada, sobre um último trabalho em que depositava toda a força: o modo de produção. Uma análise do sistema capitalista em que antecipava a crise econômica mundial do ano passado.

Depois de uns 20 minutos costurados por sabores ideológicos e desgostos humanos, Raposo começou a falar d´O Saco. Essa foi à última entrevista dada a um jornalista. Quanto mais ele falava do que foi a revista, mais me impressionava a força de suas idéias. Seguia realmente o que pensava.

Quando terminou a entrevista Raposo se levantou e pegou numa prateleira entupida de livros, encadernações, folhas soltas e empilhadas, um livreto e me entregou. Duas cartas, dois beijos para Emmanoelle é o título de uma das últimas publicações do poeta. Correspondências trocadas com a filha, com quem perdeu contato ainda criança. Uma espécie de O mundo de Sofia em que apresentava suas idéias sobre coisas comuns do dia-a-dia, mas que nunca puderam ser ditas. O natal, aparências, Marx, essências, Castro Alves...

O silêncio sobre a morte de Manoel Coelho Raposo é o mesmo de 11 de abril de 1977, quando tentava praticamente sozinho manter a publicação d´O Saco. Uma reunião foi marcada com membros do Estado, iniciativa privada, intelectuais e universitários que receberiam uma publicação intitulada Vamos deixar “O Saco” morrer? contando a história da revista e o porque deveria continuar sendo distribuída. Quase ninguém foi.

Aprendi muito com aquele breve encontro. Devo esse artigo à Raposo, um desabafo que não é meu.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Universo mágico de Guimarães Rosa




Pedro Maciel
pedro_maciel@uol.com.br
Escritor

“Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa, clássico da literatura brasileira deste século, inspirou o artista plástico Arlindo Daibert (1952-1993) a criar uma série exemplar de imagens do sertão. Daibert reinventou a paisagem remota do sertão, onde “o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”. Lugar não-localizável. Lugar lúdico, metafísico, fabuloso, ligado à oralidade e ao mito. “Ilhas sem lugar”, como muito bem definiu Fernando Pessoa.

Os desenhos de Daibert nos remetem a um lugar assombrado, de um falar incomum, habitado por Riobaldo, o Urutú-Branco, Diadorim, cordeiro de Deus, Hermógenes, o diabo, o menino Guirigó, o cego Borromeu e Maria Boa-sorte, entre tantos outros personagens místicos, que traçam uma espécie de roteiro de Deus. Riobaldo diz que “às vezes a gente só pode ver o aproximo de Deus na figura do outro”.

O artista Daibert recria cenas como a matança dos cavalos, o duelo, o pacto do diabo; reescreve (a escrita é um caso particular do desenho, segundo Michel Butor) o mundo imaginário de Riobaldo que “conto para mim, conto para o senhor” (interlocutor letrado que nunca aparece), “uma história no meio das outras. Ao quando bem não me entender, me espere”.

Daibert, que já havia dedicado uma série ao “Macunaíma” de Mário de Andrade, apresenta uma mostra pictórica espetacular em “Imagens do Grande Sertão” (Editora UFMG e UFJF), a partir de uma variedade de procedimentos, como a xilogravura, desenho com várias técnicas e objetos. A série é resultado de um prolongado estudo do universo mágico redescoberto por Guimarães.

“Grande Sertão: Veredas” é um manual de satanismo, ação lendária, epopéia/saga do sertão e seus vazios, que é o profundo da gente mesmo; reescritura dos romances medievais, épico, discussão entre Deus e o diabo.

Riobaldo, o narrador, ex-jagunço, barranqueiro que faz um pacto com o diabo, diz: “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver _ a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo (...) Deus vem, guia a gente por uma légua, depois larga.”

A última fala de Riobaldo a um ouvinte imaginário diz que “o diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”. A travessia do velho Riobaldo resgata uma época arcaica, anterior à escrita; rememora um tempo mítico através de histórias inimagináveis. Afinal, “só não existe o que não se pode imaginar”.

Diadorim, neblina de Riobaldo, é a razão dessas histórias contadas, “e estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder”.

O que sucede com o jagunço Riobaldo Tatarana, o homem sem apego nenhum, “sem pertencências”, são recordações que não se vê a olho nu, estórias sonhadas com lugares que já não são mais os mesmos, perdidos para sempre, mas achados nos escondidos dos devaneios.

Riobaldo retorna a esses lugares, como se, “tudo revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha sido, repor Diadorim em vida”. Diadorim é Reinaldo, homem-mulher, objeto de seu desejo, sua paixão pecadora, que só é descoberta como mulher após morrer lutando contra Hermógenes. Riobaldo então se pergunta: “O senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá!? Pode vir de um-que-não existe?”

A história vivida pelo barranqueiro Riobaldo, que fugia de tiro certo, virava longe no mundo, pisava espaços para correr de tiro dado, fazia todas as estradas para viver um pouquinho mais de instantes ao lado de Diadorim, que “tinha amor em mim” e, morreu desencantada, “num encanto tão terrível”.

Riobaldo quase se endoidou ao saber que Diadorim era uma mulher. “Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero”, que, por Diadorim, “às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. Para quê eu ia conseguir viver?”

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Primeira página do romance “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa

_Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser _ se viu _; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram _ era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente _ depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá _ fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.

Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele _ dizem só: o Que-Diga. Vote! Não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num Aristides _ o que existe no buritizal primeiro desta minha mão direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita _ todo o mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando: _ “Eu já vou! Eu já vou!....” _ que é o capiroto, o que-diga...

O desenredo lingüístico de Guimarães Rosa




Tatiana Alves Soares Caldas
tatiana.alves.rj@gmail.com
Escritora, doutora em letras pela UFRJ

Guimarães Rosa, escritor mineiro celebrizado pela peculiaridade de sua linguagem, apresenta ao leitor um desafio: dotado de um estilo único, povoado por construções insólitas, o autor de Grande Sertão: Veredas realiza uma verdadeira recriação da linguagem, redimensionando o léxico e ultrapassando os limites do mero regionalismo. A linguagem rosiana é a um só tempo regional e universal, presente e atemporal, popular e erudita. É desse redimensionamento, analisado em seus aspectos sintáticos, semânticos e morfológicos, que trata nosso estudo.

Desenredo, conto integrante de Tutaméia – Terceiras Estórias, narra a história de Jó Joaquim, homem que se apaixona por uma mulher extremamente infiel, a quem conhecera ainda casada. Flagrada pelo marido com um terceiro homem, a amante de Jó Joaquim escapa da morte. Este decide se afastar, mas, com a morte do marido, não resiste e casa-se com ela, que passa então a traí-lo. Com a infidelidade mais uma vez descoberta, Jó expulsa a adúltera companheira. Em seguida, começa uma verdadeira campanha com o objetivo de modificar a imagem da mulher, afirmando a sua inocência. Sua obstinação, motivada talvez por um amor incondicional, faz com que ele transmita aos outros um modelo de fidelidade tão perfeito que aos poucos todos começam a acreditar em sua história. E, de tanto acreditarem, até a traidora passa a crer na imagem pelo marido idealizada. Como que para fazer jus a tão boa fama, ela torna-se, de fato, uma mulher fiel, voltando para o marido, com quem é feliz para sempre. O enredo insólito, nesse conto talvez por isso intitulado Desenredo, articula-se às inovações realizadas pelo autor. Acreditamos que a exploração de novas estruturas lingüísticas efetuada por Rosa funcione como eixo fundamental do conto, sugerindo e indiciando o desenrolar dos acontecimentos na narrativa.

Um primeiro aspecto a ser destacado refere-se à presença recorrente de provérbios populares e máximas. Tais aforismos têm, a nosso ver, uma dupla função: a de apresentar Jó Joaquim como um homem humilde, do povo, o que se confirma com a sua caracterização, e a de atuar como indício do enredo. O fato de Jó Joaquim preocupar-se com a imagem da mulher perante os habitantes do lugar acentua o seu provincianismo, marca também do narrador, que aparece na introdução do conto a narrar a história a ouvintes, como se de um causo se tratasse. A oralidade, bem como a exploração de um tema do cotidiano, confere ao conto um caráter popular, intensificado pelas assertivas que mapeiam os momentos-chave da trama. A primeira delas, presente na apresentação de Jó Joaquim, prenuncia a mudança trazida por uma mulher na vida do protagonista, antes respeitado:

(...) Com elas quem

pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer.[1]


Após o encanto mútuo, Jó Joaquim e a amante começam a encontrar-se furtivamente. Aguardando um momento propício, o protagonista deixa-se levar pelo amor, iludido e sonhador. A reviravolta na trama é antecipada pela instância narrante, que prenuncia a tragédia a ser narrada, ao afirmar que o trágico não vem a conta-gotas.

A narrativa prossegue, e vemos Jó Joaquim afastado da amante, refazendo-se da decepção. Entretanto, como é de desenredo que se trata, o marido morre, permitindo o reencontro dos amantes.

Além dos provérbios citados de forma literal pelo narrador, há outros a nosso ver ainda mais significativos, que aparecem modificados, alegorizando a modificação da situação apresentada. Assim, mais do que simplesmente reproduzir expressões da fala popular, o narrador modifica tais expressões, imprimindo-lhes sua marca pessoal e adaptando-as ao contexto da narrativa. A máxima “depois da tempestade vem sempre a bonança” é aqui transformada em “a bonança nada tem a ver com a tempestade”, numa sugestão de que, após tantas desventuras, Jó Joaquim ainda não encontrará a paz. Outra expressão adaptada pelo narrador está presente na passagem abaixo, momento em que Jó Joaquim é informado da viuvez da amada:

Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos.

Daí, de repente, casaram-se. [2]

Ao subverter o conhecido num abrir e fechar de olhos, o narrador simultaneamente demonstra a eternidade do amor do protagonista, que jamais se fecharia às palavras da amada, e sugere a credulidade de Jó Joaquim, que confiava nas doces palavras da mulher.

Os jargões e termos técnicos também perpassam a narrativa, relacionando palavras de um mesmo campo semântico ao enredo do conto. Há, por exemplo, diversas referências a embarcações quando o narrador fala da paixão de Jó Joaquim. Tais referências atuam como metáforas da trama retratada. A comparação do amor com a nau tangida a vela e vento sugere, simultaneamente, uma relação movida a paixão (a vela) e que vagueia à deriva (ao vento), oscilando de acordo com os acontecimentos.

Outra imagem ligada à navegação é a dos barquinhos de papel. A fragilidade e a inocência dos sonhos do protagonista são habilmente metaforizadas nos singelos barquinhos, acentuando a pequenez humana diante dos indecifráveis desígnios da vida. O campo semântico das embarcações / navegações é ainda vislumbrado na referência a Ulisses, célebre herói da Odisséia que, entre tantas outras peripécias, amarrou-se à proa do navio para não sucumbir ao melodioso e traiçoeiro canto das sereias. O Ulisses mitológico encontrou, portanto, uma saída contra a tentação feminina simbolizada pelas sereias, o que não parece ocorrer com Jó Joaquim, levando o narrador a citar a sabedoria do navegante ancestral:

(...) Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se,

a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver

com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulysses,

que começou por se fazer de louco. [3]


Entretanto, se por um lado pode-se ver nas palavras do narrador uma crítica ao comportamento crédulo e apaixonado do protagonista, por outro pode haver uma defesa de Jó Joaquim por parte da instância narrante. Afinal, se a sabedoria de Ulisses foi a de se fingir de louco para não ter de ir à guerra, a tentativa de redimir a imagem da esposa efetuada por Jó Joaquim, apesar de parecer uma total insanidade, no final revela-se sábia e bem-sucedida. O protagonista embarca em seu sonho, e com ele chega ao local desejado.

Ainda em relação aos termos técnicos, várias são as palavras ou expressões ligadas à lei e ao Direito, como decúbito dorsal, criminoso, reincidente ou abusufruto. Repare-se que, apesar de a maioria dos termos grifados possuir uma relação semântica com crime, não é à adúltera que eles se referem. O abuso no ato de usufruir, ou abusufruto, neologismo rosiano que sugere o prazer desfrutado pelos amantes, aparece como um delito do protagonista, instaurando uma espécie de contradição: o usufruto caracteriza o direito de se aproveitar alguma coisa, enquanto o termo abuso marca o excesso dessa prerrogativa. As delícias experimentadas nos encontros superavam, portanto, os limites estabelecidos, numa transgressão já expressa pelo caráter adulterino da relação. Já os termos criminoso e reincidente se referem explicitamente a Jó, traduzindo a imagem de que o grande erro fora dele, ao confiar novamente na mulher. O termo decúbito dorsal, normalmente utilizado para indicar a posição em que um corpo fora encontrado, coloca o protagonista na condição de vítima, ao mesmo tempo em que denuncia a sua prostração após a constatação da infidelidade da amada.

A partir do momento em que começa a sua cruzada visando a redimir a mulher, os termos vão se aproximando mais do aspecto criminal. Para livrá-la da calúnia, ele não hesita em modificar testemunhos e evidências, alterando completamente a “cena do crime”.

A relação do enredo com as estruturas morfológico-sintáticas presentes no conto é ainda vislumbrada a partir de um jogo com os parônimos mas e mais, cada um deles constituindo um parágrafo.

O primeiro parágrafo formado apenas pela conjunção adversativa surge logo após a notícia do casamento do protagonista, num prenúncio das adversidades trazidas pela união. Em outro parágrafo, desta vez sintetizado no advérbio de intensidade, uma sugestão de que há muitas coisas ainda por contar nessa história. O próprio jogo fônico-semântico entre mas e mais ilustra o desenvolvimento da trama: primeiro, há a reviravolta; depois, surge algo a mais, que permitirá a transformação, volvendo o mero enredo em desenredo.

Os neologismos detectados na obra também dialogam com ela, possuindo uma função na narrativa. Um deles indica a situação de Jó Joaquim durante o afastamento da amada, quando o narrador utiliza-se do termo franciscanato para retratar a situação do protagonista, enfatizando seu celibato e estoicismo. A renúncia aos prazeres, exigida de qualquer monge, aliada ao voto de pobreza típico dos franciscanos, acentua a abstinência de Jó Joaquim, penitente do amor. A existência monástica que o personagem levava até então contrasta com a devassidão da amada, e significativamente a referência ao franciscanato de Jó Joaquim é imediatamente anterior ao mas, indicando a mudança por vir.

Outro neologismo percebido em Desenredo é o termo ufanático, usado para caracterizar o protagonista em sua empresa.A palavra em questão, cruzamento de ufanista com fanático, sintetiza de forma primorosa a paixão de Jó pela amada. Dotado do tom exagerado que marca os ufanistas e da admiração exaltada do apaixonado que comete excessos, Jó Joaquim revela-se um verdadeiro ufanático, numa sugestão do amor quase obsessivo que manifesta. É movido por essa paixão desmedida que ele decide transformar sua história de amor.

Um aspecto que merece ser destacado refere-se à onomástica, uma vez que o nome dos personagens complementa a sua caracterização. O protagonista, que tem como primeiro nome Jó, remete ao homônimo bíblico conhecido por sua paciência e resignação. Submetido às piores provações, manteve-se fiel a Deus. O fato de o personagem possuir o mesmo nome do mártir bíblico funciona como indício de todo o sofrimento que experimentará ao longo da história, bem como a sua incontestável fidelidade.

O nome da amada de Jó Joaquim, intencionalmente omitido até aqui, é também extremamente sugestivo. No início do conto, o narrador refere-se a ela, sem deixar claro qual é, de fato, o seu nome. A indefinição do narrador traduz a incerteza quanto à identidade da personagem e, por extensão, quanto ao seu caráter. A inconstância da amada de Jó Joaquim é metonimizada na inconstância de seu nome, que parece se modificar com a mesma rapidez com que ela troca de parceiro. Chevalier, ao analisar a simbologia do nome, destaca a sua importância no processo de criação e de construção da identidade. Se os nomes, como afirma ele, refletem a essência do objeto denominado, a dúvida entre os vários nomes traduz a incerteza quanto à essência da personagem. Surpreendentemente, o nome que aparece ao final da narrativa não é nenhum dos três anteriormente mencionados. O fato de Vilíria surgir com um nome outro, distinto dos referidos pelo narrador, sugere a transformação nela operada pelos esforços de Jó Joaquim. É essa quarta mulher, diferente de todas as anteriores, que trará a felicidade ao protagonista. Seu último nome carrega ainda uma polissemia condizente com sua história: apesar da aparente oposição entre o vil e o lírio, maldade e pureza aliam-se nessa mulher multifacetada. A própria imagem do lírio é repleta de ambivalências, sendo ao mesmo tempo ícone de pureza e de pecado, sendo inclusive uma das marcas das prostitutas medievais. Semelhante dualismo é observando por Chevalier, que destaca os signos positivos e negativos associados ao lírio. Apesar da perspectiva de salvação metaforizada pela flor citada, esta apresenta uma relação com a tentação, com o pecado, com o amor proibido. A referência a amores proibidos é significativa, em função do adultério representado pela personagem. A interdição social incita à transgressão, e esse aspecto sedutor, marca de Vilíria, constitui mais uma das simbologias do lírio.

Além da proibição explícita – o fato de ela ser casada -, o lado tentador da personagem evoca o arrebatamento simbolizado pelo lírio, como demonstrara Chevalier. Vilíria é marcada pela dualidade, a mesma que lhe permite a transformação observada ao final da história. Não por acaso, outro aspecto presente no lírio refere-se a esse transitar pelas diferentes possibilidades de existência. Esse potencial para a mudança entrevisto em seu simbolismo reflete o poder de cada ser humano de transformar o seu destino, atitude tomada por Jó Joaquim. Este, ao reescrever a história da mulher, modifica-a, tornando-se narrador em vez de mero personagem. Ao imprimir seu desejo à narrativa, torna-se partícipe desse processo, mudando-lhe o final e gerando o desenredo aludido pelo título. O enredo corriqueiro e estereotipado da mulher de mil amantes, de fim trágico e previsível, é então reformulado, transformando-se em feliz desenredo. Com a boa-fé dos otimistas, de tanto acreditar tornou em verdade a mudança de sua história. De tanto criar uma fantasia em que pudesse se refugiar e convencer os outros, Jó Joaquim acaba por criar uma nova realidade. O processo de conversão da mentira em verdade ocorre por meio de uma lógica invertida, por uma investigação às avessas, em que o passado modifica o presente, na arte e na obstinação de Jó Joaquim. À medida que embarca quixotescamente em seu propósito, os vestígios do passado maculado vão sendo apagados, dando lugar à verdade transformada. E, mágica-paradoxalmente, o sujeito das infâmias converte-se em objeto, claro e límpido, da criação de Jó Joaquim. Numa espécie de exorcismo narrativo, Jó retira de Vilíria as máculas do passado para que ela retorne, purificada. Até mesmo o clássico “viveram felizes para sempre” é aqui resgatado, na promessa de felicidade eterna. Transformados pelo ritual da palavra, tornam-se livres e podem ser felizes. E, o que era apenas ficção do protagonista, sugerido inclusive pelo termo fábula, passa ao estatuto de verdade, sendo perpetuado com todas as formalidades, lavrado como documento de fé pública: “E pôs-se a fábula em ata” (cf., 1967, p.40).

Jó Joaquim ousou desprezar a verdade linear, redesenhando a sua história. Personagem rosiano, ele seguiu os passos de seu criador, inovando, recriando. Guimarães Rosa, que sempre subverteu a linguagem, ousou contrariar o próprio epíteto que identifica os membros da Academia Brasileira de Letras. Sua morte repentina, ocorrida apenas três dias após ironicamente ter se tornado imortal, foi o seu último desenredo.

_________________________

[1] ROSA, João Guimarães. Tutaméia – Terceiras Estórias.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p.38
[2] Ibidem, p. 39.
[3] Ibidem, p. 40.

sábado, 14 de novembro de 2009

Sobre o filme Anticristo, Camille Paglia e a bestialidade da natureza

Archidy Picado Filho
archidy@ibest.com.br
Artista plástico, músico e escritor

Já se passaram pouco mais de cem anos desde que os Irmãos Lumière desenvolveram a técnica capaz de criar a sensação visual de movimentos a partir da exposição projetiva dinâmica de uma seqüência de quadros fotográficos sob influência da luz. A tal engenhosa obra de arte puseram o nome de "Cinema". De lá para cá, o Cinema evoluiu de um simples recurso de registro de momentos da História a instrumento de produção e reprodução dos sonhos mais delirantes de artistas - uma conseqüência inevitável da necessidade de superarem, a cada produção, suas próprias capacidades criativas e expressivas. Nesse processo, o Cinema evoluiu de matizes projetivas em preto e branco, mudas, a coloridas e sonoras, evoluindo em possibilidades de produção visual animada até chegar aos recursos artísticos da computação gráfica, onde novíssimos mundos de imagens, sons e argumentos põem dúvidas nas cabeças de semióticos a lhes fazerem pensar até que ponto vão os limites daquilo que podemos reconhecer como "realidade" a distingui-la de sua prima "virtualidade".

De registros banais de imagens do cotidiano, dos argumentos mais simples aos mais "profanadores de hábitos e costumes", segundo conservadores, das mais irrelevantes expressões estéticas aos experimentos mais revolucionários, portanto, o Cinema, associado às artes da Música, da Literatura, ao Teatro e a outras artes visuais como a Fotografia, a Maquiagem, a Cenografia, a Escultura e o designer de costumes - mais conhecido como Moda, deu exemplos de até que ponto vai ousadia dos artistas que produzem a chamada "Sétima Arte" com a feitura de filmes que, ora acalmam nossa angústia existencial com humor, ou nos contando histórias românticas "água com açúcar", ora nos lançam em outros mundos fundamentados nas mais alucinadas fantasias, ora nos provocam reflexões sobre as profundezas daquele que reconhecemos "nosso" próprio ser, ainda tão misterioso quanto, às vezes, horripilante.

Escrito e dirigido pelo cineasta dinamarquês Las Von Trier, com o ator Willem Dafoe o "Duende Verde" no filme O Homem-aranha e a competente atriz francesa Charlotte Gainsbourg como únicos protagonistas, o filme Anticristo, considerado "o mais polêmico do ano", concebido "durante uma fase depressiva" do cineasta, é um desses que, malgrado possa vir a ser considerado "de profundo mau gosto" por uns tantos, foi realizado não apenas para testar a ousadia interpretativa de seus atores, mas também para remexer nossas cabeças e estômagos a pôr a questão sobre até que ponto somos, de fato, verdadeiros "humanos" ou apenas espécimes biológicos representantes de uma animalidade racional, verdadeiramente demoníaca para usar antigos signos religiosos, embora ainda tão atuais!, muito longe de ser superada.

O argumento inicial de Anticristo é relativamente simples: um casal perde um filho, que despenca da janela do apartamento onde moram e onde, no momento da morte do menino, eles fazem sexo. Filmado em preto e branco e em câmera super lenta, com fundo musical onde se ouve um belo solo erudito, de voz feminina - que torna muito chique e suave o que será apenas denso e trágico - a cena inicial do filme, o Prólogo da trama - uma vez que a história é dividida em capítulos - apesar de não ser uma obra pornográfica, exibe detalhes de sexo explícito.

Já aí encontramos uma inovação, uma vez que filmes que não tem cunho pornográfico, mesmo quando do gênero Terror ou Suspense, produzem cenas de sexo de forma apenas sugestiva, sendo freqüentas tais cenas de sexo em Anticristo, e sempre surpreendentemente violentas. Numa delas, a menos violenta, a mulher pede ao marido que lhe bata com força - o que é relativamente freqüente em relações entre "homens" e mulheres no "mundo real" para satisfação de alguns "homens" que, como se costuma dizer dos árabes em anedotas, com freqüência batem em suas mulheres que, então, secretamente, "sempre sabem por que estão apanhando", embora eles não tenham certeza do por que lhes estão espancando - fora o fato de que, para algumas mulheres , é extremamente prazeroso serem surradas como estímulo ao orgasmo.

Até onde percebi, o argumento do filme parece também ter sido inspirado nas idéias desenvolvidas no livro Personas Sexuais - Arte e decadência de Nefertiti a Emily Dickinson, da controversa e razoável intelectual norte-americana Camille Paglia - obra onde ela defende as expressões artísticas, essenciais instrumentos da produção de culturas, tentativas eminentemente masculinas de superação da verdadeiramente insuperável bestial força da natureza, a qual somos todos submissos, sendo as mulheres, como fêmeas de quaisquer espécies, as mais autênticas representantes dessa naturalidade - não apenas como seres integrantes da natureza como nós, machos, também somos, mas principalmente enquanto partícipes literalmente viscerais da materialização orgânica de formas pré-humanas da Vida, incubadoras biológicas daqueles que, violenta e sanguinolentamente expulsos de seus úteros, continuarão a perpetuar a espécie que, segundo Paglia, por vontade obsessiva dos machos - como uma expressão de nossa inveja do útero - tende a procurar conhecer a si mesma, domar instintos e fundamentar uma civilização a pretender se definir como substancialmente "humana".

Para ilustrar minha tese de que o autor/diretor Las Von Trier deve ter se inspirado na obra de Camille Paglia para realizar seu inquietante filme Anticristo - entre leituras de outras obras, naturalmente - seu protagonista demoníaco é a própria natureza e toda sua bestial brutalidade. Em seu filme, a decomposição progressiva dos corpos, o sofrimento e a morte são as máximas expressões do Mal. Há sempre árvores apodrecendo e desabando numa lamacenta floresta, e, entre outras, a incômoda visão de uma corça a carregar seu filhote natimorto, meio pendurado em sua vagina, como também, para a protagonista, "mãe-órfã" de seu filho, torna-se insuportável ver um pássaro recém-nascido caído do ninho devorado por formigas e, depois, capturado e destroçado por um falcão.

Para a personagem de Von Trier em crescente desespero, "A natureza é o templo de Satã" Camille Paglia a chama uma expressão do "daimon", presença essencial inevitável também em nossa própria bestial pré-humanidade, e quando uma brisa entra pela janela da cabana onde o casal se isola a tentar resolver seus traumas, num local curiosamente chamado "Édem" que nada tem do belo jardim do Édem que nos estimulam a imaginar o Livro do Gênesis, ela refere-se à brisa como "a respiração" de Satã. E há quase sempre para eles a companhia da chuva, quer de água como de pesadas sementes de carvalho, que despencam das centenárias árvores em volta sobre a cabana, "morrendo e morrendo", como observa a protagonista, fazendo-a entender que "tudo o que costumava ser bonito em Édem talvez fosse horrível" e que, agora, só o que ela ouve por lá é "o choro de tudo o que vai morrer".

Num outro momento do filme, um movimento na vegetação chama atenção do personagem de Dafoe. Num canto da mata, ele encontra escondida uma raposa, que devora parte de seu próprio corpo e, em câmera lenta, como final do "capítulo dois" da trama, late para ele com timbre de demônio: "O caos reina".

Numa das mais violentas cenas de sexo que já vi num filme, certamente para punir sua natureza perversa, a mulher corta o próprio clitóris com uma tesoura - ao que parece, uma referência do autor da trama ao que faziam com mulheres alguns católicos "santos" inquisidores na Idade Média, entre outros de outras culturas e épocas, a evitar que, com seus orgasmos, estimulassem as mulheres a deixarem escapar suas naturezas demoníacas . E a personagem de Las Von Trier se mutila depois de ter com o marido uma violenta relação sexual, bater no pênis dele com uma tora de madeira e, ao masturbá-lo, extrair-lhe sangue ao invés de esperma, furando depois a coxa dele com uma broca de mão e atravessando nela uma pesada roda-lixa de metal, prendendo-o na perna do homem com seu suporte de ferro e uma porca a evitar que ele a abandone - coisa que, apesar de toda a loucura e violência crescente da esposa, até então ele não parece disposto a fazer.

Ele é psicanalista e ela é escritora, diz a sinopse do filme. Como tal, ela anda a desenvolver uma tese sobre o comportamento "essencialmente perverso" das mulheres que, no passado, por isso foram mortas. Numa tentativa de ajudar a esposa a superar sua violenta crise existencial - embora não seja profissionalmente aconselhável que psicanalistas tratem de amigos ou, muito menos, membros de sua própria família - no Capítulo Três do filme, intitulado "Desespero: Femicídio ", ele começa com ela um diálogo interessante segundo versão legendada:

"Gostaria de fazer mais um exercício", diz ele. "Vamos interpretar. Meu papel será... todos os pensamentos que provocam seu medo. O seu papel será o pensamento racional. Sou a natureza. Tudo o que você entende por natureza".

"Tudo bem, senhor natureza", ela diz. "O que quer"?

"Machucá-la quanto eu puder", ele responde.

"Como?", ela pergunta.

"Como acha?", pergunta ele.

"Me dando medo", ela supõe.

"Matando-a", responde ele.

"A natureza não pode me machucar", ela acredita. "Você só é o verde lá fora".

"Não, sou mais que isso", ele garante.

"Não entendo", ela diz.

"Estou lá fora, mas também estou dentro. Sou a natureza de todos os seres humanos", ele esclarece.

"Esse tipo de natureza. O tipo de natureza que faz as pessoas causarem mal às mulheres", ela observa.

"Exatamente quem eu sou", ele diz.

"Essa natureza me interessou quando estive aqui", ela revela. "Era o assunto de minha tese. Mas não deveria subestimar Édem".

"E o que Édem faz?", ele pergunta.

"Descobri mais do que imaginava", ela diz. "Se a natureza humana é maldosa, também é válido para a natureza"...

"... das mulheres", ele completa: "Natureza feminina".

"Natureza de todas as irmãs", ela diz. "As mulheres não controlam seu corpo. A natureza é que controla. Escrevi isso nos meus livros".

"O material que usou em suas pesquisas era sobre maldades cometidas contra as mulheres", ele observa, "mas entendeu como a maldade das mulheres? Era para ser mais crítica sobre esses textos, era sua tese! Em vez disso, está levando a sério. Sabe o que está dizendo"?

"Esqueça", ela pede. "Não sei por que falei aquilo".

Num processo de violência crescente, de manifestação intensa da fêmea besta "humana", então, o psicoterapeuta termina inevitavelmente por estrangular a mulher que, ininterruptamente, ao mesmo tempo em que sexualmente lhe seduz e tortura, parece querer matá-lo, embora dubiamente procure sempre aplacar o sofrimento que lhe causa.

Misturados com a floresta, depois que mata a esposa e sai da cabana, o homem percebe, misturados com a vegetação, os fantasmas de todas as mulheres assassinadas ao longo da História, e o filme termina.

Como eu disse antes, "o filme Anticristo é um desses que, malgrado possa vir a ser considerado `de profundo mau gosto` por uns tantos, parece ter sido realizado não apenas para testar a ousadia interpretativa de seus atores, mas também para remexer nossas cabeças e estômagos a pôr a questão sobre até que ponto somos, de fato, verdadeiros `humanos`", e até que ponto a natureza é, de fato, a obra de um Deus "bom".

Para constatar ou contestar isso, procure ler o aqui citado livro de Camille Paglia e ver também o filme. Ele lhe mostrará certamente muito mais do que pude lhe contar até aqui. Para mim, o livro e o filme são verdadeiras obras-primas de ousadias estético-filosóficas, dignas daqueles que, destemidos, com profunda honestidade e de estômagos vazios, buscam melhorar a verdadeira essência de seus seres, que, a rigor, ainda não tem passado de expressões do caos e da violência bestial da natureza que nos reveste.

Anexo: Trailer de Anticristo (2009)



quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A força de uma idéia curta

Rodrigo C. Vargas

Boa parte do mundo que conhecemos é um espaço mediado por sensações, e, portanto muitas vezes esse espaço se afasta da realidade em nome de algo dito como real. A propaganda utiliza esse tipo de manipulação constantemente, provocando não apenas a invocação de sensações, mas o nascimento. Um exemplo claro é o da propaganda de cerveja. Nas peças publicitárias não é a qualidade que diferencia o produto, mas o símbolo sexual que segura a garrafa. A publicidade infantil também explora esse caminho. É fácil perceber respondendo uma pergunta: o que está por trás da Barbie? O modelo de uma mulher em miniatura, ou proporções de um corpo atraente impossíveis de serem concretizadas?

O caso da estudante hostilizada por ir a faculdade numa mini-saia chama a atenção por vários motivos já elencados e discutidos incansavelmente nos últimos dias, mas um deles passou despercebido. Por que um vestido curto foi tão atacado, por jovens que consomem a exploração da sexualidade como produto? Está em todo lugar: nos jornais, revistas, na forma como se vestem, no que acreditam, falam, nos pratos mais saborosos, nos refrigerantes e principalmente nos programas preferidos de tevê. Numa noite do meio de semana, a novela de maior audiência do país mostrava duas cenas de sexo, com atores seminus. Antevendo aqueles que defendem o direito de escolha (direito do consumidor muitas vezes sobreposto ao direito do cidadão) eu mudei de canal algumas vezes. No segundo, um programa de auditório apresentava um desfile de lingerie. No terceiro, um filme americano recheado de palavrões, drogas, tiros e “prostitutas”. No quarta e último click, vídeo da Beyoncé.

O que me espanta é a possibilidade de todos aqueles jovens não fazerem parte desse ciclo de consumo em que a mulher é produto-objeto e que para tê-la é preciso estar bêbado, ter um carrão, ouvir músicas degradantes e usar um desodorante potente, afrodisíaco. Se a abstinência for confirmada, proponho posicionar os alunos como seres especiais, merecedores de um espaço no mais alto altar, e a faculdade seu templo.

Se for o contrario é preciso agir rápido. Muito mais curta do que a saia foi a forma como a faculdade lidou com a situação. Pensando muito mais no setor financeiro do que ético. Para o caixa da Uniban sai muito mais barato despejar uma aluna de saia curta na rua, do que centenas de alunos que não entendem, não se enxergam e não toleram ser contrariados, mal posicionados numa sociedade legitimada pelo consumo.

A mídia reproduz a lógica desse mundo e percorre o caminho já reconhecido em que esfola o objeto ao máximo, sem encostar no espírito da coisa. Essa discussão não pode ser encarada como defesa de apenas uma jovem, pois todos são vítimas. Ótima oportunidade para sugerir o mundo que queremos.

Roland Barthes, afinando a arte & refinando o discurso




Gilfrancisco Santos
gilfrancisco.santos@gmail.com
Jornalista

“Eis um estado muito sutil, quase insustentável, do discurso: a narratividade é desconstruída e a história permanece no entanto legível: nunca as duas margens da fenda foram mais nítidas e mais tênues, nunca o prazer foi melhor oferecido ao leitor – pelo menos se ele gosta das rupturas vigiadas, dos conformismos falsificados e das destruições indiretas. Ademais o êxito pode ser aqui reportado a um autor, junta-se-lhe o prazer do desempenho: a proeza é manter a mimesis da linguagem (a linguagem imitando-se a si própria), fonte de grandes prazeres, de uma maneira tão radicalmente ambígua (ambígua até a raiz) que o texto não tombe jamais sob a boa consciência (e a má fé) da paródia (do riso castrador, do “cômico que faz rir”).” Roland Barthes (O Prazer do Texto)

Grande intelectual progressista e mestre da linguagem, incomparável estimulador da mentalidade literária pelo modo como as pessoas tornam seu mundo intangível, é o autor de trabalhos marcadamente originais. Roland Barthes (1915-1980) é um desmistificador de imaginários, e sua ironia confirma esse poder quer seja como escritor, teórico ou professor, mas anda um pouco esquecido por seus admiradores. Apesar de sua obra ter sido traduzida para o português, Barthes ainda continua desconhecido entre nós, até mesmo por alguns professores universitários do Curso de Letras. A crítica nova defende a arte moderna como uma forma nova de ver o mundo, como a descoberta de que ao artista não interessa mais “imitar a natureza aristotelicamente”, propondo o entendimento do literário como ruptura e re-organização do texto. Ou seja a crítica nova, nada mais é do que a abertura da reflexão literária às grandes correntes do pensamento moderno (freudismo, marxismo, estruturalismo e existencialismo), tanto em sua fecundidade como em suas contradições. A explosão da crítica literária e a natureza da arte moderna são relativas, a ela exige uma crítica nova relativa, que faça explodir a antiga.

Em Roland Barthes, encontramos a elaboração de um modelo científico novo, uma abertura para uma outra estrutura, para um sistema diferente de criação que engloba o precedente, abrindo à crítica uma linguagem que será comum com os criadores, uma construção do modelo, dos modelos. O que mudou efetivamente com Barthes, é a confissão da inversão da criação, é a crítica nova começando pela leitura nova, como um novo meio, uma nova perspectiva de interpretação da literatura, que resultou numa revisão de diversos conceitos literários, como o divórcio entre crítica histórica e literária. Barthes sabia que toda literatura é simbólica e sem esforço de construção metodológica foi infatigável. Por isso recusava-se “ao conceito vulgar de realismo; restaurando o sentido originário da mimesis aristotélica, que confia à arte não a tarefa de reproduzir a natureza, de copiar fotograficamente, porém aquela outra mais digna, artística, de fazer a natureza aflorar em toda a sua plenitude de conferir ao real à sua do qual à sua dimensão catártica.”. Para ele, o objeto da crítica era muito diferente; não era o “mundo”, era um discurso, o discurso de um outro: a crítica é discurso sobre um discurso, é uma linguagem segunda, ou metalinguagem (como diriam os lógicos) que se exerce sobre uma linguagem primeira (ou linguagem-objeto). Daí resulta que a atividade crítica deve contar com dois tipos de relações: a relação da linguagem crítica com a linguagem do autor observado e a relação desta linguagem-objeto com o mundo.

Para Barthes, o trabalho do crítico não é de descobrir o significado secreto de uma obra – uma verdade do passado, mas constituir o inteligível do nosso tempo, o que equivale a desenvolver estruturas conceituais para lidar com fenômenos do passado e do presente. No que toca ao significado do engajamento político e histórico da linguagem literária, para ele não é simplesmente uma questão de conceito político ou de compromisso político da obra no ordenamento literário do mundo próprio de uma cultura. Por isso a crítica interpretativa deixa claras suas posições filosóficas ou ideológicas, enquanto que a crítica acadêmica afirma ser objetiva, alegando não ter ideologia. Pois seus argumentos teóricos, ela julga conhecer a natureza essencial da literatura aceitando ou rejeitando tudo que lhe foi oferecido para crítica ideologicamente comprometida. Finalizando, visto que a função do crítico não é descobrir e explicar o sentido de uma obra literária, mas descrever o funcionamento do sistema produtor de significação, não o que a obra significa, mas como a obra chega a significar. Tudo isso porque a produtividade do texto literário é a sua capacidade de produzir sentidos múltiplos e renováveis, que mudam de leitura a leitura. Tanto suas posições críticas quanto de seu estilo, cheio de imagens inesperadas, de termos técnicos e científicos criados por ele, misturavam dois gêneros que sempre tinham sido distintos: a crítica literária e a criação literária.

Tendo surgido como um crítico marxista, mas recusando-se o determinismo histórico e social, desde cedo atraiu as suspeitas da direita e da esquerda. A abertura de Barthes a contemporaneidade, caracteriza por reunir em sua crítica as bases já mencionadas, assumindo todas essas posições alternadamente ou ao mesmo tempo, permitindo-lhe uma constante reformulação de texto crítico, na busca de sua própria linguagem. Por tudo isso em nome de um purismo ideológico e indesejável o acusou de charlatanice, de inconstância, de infidelidade ou ainda de seguir a moda. O nome de Roland Barthes, continua no centro do debate contemporâneo das idéias, foi durante toda sua vida uma figura polêmica, desde a publicação do seu primeiro artigo em 1947, até seu último livro. Até 1965 Barthes era uma figura ativa embora marginal do cenário intelectual francês, somente no final dessa década é que ele estava firmando com uma eminência, ao lado de Claude Levi-Strauss, Michel Foucault e Jacques Lacan. Tornou-se fenômeno por razões contraditórias, graças a análises incisivas e irreverentes que fazia sobre a cultura francesa. Barthes trabalhou para criar um clima intelectual sintonizado com a transgressão, uma aventura com a linguagem, fornecendo inteligibilidade de forma crescente através dos textos, criando possibilidades de prazer, de entendimento e de renovação. Como criador Barthes reintroduz o tradicional com transgressão vanguardista, seus livros são traduzidos e amplamente lidos, escreveu inúmeros prefácios e introduções de textos modernos, de caráter experimental e clássico.

Apesar de ser considerado como o verdadeiro mestre da nova crítica francesa, Roland Barthes não foi de todo assimilado, continuou sendo alvo de ataques vindos dos mais variados pontos: os marxistas acusam de ser um aristocrata, um individualista, um alienado, enquanto que os estruturalistas e semiólogos cobram dele a ausência de rigor científico. Apóstolo da crítica aberta, convergente e múltipla, capaz de esclarecer as suas relações vivas, sua obra é um instrumento imprescindível de trabalho, tanto para os que se dedicam à Teoria da Literatura, quanto para os que estudam as comunicações e as ciências humanas em geral. A obra barthesiana não é uma obra radical da modernidade como muitos pensam, é uma obra sedutora de vertigens e nisso ela é vanguarda, que não pára nunca ao mesmo lugar. Sempre em movimento, aberta, numa evolução lógica, deslocando-se como tática extremamente coerente com suas convicções fundamentais.

Nascido no dia 12 de novembro de 1915 em Chemburgo, perto do Canal da Mancha, era um grego com os olhos abertos para descobrir as mitologias, lia Michelet e Racine, um francês que lia Platão, Plotino e Heráclito. Filho do tenente da Marinha Louis Barthes que morreu numa batalha naval durante a Primeira Guerra, quando Roland tinha apenas onze meses. Pertencente a uma família burguesa empobrecida e protestante, teve uma infância tranqüila em Boiana, no Sul da França, mas a partir de 1924 a família muda-se para Paris onde Barthes faz seus estudos secundários no Liceu Montaigne e no Liceu Louis-le-Grand, permanecendo até 1934 quando sofre lesão no pulmão esquerdo, sendo obrigado a descansar para tratamento em Bedous, nos Pirineus.

Licenciado em Letras Clássicas pela Sorbonne entre 1935/39, passa a ensinar no Liceu de Biarritz, Voltaire e Carnot, em Paris, além de participar como ator de um grupo de teatro antigo. Entre 1942/46 Barthes tem várias recaídas da tuberculose, internado em diversos Sanatórios, época em que se nutriu longamente de leituras e discussões marxistas, que deixaram nele uma marca definitiva. Finalmente restabelecido em 1948, partiu para Bucareste (Romênia) e Alexandria (Egito) como professor universitário, de 1952 a 1959 ele foi pesquisador do CNRS (Centro Nacional de Pesquisas Científicas), em lexicologia e sociologia, período em que publica três livros e vários artigos, especialmente sobre teatro e a partir de 1962, torna-se orientador de pesquisas na Escola Prática de Altos Estudos da Sorbonne. Publica mais alguns livros de crítica literária, entre os quais um livrinho sobre Racine em 1968, que provocam uma inesperada e intensa irritação em Raymond Picand, mestre poderoso e tradicionalista da velha universidade, provocando polêmica e sucessivos debates em torno da nova crítica, que tornaram Roland Barthes conhecido por um largo público.

Nos três ensaios desse livro Racine (O homem raciniano, Dizer Racine e História ou Literatura), Barthes compõe um exercício de crítica literária em si. Seja de maneira direta, quando o autor reivindica que a crítica universitária assume a psicologia em que se fundamenta, seja indiretamente, quando distingue Racine como uma das linguagens possíveis de nosso tempo. Mas é óbvio que do exercício de várias linguagens sobre a obra raciniana não se retira a “verdade” que supostamente ela deveria conter. Para Barthes, nenhuma delas é inocente, ao contrário, são sistemas de leituras, cujas regras devem ser enunciadas. O exercício de crítica literária, nesse sentido, coteja-se aos outros já feitos, confrontas regras e técnicas, estabelece as suas próprias e, finalmente – enquanto atividade de um indivíduo histórico, uma subjetividade de seu tempo, instaura uma subjetividade possível. Participa, portanto, da própria história da literatura. (1)

A partir desse incidente, suas aulas começam a atrair ouvintes cada vez mais numerosos, e constantemente sendo solicitado para realizar conferências, inclusive no exterior: Estados Unidos, Marrocos, Japão e China. Em 1977 Barthes toma posse da nova cadeira de Semiologia Literária no Collège de France, onde os mais ilustres professores franceses de todas as especialidades oferecem cursos livres e abertos ao grande público. Morto prematuramente em 26 de março de 1980, por atropelamento no momento em que saia do Collège, aos sessenta e cinco anos de idade, no auge da fama, Barthes soube como poucos interpretar as mitologias no nosso tempo, numa linguagem de alta voltagem poética e de múltiplos significados. Um mestre que criou discípulos, renovando, apontando novos cominhos, recuando, avançando, sempre criando, sempre usando sua inteligência crítica, um grande ensaísta que nunca se esqueceu que o ensaio é também literatura, um sedutor de todos os assuntos.

Roland Barthes é uma das figuras decisivas da literatura e da ensaística francesa do século, o principal expoente da nova crítica, seguindo na esteira do new criticism anglo americano e do formalismo russo e valendo-se do moderno instrumental da lingüística e da semiologia. Reabriu o processo de certos autores-chave que a velha crítica passara em julgado, ao mesmo tempo em que institui um enfoque adequado ao entendimento em profundidade das propostas inovadoras da literatura contemporânea. Sua volumosa e intrigante obra encontra-se traduzida para o português e alguns dos seus títulos mais importantes são: O Grau Zero da Escritura – 1953 (Reedição com Novos Ensaios Críticos em 1972). Rejeitado pela Gallimard, foi aceito pela Sevil graças a recomendações do crítico suíço Albert Béguim. Este livro é segundo Barthes “uma reflexão livre sobre a condição histórica da linguagem literária”.

A nova crítica só fora parida ao preço de um desastre radical do autor, colocara-se na vanguarda desse radicalismo, ao afirmar que o texto é, sobretudo signo. São duas importantes obras reunidas num só volume, onde Barthes desenvolve o conceito de escritura, complementar do de estilo e de língua, caracterizando-o como a “moral da linguagem” por via de que o escritor manifesta seu engajamento na sociedade em que vive. Em Novos Ensaios ele nos dá toda a sua medida de crítico ao reexaminar vários ensaios repletos de sugestões instigantes sobre as obras de Júlio Verne, Flauber, Proust e Chateaubriand. (2) Elemento de Semiologia – 1953 é o resultado de cursos ministrados por ele, de maneira sistemática e bem dosada com que apresenta a matéria, sua natureza didática. Dividido em quatro grandes partes, correspondentes a rubricas oriundas da Lingüística Estrutura, Barthes dá ao leitor uma instigante visão geral do campo de estudo da Semiologia e dos instrumentos teóricos, por via dos quais se podem realizar a pesquisa semiológica. (3)

Michelet – 1954 é um estudo sobre o ensaísta e historiador francês Jules Michelet (1798-1874), autor de alguns dos maiores clássicos da historiografia; figura tão sagrada quanto à de Vitor Hugo, onde Barthes traduz e desenvolve num universo de conotações, os principais temas, as obsessões, os mitos que compõe a volumosa (60 títulos) obra de Michelet. O livro trás ilustrações, comentários e uma seleção de textos do próprio Michelet no final de cada capítulo. Barthes analisa os temas adquirindo uma configuração particular, idiossincrática, patológica mesmo, na obra de Michelet, a procura do “único” do “pessoal” do seu objetivo que não é a “vida”, mas a existência de Michelet que o preocupa. E é isso o que Barthes, neste livro, mostra saber como ninguém. Para ele há um “lesbianismo” em Michelet, “Este seria obcecado pelo espetáculo da menstruação; invejaria a camareira, a mulher que compartilha os segredos da ama, que conhece seus fluxos, avalia-lhes a regularidade e a abundância”. Ele destaca ainda as antipatias, os nojos e as atrações físicas que Michelet deixa entrevar ao longo de seu gigantesco panorama histórico. As relações de Michelet com a corporalidade das coisas, com a fluência da água, com o calor da terra, com a fecundidade do sangue, são o tema de Barthes. Seja como for, o resultado é um milagre de percepção crítica, de originalidade e de estilo. (4)

Mitologias – 1957 reúne pouco mais de cinqüenta breves artigos inicialmente publicados (com apenas duas exceções) na revista mensal Letters Nouvelles a partir de 1952, é um livro contra os mitos; onde ele desmistifica a cultura social, deixando de ser crítico literário para ser um sociólogo crítico espontâneo. E demonstra claramente ao destruir os fetiches da burguesia francesa dos anos cinqüenta. Desmontando o mito da crítica irônica dos fatos, Barthes passa a analisá-lo como sistema semiológico, penetrando a partir daí, no campo reservado propriamente à ciência em que engajou e justifica autoridade, como comprova esta sua obra. Com base numa série de textos escritos sobre assuntos cotidianos e com o dito princípio de “realizar, por um lado, uma crítica ideológica da linguagem da cultura dita de massa, por outro uma primeira desmontagem semiológica dessa linguagem”. Roland Barthes consegue desmistificar os mitos em que vêm constituídos inúmeros aspectos de uma realidade constantemente mascarada pela imprensa, pelo cinema, pela arte e pelos demais veículos de comunicação, sempre a serviço de interesses ideológicos. (5) Crítica e Verdade – 1966 é uma coletânea dos ensaios críticos, alguns como Escritores e Escreventes, Literatura e Metalinguagem, O que é crítica, Literatura e Significação, etc. São trabalhos imprescindíveis para quem se preocupa com os problemas da literatura e se propõe encará-los com um enfoque realmente atual. Segundo o próprio autor, a crítica não é uma tradução: “sua tarefa não é obter um significado mais claro de outro mais obscuro, pois nada, acrescenta, poderia ser mais claro que as próprias obras”. Este livro já foi traduzido para numerosas línguas, o que comprova sua importância. (6)

Sade, Fourier, Loyola – 1971, três autores tratados como momentos singulares no universo da ficção sobressaem com a reverência devida aos logotetas, termo forjado para designar os fundadores de línguas. O reencontro dos autores: De Donatien-Alphonso Sade (1740-1813), Barthes gostava de lembrar os punhos de renda branca, teve como perseguidos implacável um tenente de polícia que colecionava perucas. De Charles Fourier (1772-1837), os vasos de flores entre os quais caiu morto, e tinha uma relação voluptuosa com quantificações: as 44 formas de se fazer patês, as 810 paixões próprias a cada um dos sexos ou as 278 opiniões díspares, na Roma Antiga. De Inácio de Loyola (1491-1556), os belos olhos espanhóis, úmidos voltados para o céu, em comoção mística. Neste livro, vamos encontrar um Barthes mais solto, menos permeado pela obsessão demonstrativa ainda presente no seu livro anterior S/Z (1970), onde faz uma análise semiológica da novela Sarrasine, do escritor francês Honoré de Balzac (1819-1850), cujo tema é a trágica paixão do escultor Sarrasine por Zambinella, artista lírico; e já ausente em O Prazer do Texto (1973). Inexistente a partir dessa etapa que tenha ocorrido uma capitulação diante de contendores passados. Barthes não mais precisa exorcizar modelos que a semiologia precisou descartar antes de poder emergir. Como sabemos Barthes em sua jornada intelectual percorreu diversas estações gaulesas obrigatórias: passou do existencialismo e do marxismo para a “psicanálise das substâncias” e as teorias lingüísticas da Saussure, e associou por último a “nova” antropologia de Claude Lévi – Strauss.(7)

O Prazer do Texto – 1973 é um livro onde o autor estabelece sua teoria do texto através de uma leitura dos desejos, funções e possibilidades que este oferece. Faz, assim, a distinção entre o texto de prazer e o texto de fruição, privilegiando o primeiro, por sua conotação eufórica, em detrimento do segundo, marcado pelo signo da perda, que coloca em crise a relação leitor – linguagem. Com este livro Barthes abandona a semiologia e assume o individual contra o universal do modelo estruturalista. É sem dúvida a primeira obra pós – estruturalista importante de Roland Barthes, que confirmam plenamente uma mudança na direção oposta e estética da dificuldade, ainda tão influente na sua opção de modelos literários, quando publicado. O Prazer do Texto nega tanto à cultura quanto à sua destruição o privilégio de albergar o erótico. (8) Roland Barthes por Roland Barthes – 1975 título antológico que não deve induzir o leitor à errônea suposição de que se trate de uma autobiografia – civil, sentimental ou intelectual, nem tampouco de um exercício de auto-análise ou diário confessional. Essa informalidade do texto faculta ao leitor ter de Barthes, uma visão privilegiada, capaz de lançar novas luzes sobre o projeto intelectual desse que é, um dos mais criativos teóricos da literatura e da semiologia que a modernidade conhece. (9)

Fragmentos de um discurso amoroso – 1977 sustentam que hoje “não é mais o sexual que é indecente, e sim o sentimental – censurado em nome do que é finalmente apenas outra moralidade”. Este volume continua sendo um best–seller, dissertação sobre a linguagem própria ao amor – paixão sob o pretexto de uma leitura do amor infeliz de Werther de Goethe (1749-1832), mobiliza modelos críticos que ele próprio ajudou a forjar. O livro contém um ataque contra a depreciação ou rejeição do amor com tal em três fortes sistemas de crença: o cristianismo, a psicanálise e o marxismo. Ele também ataca as éticas amorosas socráticas e românticas, porque ambas apreciam a sublimação, ao passo que ele o maior mérito do amor é o “desaparecimento de toda finalidade”. (10) Aula – 1978 é o texto da aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária lido por Barthes no Collége de France em 7 de janeiro de 1977. Trata–se de um dos textos mais intensos e mais radicais do autor, para ele só a literatura pode fazer “ouvir a língua fora do poder”, por ser o lugar de eleição “das forças de liberdade”, quando mais não fosse pelo exercício daquela “função utópica” que ela sempre escolheu exercer. (11) Incidentes, é um diário íntimo em que ele se revela inteiramente, sem pudores ou rancor. Neste livro Barthes enfrenta elegantemente o duelo com o próprio eu, interrogando – se às vezes aflitivamente outras com lucidez incomum, sobre seu corpo, o erotismo, suas preferências sexuais e frustrações. (12)

O Óbvio e o Obtuso – 1982, obra póstuma que reuni vinte dois textos anteriormente publicados em revistas e catálogos e mais dois ainda inéditos, constitui na prática um novo volume de “ensaios críticos”, essencialmente centrados naquilo a que se poderá chamar estética do visível: a fotografia, o cinema, o teatro e a pintura, mas também a música tem aqui lugar de relevo, ocupando uma parte substancial do livro. Quanto ao título, foi escolhido com base no ensaio sobre Eisenstein (1898-1958).

Esta publicação é a reunião dos seus ensaios críticos dispersos, que apresentam reflexões sobre os sentidos dos signos, os estudos sobre a escritura do visível. Barthes parte de um questionamento sobre o conteúdo da mensagem fotográfica discorre com originalidade sobre o que ela apresenta em termos de conotação e denotação e chega aos conceitos de óbvio e obtuso, a partir da análise de fotogramas de filmes de Serguei Eisenstein. Em seguida, no ensaio O Espírito da Lente, tece elogios ao livro de Massim, que para ele é uma bela enciclopédia de informações e imagens, e partindo das observações sobre a letra ocidental, tomada em seu contexto publicitário ou pictório e em sua vocação de metamorfose figurativa, chega ao Erté ou Ao Pé da Letra. Ainda nesse livro, são de especial interesse, também seus comentários sobre o universo simbólico presente nos trabalhos de Arcimbaldo, que segundo o autor, transforma a pintura numa verdadeira língua: nela tudo significa, tudo é metáfora, ou seja “Arcimbaldo passa, assim, do jogo à grande retórica à magia, da magia à sabedoria”. Na Segunda parte, O Corpo da Música, Barthes comenta a diferença entre “ouvir” e “escutar”, para concluir, a partir das análises de Boucourechliev sobre a música de Beethoven, que está, para ser captada abstrata e sensualmente, assim como a leitura do texto moderno precisa ser operada, atraída para uma práxis desconhecida. (13)

Rumor da Língua – nos permite entrar em contato com vários de seus artigos escritos de 1964 (ano da publicação dos primeiros ensaios), até 1980, ano de sua morte. Nesse livro, o pensamento de Barthes se manifesta em discussões sobre Proust e Brecht, a linguagem do amor e da crítica literária, a definição do termo texto e os prazeres que ele evoca. Uma importante reunião de seus últimos estudos a respeito de suas maiores preocupações: a linguagem, a escrita e os signos por ela utilizados. Dividido em sete temas, ilustra a reflexão plural efetuada por ele, a qual abrange não apenas os sabores do saber de sua época – semiologia, estética, literatura, mas também os homens que os praticam: escritor, intelectual, o jovem pesquisador e o professor. Ou seja, o autor se coloca na posição de quem faz alguma coisa e não de quem fala sobre alguma coisa. (14)

Prefaciando sua exposição dos códigos e significações da novela de Balzac, ele afirma: “Interpretar um texto não é conferir a ele um sentido (mais ou menos plausível, mais ou menos livre), mas, pelo contrário, apreciar a pluralidade que o constitui”. Neste sentido Barthes consegue personificar o texto: é o texto que seduz, que deseja. Enquanto outros críticos empenham – se em sondar os segredos simbólicos ou ideológicos de uma obra, Barthes demonstra uma preocupação íntima com a manipulação verbal do suspense e com detalhes tão prosaicos quanto a cronologia da ficção. Portanto em S/Z o texto analisado, no esforço de manter seu suspense contorce como um criminoso, pois Barthes insiste através de seu método de avançar aos solavancos por entre o que é, afinal, uma narrativa melodramática e romântica. Por tudo isso S/Z é um livro sobre a leitura praticamente ilegível, um lento rastreamento em busca do prazer, enquanto texto é apenas um flerte, mas ele nos ensina a ver múltiplas camadas de interações leitor – autor pairando sobre cada página. (15)

Roland Barthes é polemista, um dos pioneiros no estudo da Semiologia, diferenciou–se dos demais semiólogos estruturalistas seguidores de Saussure, por uma particularidade: à noção acadêmica de signo, ele acrescenta a noção de sujeito. Saboroso por suas mudanças inesperadas em seu fraseado, figura contraditória, um crítico adversário, com uma intrigada gama de teorias e posições que devemos elucidar, foi ele um experimentador público. Sua influência estar vinculada aos vários projetos que esboçou e explorou, influindo de modo decisivo na mudança da forma como pensamos, a respeito de vários fenômenos culturais: da literatura, da moda e da luta livre à propaganda, passando pelas noções do eu, de história e de natureza. Roland Barthes escreveu sobre tudo, a ele nada escapa (avesso à sexualidade e a uniformidade cultural), queria ser seduzido por um tema, pois toda sua obra imensamente complexa é uma tentativa de descrever a si próprio. O produto final do engenhoso discurso crítico de Barthes nos leva a mudança de perspectiva que inclui outra: do enfoque de todo um corpus textual completo, na busca de sua matriz gerativa, por isso passou à leitura mais detalhada de textos particulares.

Barthes é indiscutivelmente o intelectual mais carismático e imponente do nosso século. Assim como Walter Benjamin, que revelou um exemplo extraordinário de crítico cultural literário durante a primeira metade do século. Para ambos a literatura era uma fonte de “inteligibilidade para nossa época”; ambos foram inimigos declarados da burguesia, ambos grandes escritores, embora seja difícil encontrar equivalentes em Benjamin, pois não seguiu a tendência formalista da estética modernista, manteve uma consciência aguda do contexto social dos textos, nunca separando a literatura do seu revestimento histórico. Barthes foi, de fato, um bibliófilo requintado, um garimpeiro de delicadezas, um intelectual brilhante, que publicou em vida vinte livros, dois outros de edição póstuma e uma centena de artigos. Sua morte coincide com a crise dos modismos franceses cujos círculos integraram.

NOTAS

1. Roland Barthes – Racine. Porto Alegre, L & PM Editores, trad. Antonio Carlos Viana, 1987. (Série Especial).
2. ____________ - O Grau Zero da Escritura, São Paulo, Editora Cultrix, trad. Heloysa de Lima Dantas/Anne Arnichand e Álvaro Lorencini, 3 ª. Edição, 1974.
3. ______________ - Elemento de Semiologia, São Paulo, Editora Cultrix, trad. Izidoro Blikstein, 1979.
4. ______________ - Michelet ( par lui – même ), São Paulo, Companhia das Letras, trad. Paulo Neves, 1991.
5. ______________ - Mitologias, São Paulo, Editora Difel, trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza, 6 ª. Edição, 1982.
6. ______________ - Críticas e Verdades, São Paulo, Editora Perspectiva, trad. Leyla Perrone – Moisés, 1970 ( Col. Debates n º 24 ).
7. ______________ - Sade, Fourier, Loyola, São Paulo, Editora Brasiliense/Secretaria de Estado da Cultura, trad. Mario Laranjeira, 1990.
8. ______________ - O Prazer do Texto, São Paulo, Editora Perspectiva, trad. Jacó Guinsburg, 1973 ( Col. Signos n º 02).
9. ______________ - Roland Barthes por Roland Barthes, São Paulo, Editora Cultrix, trad. Leyla Perrone – Moisés, 1977.
10. ______________ - Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves, trad. Hortênsia dos Santos, 9 ª edição, 1989.
11. ______________ - Aula, São Paulo, Editora Cultrix, trad. Leyla Perrone – Moisés, 1980.
12. ______________ - Incidentes, Rio de Janeiro, Editora Guanabara, trad. Júlio Castañon Guimarães, 1988.
13. ______________ - O Óbvio e o Obtuso, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, trad. Léa Novaes, 1990.
14. ______________ - Rumo da Língua, São Paulo, Editora Brasiliense, trad. Mario Laranjeira, 1988.
15. ______________ - S/Z, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, trad. Léa Novaes, 1992.