Nelson Ascher
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Jornalista, poeta e tradutor
Nascidos ambos em 1903, membros originalmente da mesma classe social (ou quase) num país cuja hierarquia impermeável rivalizava com a da Índia (que ainda lhe pertencia), dois dos maiores escritores ingleses modernos, George Orwell (pseudônimo de Eric Blair) e Evelyn Waugh, tiveram vidas e carreiras tão opostas como, por paradoxal que soe, similares. São essas trajetórias que o americano David Lebedoff faz convergir em The Same Man (A Mesma Pessoa), publicado recentemente nos Estados Unidos, que lança mão do método usado por Plutarco nas Vidas Paralelas, ou melhor, uma vez que biografa homens de letras, pelo cubano Cabrera Infante em seu Vidas para Lê-las. Algo que sempre saltou aos olhos na comparação entre os dois prosadores foi quanto se diferenciava Waugh, alpinista social bem-sucedido, que só se sentia bem junto a (ou casado com) aristocratas esnobes, de Orwell, um mergulhador social que, optando por conviver com desempregados, mendigos e trabalhadores, passou fome e dormiu em pensões baratas e até em praças. O primeiro, estilista nato dotado de um humor cruel, brilhou desde o romance inicial; o segundo se obrigou, obsessivo, a aprender um ofício cuja consumação atingiu somente às vésperas da morte. Aquele, um direitista assumido e católico praticante; este, um socialista que lutou contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola.
Ainda assim, o que tinham em comum era, para o duplo biógrafo, mais relevante, começando pelo fato de que ambos escreveram na contramão da própria época (que é também a nossa) e, fiéis a princípios e convicções, não a modas, convenções ou ao espírito de manada, foram, apesar da aprovação do grande público, atacados e boicotados pela intelectualidade oficial. Assim, quando 1984 chegou, tanto o livro "homônimo" quanto Orwell, seu autor, pareciam ter se tornado irrelevantes e datados. Com o império soviético decrépito e a democracia florescendo opulenta no Primeiro Mundo e transbordando para países havia pouco submetidos ao autoritarismo, o Brasil entre eles, o porvir descrito por Orwell dava a impressão de ter sido atropelado pela história que reduzira seus prognósticos a alarmismo. Ocorre que o que se tomara por ocaso não passava, afinal, de breve eclipse e, se há um autor britânico daquela época que, descartado pelos bem-pensantes, reocupou seu lugar, foi Orwell. Biografias e estudos sobre ele têm se multiplicado nos últimos anos, se bem que mais devagar do que os admiradores que, auxiliados pela internet, onde se encontra quase tudo o que escreveu, adotam-lhe as idéias e citam suas frases lapidares.
Quanto a Waugh, a nova elite de uma Inglaterra hegemonicamente trabalhista desde o fim da II Guerra até a ascensão de Margaret Thatcher não tinha por que simpatizar com ele. Sua celebração, mesmo quando satírica, do passado, das glórias e das tradições nacionais tampouco o ajudava muito numa era que, vangloriando-se de seu arrependimento histórico, execrava tudo de britânico que a antecedera. Mas a posição dúbia dos dois em seus respectivos meios culturais decorria igualmente da visão pessimista do futuro à qual chegaram partindo de extremos opostos. Orwell e Waugh, antes visceral que intelectualmente, perceberam que o Dr. Jekyll da modernidade democrática viera ao mundo acompanhado de um irmão siamês: o Mr. Hyde da modernidade perversa encarnada então no nazismo e no comunismo. Reconhecendo o significado disso, concluíram independentemente um do outro, já no começo dos anos 30, que logo haveria outra conflagração mundial mais devastadora que a de 1914-18.
Waugh e Orwell encontraram-se uma única vez, no fim de 1949, quando o escritor da trilogia A Espada de Honra visitou a clínica onde, terminalmente tuberculoso, estava internado o criador de A Revolução dos Bichos. No entanto, Lebedoff nos afiança que o verdadeiro contato deles foi mais prolongado e íntimo, envolvendo seu amor mútuo e correspondido pela língua inglesa. Sua consciência compartilhada de que há uma correlação altíssima entre como se escreve e o que se pensa, aliada à certeza de que todo limite imposto à expressão acorrenta o pensamento, é que os levou, mais do que a escrever bem e claro, a zelar pela saúde da língua, insurgindo-se contra pretensos legisladores dispostos a prescrever ou proscrever palavras e frases. Meio século antes de a correção política ser batizada, ambos não apenas sabiam quão indispensável era a liberdade de expressão como teriam subscrito o slogan de 1968 que, nesse âmbito, encapsula à perfeição sua essência: é proibido proibir.