domingo, 28 de novembro de 2010

Érico Veríssimo – do mundo ordenado dos EUA à vertigem do México




Ademir Demarchi
revistababel@uol.com.br
Doutor em literatura brasileira, escritor

Érico Veríssimo notabilizou-se por conceber a região do sul do Brasil literariamente, de forma inédita e atraente, transformando em saga a vida dos gaúchos e dando colorido à vida da capital de província, a Porto Alegre dos anos 1930 aos 40. Mas sua obra registra também que sua imaginação transcendia aquela região do sul do Brasil e a ampliava para uma idéia continental que incluía os países de fala hispânica e sua cultura. Essa região ampliada aparece em sua obra por aquilo que a América do Sul apresentava de mais grotesco - e assemelhado com o Brasil - como a ditadura militar e a repressão política, presentes em Incidente em Antares, em que, num divertido trecho, sete mortos vêm à praça pública denunciar que a podridão não é uma característica deles, mas dos vivos e governantes, estabelecendo um paralelo com o país da década de 1960, governado por militares. Outro desses locais é a República de Sacramento, país imaginário em Nova Granada, que seria uma ilha fictícia do Caribe, governada despoticamente por um ditador militar que se apóia na oligarquia rural e empresas multinacionais norte-americanas.

Trata-se de uma literatura muitas vezes alegórica, que se utiliza da criação de um local imaginário e distante como recurso para falar da realidade de um Brasil sob censura, ao mesmo tempo em que expressa aspecto geopolítico, de um pensamento e condição sul-americanos, fundados por contraposição à forte presença política e cultural norte-americana na região.

Em México – História duma viagem, de 1957, essa condição de sul-americano aparece com todas as suas vicissitudes e contradições. Lemos nesse livro o premente desejo do escritor de aprofundar o conhecimento real dessa América do Sul idealizada nos textos, assim como o registro de sua condição de fora-de-lugar, despaizado, tanto no México que busca com encanto e conhece em suas misérias, quanto nos Estados Unidos da América, em que gosta do conforto mas que o abala por anestesiar e impedir de pensar.

Ordem e “bagunça”

Nos EUA o que encanta um sul-americano é o que lhe soa como falta em seu país: a organização, a economia pujante, a tecnologia expressa em automóveis, edifícios e indústrias, a propaganda e o consumo. Sobre os EUA o escritor nos diz: “amo este país, gosto de Washington. É um burgo encantador, um plácido jardim de turistas, diplomatas e funcionários públicos – correct, charmant et ridicule. Um modelo de organização, um primor de urbanismo. Tudo aqui funciona direitinho, ‘a tempo e a hora’, como dizia Dona Maurícia, minha falecida avó”.

No entanto, essa ordem anglo-saxônica que encanta num primeiro momento por ser o avesso da “bagunça” sul-americana oriunda da colonização européia, espanhola ou portuguesa, breve enfastia. Assim, logo a rotina se transforma em algo maçante pois o escritor, obrigado a viver numa “alegria de rotariano”, se vê sujeito a participar de almoços semanais no Clube dos Alegres Ursos, em que os homens se reúnem com “grotescos chapéus de papel” nas cabeças para contar anedotas e ouvir conferências - no caso de Érico como palestrista, sobre a cultura brasileira, cuja receptividade é frustrante, sobre o que ele nos diz que “Esperei que perguntassem como vivem os brasileiros, como amam, dançam, cantam, sonham e morrem... Mas qual! Queriam que eu lhes desse as cifras da exportação de café, o rendimento per capita da população, o índice de precipitação pluvial”.

Há um sentimento de ridículo nisso tudo que estimula o senso de humor irônico, constante, que perpassa o livro e nos dá um especial prazer de leitura. Assim responde Érico, expondo a impropriedade de alguém que se baba e ao mesmo tempo se preocupa com a economia: “O cavalheiro que estava a meu lado, os lábios lambuzados de sorvete de baunilha, quis saber que está fazendo nosso governo para combater a erosão do pátrio solo. Respondi que Villa-Lobos havia escrito uma sinfonia intitulada Erosão e que todos nós esperávamos que isso resolvesse definitivamente o problema. E não é que o homem levou a resposta a sério e quis pormenores técnicos?”.

Mas há mais nesse país pródigo. Aos ursos somam-se as velhotas “limpas, alegres, enfeitadinhas, decentes, gentis, sedentas de informação e animadas pelos mais puros sentimentos cívicos. Pertencem a mil clubes, mil comissões, mil fraternidades. Fazem coisas, organizam coisas, querem saber coisas. Colaboro com elas, faço-lhes conferências sobre todos os assuntos, inclusive e principalmente sobre os que não conheço. Respondo às suas perguntas com paciência filial. Mas elas me sufocam, Bill, ai, elas me enlouquecem! Vivam as nossas velhas brasileiras! Salve Dona Maurícia com seu xale xadrez, suas chinelas bordadas, seus bolinhos de polvilho, seus guardanapos de croché, sua asma e seus silêncios! Nunca pertenceu a um clube. Nunca foi a uma conferência, benza-a Deus!”

O México mágico

A viagem ao México, assim, nasce do esgotamento de viver nos EUA, sobre o qual o escritor nos confessa: “estou cansado deste mundo lógico, anseio por voltar, nem que seja por poucos dias, a um mundo mágico. Sinto saudade da desordem latino-americana, das imagens, sons e cheiros de nosso mundinho em que o relógio é apenas um elemento decorativo e o tempo, assunto de poesia. Dêem-me o México, o mágico México, o absurdo México!”

Querer o absurdo em lugar do ridículo de tornar-se um urso norte-americano e vestir chapéu de papel não livrará o escritor da pecha, parecendo já uma condição desconfortável, pois em meio a um descarrilhamento de trem, na viagem, um homem alourado o confunde com um norte-americano e Érico confessa que explicar o contrário “seria inútil, pois minha mulher tem olhos azuis e está a bater fotografias desesperadamente”.

Aquele México mágico desejado, assim, é o que o escritor conheceu há pouco mais de um ano antes dessa nova viagem, de onde voltou “perturbado com o pouco que vi e o muito que adivinhei”, e do qual restou um gosto que não é doce, nem amargo, mas “esquisito, raro, diferente, mistura de tortilla, cigarro de palha, chile e sangue. Um gosto seco, às vezes com certa aspereza de terra desértica, não raro com inesperadas e perecíveis doçuras de fruto tropical”, que sumaria como sendo país de um “gosto pardo” e de “rústica tragédia”.

A viagem ao México, portanto, logo permitirá ao escritor trocar os funcionários americanos “louros, magros e joviais” pelos mexicanos “gordos, cabeludos e taciturnos”, ou, já no trem, cabineiros norte-americanos “gordos, luzidios e sorridentes negrões” por “sujeito magro e calvo, de face cadavérica e barba de dois dias”, numa paisagem de “fascinação quase mórbida” – “Jamais vi tamanha desolação” - que lhe dá sensação de déjà vu por lembrar o nordeste brasileiro, composta por índios e índias descalços, “retacos, feios, sujos e tristes” que ficam parados nas ruas e erguem para o trem “suas enigmáticas caras cor de terra”.

Aquele México mágico rapidamente se transforma numa ilusão demolida pela onipresença de mendigos, foguetes, bilhetes de loteria, “verdejantes ilhas de esterco”, auréolas de moscas, manchas escuras num muro que remetem a memória diretamente ao “sangue dos fuzilados de antigas revoluções”, saudades da “alvura das toalhas dos carros-restaurantes americanos, do brilho argentino de seus talheres, da limpa rigidez dos geladinhos caracóis de manteiga” que, neste novo lugar, tem “consistência de pomada”.

Disso para a ocorrência de um descarrilhamento do trem é um passo e logo o escritor se põe a nos descrever a passividade dos índios mexicanos em meio ao desastre – “No soy autoridad, señor” – cada um cuidando da sua vida, como se vivessem “num mundo à parte do nosso, como peixes num aquário a mirar-nos furtivamente com seus olhos imóveis, num silêncio líquido e oblíquo” tal como no conto “Axolote”, de Julio Cortazar. O escritor então é tomado por sentimento humanitário, ou tipicamente populista que acometia os intelectuais de esquerda – “São homens, são teus irmãos, digo para mim mesmo com a melhor intenção franciscana. Quero amá-los. Quero ao menos tolerá-los. Dou disfarçadamente um peso a um menino que ao passar nos lança um olhar comprido. Ele apanha a nota indiferente, sob o olhar ainda mais indiferente da mãe”. A atitude resultaria inútil se não fossem as reflexões que suscitam, pois o menino “apanha a nota indiferente, sob o olhar ainda mais indiferente da mãe. Por que fiz isso? Sentimento de culpa? Será que pretendo com esse peso penitenciar-me de ser um ‘pequeno-burguês sentimental’, como diria Jorge Amado, de ter o que tenho, de não haver nascido índio numa casa de adobe no deserto de Chihuahua?”

O estranhamento se aprofunda na “vergonha de ser turista”, de considera “sacrílego comer neste vagão quando no outro há feridos que sofrem, as peles e as vestes ainda manchadas de sangue”.

Nesse ritmo de tensão Érico Veríssimo vai discorrendo sobre o México, indo desse tenso contato com sua população à descrição de aspectos históricos antigos, como se estivesse em pleno momento que descreve, ou momentos antes, por exemplo, do grande massacre a que os astecas foram submetidos pelos espanhóis. Isso mantém o tom quente da narrativa e enfatiza os contrastes dessa cultura que ele descobre, sendo comum incorporar ao texto bizarrias como a de que os astecas criavam cães para comer, entre tantas outras, o que distancia o México cada vez mais daquela cultura ordenada dos EUA e também da sua própria cultura.

Sínteses: mestiçagem e diversão

É preciso, porém, buscar saídas dessa contraposição de culturas, buscar um equilíbrio entre o excesso da ordenação norte-americana e o caos da vida sul-americana. Érico Veríssimo, assim, tenta encontrar uma síntese baseada na mescla, numa mestiçagem que não seja o falseamento da incorporação de vestimentas como os macacões de zuarte para jogar basebol pelos meninos com “caras cor de terra”, de nítida influência texana. Ele busca antes uma solução física, como no exemplo de uma então avançada câmara fotográfica da qual ele e a mulher levam para a viagem e da qual lêem superficialmente a “bula”, preferindo confiar no olho a serem os “metódicos, os cautelosos, e – por que não dizer? – os sensatos” que usam fotômetros para medir a intensidade da luz ambiente adequada para as fotografias. Assim, tem-se o que ele diz ser uma “reflexão psico-fisiológica” que traduz a buscada mestiçagem, encontrada num entrelugar que não está nem na máquina, nem no cérebro tido ele mesmo como uma máquina, mas no corpo como um todo, que se apropria de ambos baseado na intuição em vez de restringir-se na racionalidade, não para conquistar e transformar o mundo em técnica, trabalho mecânico e em dados econômicos mas para fruí-lo e usá-lo como fonte de diversão e prazer: “O latino usa sempre o corpo em situações em que o anglo-saxão preferirá usar uma de suas muitas engenhocas. Resultado: eles fazem as coisas melhor, mas nós nos divertimos mais”.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

McCartney: reflexos

Rodrigo C. Vargas

A música com os Beatles assumiu o papel que antes pertencia à literatura, o de liderar os miseráveis. Até aquele ponto, a música transitava entre duas possibilidades: pequenos grupos primitivos e a elite wagneriana. O rock feito por aqueles garotos mudou o percurso dos mitos. Era possível ser um. Mesmo assim, algo permaneceu. O fenômeno da cópia dos cabelos compridos e dos terninhos aconteceu também com os jovens europeus do ano de 1774. Inspirados na obra Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, vestiam-se como a personagem do livro, calça e colete amarelos com botões de metal e jaqueta azul. A arte sempre influenciou a vida das pessoas.

Essa noite um evento aproximou algo que para mim nunca existiu. Acabei de ver pela televisão Paul McCartney em São Paulo e suas letras me convenceram que não há como medir gênios, como também não há como não compará-los. Arrisco. McCartney compôs provavelmente as letras mais tocantes do último século. Sua sensibilidade lembra o poeta francês Arthur Rimbaud. Apesar de estarem separados pelos estilos e por um século, os dois se encontram incontáveis vezes naquilo que fizeram ou continuam fazendo de melhor, surpreender a memória afetiva de muitos.

Rimbaud foi abandonado pelo pai quando tinha seis anos. McCartney perdeu a mãe aos 14. Aos 13 anos Arthur publicou seus primeiros versos e já era considerado um poeta. Aos 17 Paul já era um Beatle. Verlaine atirou duas vezes. Lennon foi assassinado. Fatos que margearam suas experiências externas, obras incríveis.

Vênus Anadiômene – Arthur Rimbaud

Como de um verde túmulo em latão o vulto
De uma mulher, cabelos brunos empastados,
De uma velha banheira emerge, lento e estulto,
Com deficits bastantes mal dissimulados;

Do colo graxo e gris saltam as omoplatas
Amplas, o dorso curto que entra e sai no ar;
Sob a pele a gordura cai em folhas chatas,
E o redondo dos rins como a querer voar...

O dorso é avermelhado e em tudo há um sabor
Estranhamente horrível; notam-se, a rigor,
Particularidades que demandam lupa...

Nos rins dois nomes só gravados: CLARA VÊNUS
- E todo o corpo move e estende a ampla garupa
Bela horrorosamente, uma úlcera no ânus.


Eleanor Rigby – Paul MacCartney

Eleanor Rigby
Apanha o arroz na igreja onde um casamento foi feito
Vive em um sonho
Espera na janela
Vestindo o rosto que ela guarda em um jarro perto da porta
Para quem é isso?

Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas vem?
Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas são?

Padre McKenzie
Escrevendo as palavras de um sermão que ninguém ouvirá
Ninguém chega perto
Olha para seu trabalho
Remendando sua meias à noite quando não há ninguém lá
O que ele protege?

Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas vem?
Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas são?

Não são apenas palavras. Dizem algo que por mais que eu reconheça não fazer parte de mim, está lá. Remoendo e cuspindo pequenas lágrimas invisíveis aos olhares, cortantes. Homens maiores que seus defeitos e menores que suas qualidades. A única diferença entre eles é o fim. Rimbaud desistiu da literatura e morreu ainda jovem, aos 37. McCartney, bem, let it be.

Existe uma estética homossexual?

José Castello
j.castello@uol.com.br
Escritor e jornalista

A comparação entre uma série de obras literárias, às quais se soma o inédito “O Pombo-Torcaz”, de André Gide, põe em dúvida o argumento

Assim como a homossexualidade não existe — o "homossexual" é só um personagem inventado pela psiquiatria do século 19 —, é no mínimo temerário falar de uma estética homossexual. Se existem apenas as relações homoeróticas, e não os personagens imaginários que o senso comum arrola no clichê do "terceiro sexo", preferir as relações com o mesmo sexo não define ninguém. Essa impossibilidade se reafirma na leitura de O Pombo-Torcaz, delicado conto que o francês André Gide escreveu no verão 1907 e que só reapareceu um século depois. No texto, publicado agora no Brasil, Gide conta a noite memorável que passou com um jovem chamado Ferdinand Pouzac, em Bagnols-de-Grenade, perto de Toulouse. O "pombo" do título é Ferdinand, apelidado assim por "arrulhar" quando fazia amor.

Com sua ética protestante e seus conflitos interiores, André Gide (1869-1951) se esforçou para produzir uma explicação "natural" para a homossexualidade, da qual nunca afastou seus ideais religiosos. Em um livro como Corydon (1924), ele apresenta a pederastia (no sentido grego, de amor entre um homem mais velho e um jovem) como um ramo da pedagogia e a homossexualidade como um fenômeno biológico. O esforço para tornar aceitável o amor homossexual levou-o a fundar uma ética naturalista e biológica, que percorre toda a sua escrita. Ética segundo a qual o amor (seja ele qual for) é, antes de tudo, uma manifestação da natureza. Ética que bane de cena o desejo e a subjetividade, e que está presente também no conto que agora se publica.

Menos dogmático que Gide, o furioso Oscar Wilde (1854-1900) lustrou sua vida sexual com o verniz do desafio, do vício e da decadência. Ao mostrar quão efêmera é a beleza, um relato como O Retrato de Dorian Gray reafirma um vínculo entre a homossexualidade e o "estilo" — seja ele nobre ou doentio. O amor homossexual não passaria, nesse caso, de uma afetação, como o esnobismo ou o pedantismo — que estão sempre presentes nos escritos do inglês. Em carta ao amigo Robert Ross, escrita dois anos antes de morrer, ele se arrepende dessa posição. Mas, em vez de avançar rumo à aceitação de si, recua. Escreve: "Eu teria alterado a minha vida se admitisse que o amor uranista era ignóbil". De fato, uma sombra negra percorre toda a obra de Wilde — sinal do vínculo entre a homossexualidade e o vício, que nunca conseguiu desfazer.

Efeitos e estéticas muito diferentes foram obtidos no século 20 pelos autores da literatura beat americana, sobretudo por William Burroughs (1914-1997), autor de Almoço Nu, livro inspirado na temporada de sexo livre que passou em Tânger, no Marrocos. Ao lado de poetas como Allen Ginsberg e Jack Kerouac, Burroughs trata a homossexualidade não como uma questão biológica, tampouco como uma afetação, mas sim como uma perigosa e excitante viagem interior. Politizada pela contracultura, essa viagem se tornou não só marginal, mas contestadora. Por isso, em suas mãos, a estética homossexual assume tons violentos, de grande força política, atitude que o leva para uma espécie de "pansexualismo".

Antes dele, um autor como Marcel Proust (1871-1922) via as práticas homossexuais como uma espécie de maldição. Algo que, de alguma forma, se ligava à asma que, desde cedo, o infernizou. Em uma reversão, Proust fez da homossexualidade uma versão mundana da elevação espiritual, que ele encenou com sua vida reclusa. Repetiu, de certa forma, a herança dos poetas franceses Arthur Rimbaud (1854-1891) e Paul Verlaine (1844-1896), para quem a paixão homossexual que os uniu (e os separou) foi, sempre, um trafegar à beira do abismo; posição que se reflete na poesia que escreveram.

UMA FORMA DE VIOLÊNCIA


No século 20, um autor como o brasileiro Lúcio Cardoso (1913-1968) tratou a homossexualidade como um doloroso atestado de incompreensão. "Médicos, professores do futuro; exponho-me nu aos vossos olhos de certeza", escreveu, sintetizando sua posição de rejeitado. Místico e autodestrutivo, Cardoso via a homossexualidade não como uma realidade biológica, tampouco como uma ética; nem como afetação, ou uma "viagem"; mas como uma forma de violência.

Visão que o aproxima de dois outros artistas do mesmo século, o escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) e o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Para Arenas, a homossexualidade — vivida sempre às escuras, nos parques, nas vielas — se torna uma bandeira política contra Fidel Castro. Nas mãos de Pasolini, ela se transforma em uma afirmação de desejos arcaicos (e "populares") e de uma verdade que nem sempre é saborosa. Ao morrer assassinado brutalmente em uma praia de Ostia, com o rosto desfigurado e a postura de um santo, Pasolini, de alguma forma, fechou uma estética de revolta e da luta, na qual o homossexual aparece como uma espécie de arauto do futuro.

Hoje, nas telenovelas, a estética homossexual se afasta também da doença (o que é positivo), mas se aproxima do modismo — o que, de fato, corresponde à forte expansão da indústria gay. As narrativas homossexuais ganham no vídeo, assim, um ar um tanto chique — como uma nova grife. Muitas estéticas são construídas em torno das relações homoeróticas; todas tentam enquadrar e disciplinar a esfera do desejo, que, em vez disso, é sempre singular e ingovernável.

Supor que o amor homossexual é sempre o mesmo é tão ingênuo quanto imaginar que as relações heterossexuais, só porque se repetem entre parceiros de sexos opostos, se equivalem. Todos sabemos que, sob a estética oficial do vestido de noiva, do casal perfeito e dos filhos saudáveis, esconde-se uma infinidade de variações do amor. E que é nessas particularidades, nesses desvios do singular, que as relações amorosas são sempre vividas.

Por isso — e o livro de Gide é só mais uma prova dessa impossibilidade — se torna cada vez mais difícil pensar em uma estética homossexual. Os amores, homossexuais ou heterossexuais, não comportam modelos. É na singularidade e na invenção, e não na repetição de fórmulas eróticas e estéticas, que eles revelam sua potência.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

René Clair mudo, mas nem tanto




João Batista de Brito
jbbb@openline.com.br
Crítico de cinema

Se o primeiro filme, Paris adormecida (Paris qui dort, 1923) é só um registro histórico, em compensação, o segundo, Entr’acte (1924) constitui um marco da arte revolucionária da época e é uma eterna referência na história das artes visuais do Século XX.

Parisiense de nascimento e intelectual refinado, Clair foi ligado às vanguardas artísticas dos anos vinte e sua obra, pelo menos a muda, reflete toda a irrequieta efervescência de então, da qual Entr’acte é uma espécie de emblema.

Tudo começou quando o artista performático Francis Picabia e o músico vanguardista Erik Satie resolveram montar um balé que tivesse um entremeio cinematográfico e convidaram Clair para participar do projeto. Ousado, mal comportado e esteticamente chocante, o balé “Relâche” possuía esse interlúdio em que era projetado o Entr’acte de Clair, cuja exibição era acompanhada, naturalmente, pela trilha já minimalista de Satie, composta exclusivamente para ele.

O resultado todo, digo, balé mais filme, era, segundo consta, algo meio indefinido e confuso, com cheiro misto de impressionismo, dadaísmo e surrealismo, e recebeu do público presente vaias e aplausos. Do balé só restaram fotos, mas o filme está aí, para ser visto e discutido como um precioso documento de uma fase artística em que o experimento era tudo.

O filme não tem uma estória, ou sequer uma lógica. Imagens surreais de coisas sem aparente relação semântica, sucedem-se durante algum tempo, até que um homem que atira num alvo estranho é atingido por um outro atirador: morre e, aparentemente, tem-se, a partir daí, o percurso do seu velório, ocasião em que o féretro, sozinho, desembesta pelas ruas da cidade, e deixa todo mundo para trás. Mais tarde, num local ermo, se encontrará o ataúde, do qual pula, saltitante, o cadáver redivivo e, com um gesto mágico, faz todos desaparecerem, inclusive ele mesmo. E o filme termina.

Como dito, para o público atual um filme desses parece só uma extravagância de artista desvairado, agora, de minha parte, fico pensando se para os espectadores da época, 1924, o filme não deve ter parecido um pouco menos absurdo.

É que, em que pese aos seus compromissos com o vanguardismo vigente, Entr’acte lembra muito o cinema primitivo do século XIX (sim, dezenove mesmo!) quando qualquer bailarina rodopiante, ou qualquer homem de cabeça de borracha inflável era o suficiente para divertir os freqüentadores das feiras livres, fascinados com a mobilidade da fotografia. Eram filmes curtos, sem estórias e sem lógicas, para os quais os pesquisadores de hoje cunhariam a denominação de “cinema de mostração”, em contraste com o cinema de narração posteriormente consagrado.

No que diz respeito à carreira cinematográfica de René Clair, o engraçado é que ele, apesar da importância de Entr’acte, não se consagraria, na história do cinema universal, como vanguardista, mas ao contrário, como acadêmico: com o passar dos fotogramas, seus filmes, sobretudo os falados, foram ficando cada vez mais convencionais, ao ponto de apagar – junto à opinião pública -- o seu passado experimental.

Tanto é assim que no final de sua carreira, anos cinqüenta e sessenta, Clair, já devidamente empossado na pomposa e solene Academia Francesa, seria dado pelos jovens cineastas que faziam a revolucionária Nouvelle Vague (Truffaut, Chabrol, Godard e outros articulistas da revista Cahiers du cinéma) como um burocrático realizador de “cinemão ultrapassado”.

Eu, que guardo uma cara lembrança do belo e comovente Por ternura também se mata (Porte de Lilas, 1957) não concordo com a avaliação, e acho que René Clair foi talentoso no experimento e na convenção, mas, essa é outra estória, para ser contada em outra ocasião.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Ali boma aye




Rodrigo C. Vargas

Ontem assisti o filme Quando Erámos Reis, que narra a história da luta entre os boxeadores Muhammad Ali e George Foreman, no Zaire, em 1974. O que mais me marcou não foi a batalha no ringue, mas fora. Ali era o tipo de atleta que não existe mais. Um líder político, um homem preocupado com o seu povo e a sua cutura. Lá pelas tantas ela falava sobre música e como a música negra americana não podia ser imitada por ninguém. "...nenhum de vocês perdeu a mulher e os filhos por que não tinha dinheiro, por que estava desempregado. Esse é o nosso lamento, a nossa cultura." Que frase fantástica! A mais pura demonstração de que a música também serve ao processo de divisão de classes.

O filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno expressa isso com ingenuidade em seu texto A digressão da audição quando classifica a música popular como música ligeira numa espécie de desclassificação de tudo aquilo que não fosse música clássica. A música portanto massifica um esteriótipo e nós não sabemos lidar com isso. A massificação da cultura se dá através de um artifício totalitário e é assim que forjamos o gosto. Quem gosta de Forró é A e quem gosta de Bossa Nova é B. Uma bobagem sem limite.

Aprendi com Ali a rever meu conceito sobre o gosto. Mesmo depois de ter lido tanto a respeito foi esse homem, com sua frase antecedendo uma luta de boxe, que me mostrou o caminho. Um direto no estômago. Se Chopin tivesse nascido na mangueira não seria ele um grande sambista? Se Wagner tivesse nascido no campo não seria ele um gênio sertenajo?

A medida que consumimos nossos instintos primitivos, dividimos o mundo. Até mesmo aquilo que nos acompanha desde o nosso surgimento como individuos sociais acaba servindo aos interesses razos da classificação grosseira. Pobres críticos...