sexta-feira, 25 de junho de 2010

Afinidades libertárias

Aparentemente opostos nas convicções políticas, os escritores ingleses George Orwell e Evelyn Waugh (à esq.) compartilhavam da repulsa ao espírito de manada – qualidade que garante a atualidade de suas obras provocadoras. Evelyn Waugh era um católico conservador e George Orwell era socialista. Mas ambos cultivavam o mesmo horror ao totalitarismo

Nelson Ascher
nelsonascher@abril.com.br
Jornalista, poeta e tradutor

Nascidos ambos em 1903, membros originalmente da mesma classe social (ou quase) num país cuja hierarquia impermeável rivalizava com a da Índia (que ainda lhe pertencia), dois dos maiores escritores ingleses modernos, George Orwell (pseudônimo de Eric Blair) e Evelyn Waugh, tiveram vidas e carreiras tão opostas como, por paradoxal que soe, similares. São essas trajetórias que o americano David Lebedoff faz convergir em The Same Man (A Mesma Pessoa), publicado recentemente nos Estados Unidos, que lança mão do método usado por Plutarco nas Vidas Paralelas, ou melhor, uma vez que biografa homens de letras, pelo cubano Cabrera Infante em seu Vidas para Lê-las. Algo que sempre saltou aos olhos na comparação entre os dois prosadores foi quanto se diferenciava Waugh, alpinista social bem-sucedido, que só se sentia bem junto a (ou casado com) aristocratas esnobes, de Orwell, um mergulhador social que, optando por conviver com desempregados, mendigos e trabalhadores, passou fome e dormiu em pensões baratas e até em praças. O primeiro, estilista nato dotado de um humor cruel, brilhou desde o romance inicial; o segundo se obrigou, obsessivo, a aprender um ofício cuja consumação atingiu somente às vésperas da morte. Aquele, um direitista assumido e católico praticante; este, um socialista que lutou contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola.

Ainda assim, o que tinham em comum era, para o duplo biógrafo, mais relevante, começando pelo fato de que ambos escreveram na contramão da própria época (que é também a nossa) e, fiéis a princípios e convicções, não a modas, convenções ou ao espírito de manada, foram, apesar da aprovação do grande público, atacados e boicotados pela intelectualidade oficial. Assim, quando 1984 chegou, tanto o livro "homônimo" quanto Orwell, seu autor, pareciam ter se tornado irrelevantes e datados. Com o império soviético decrépito e a democracia florescendo opulenta no Primeiro Mundo e transbordando para países havia pouco submetidos ao autoritarismo, o Brasil entre eles, o porvir descrito por Orwell dava a impressão de ter sido atropelado pela história que reduzira seus prognósticos a alarmismo. Ocorre que o que se tomara por ocaso não passava, afinal, de breve eclipse e, se há um autor britânico daquela época que, descartado pelos bem-pensantes, reocupou seu lugar, foi Orwell. Biografias e estudos sobre ele têm se multiplicado nos últimos anos, se bem que mais devagar do que os admiradores que, auxiliados pela internet, onde se encontra quase tudo o que escreveu, adotam-lhe as idéias e citam suas frases lapidares.

Quanto a Waugh, a nova elite de uma Inglaterra hegemonicamente trabalhista desde o fim da II Guerra até a ascensão de Margaret Thatcher não tinha por que simpatizar com ele. Sua celebração, mesmo quando satírica, do passado, das glórias e das tradições nacionais tampouco o ajudava muito numa era que, vangloriando-se de seu arrependimento histórico, execrava tudo de britânico que a antecedera. Mas a posição dúbia dos dois em seus respectivos meios culturais decorria igualmente da visão pessimista do futuro à qual chegaram partindo de extremos opostos. Orwell e Waugh, antes visceral que intelectualmente, perceberam que o Dr. Jekyll da modernidade democrática viera ao mundo acompanhado de um irmão siamês: o Mr. Hyde da modernidade perversa encarnada então no nazismo e no comunismo. Reconhecendo o significado disso, concluíram independentemente um do outro, já no começo dos anos 30, que logo haveria outra conflagração mundial mais devastadora que a de 1914-18.

Waugh e Orwell encontraram-se uma única vez, no fim de 1949, quando o escritor da trilogia A Espada de Honra visitou a clínica onde, terminalmente tuberculoso, estava internado o criador de A Revolução dos Bichos. No entanto, Lebedoff nos afiança que o verdadeiro contato deles foi mais prolongado e íntimo, envolvendo seu amor mútuo e correspondido pela língua inglesa. Sua consciência compartilhada de que há uma correlação altíssima entre como se escreve e o que se pensa, aliada à certeza de que todo limite imposto à expressão acorrenta o pensamento, é que os levou, mais do que a escrever bem e claro, a zelar pela saúde da língua, insurgindo-se contra pretensos legisladores dispostos a prescrever ou proscrever palavras e frases. Meio século antes de a correção política ser batizada, ambos não apenas sabiam quão indispensável era a liberdade de expressão como teriam subscrito o slogan de 1968 que, nesse âmbito, encapsula à perfeição sua essência: é proibido proibir.

O cantor que a esquerda sepultou vivo

Sérgio Martins
sergiomartins@abril.com.br
Jornalista

Documentário narra a polêmica trajetória de Wilson Simonal, ídolo de massas que teve a carreira destruída depois que os patrulheiros lhe colaram a pecha – injusta – de informante da ditadura

Wilson Simonal de Castro foi um dos maiores ídolos de massa que o Brasil já teve. Nos anos 60, só Roberto Carlos competia com ele em popularidade. Simonal popularizou bordões como "alegria, alegria" (que Caetano Veloso reaproveitou como título de música) e "vou deixar cair". Seus shows eram celebrações, com a participação entusiasmada dos espectadores – ele chegou a "reger" um público de 30.000 pessoas no Maracanãzinho, no Rio. A partir de 1971, porém, Simonal foi condenado a um degredo artístico: não era mais convidado para programas de televisão, não conseguia mais gravar discos nem se apresentar ao vivo. Outros músicos recusavam-se a dividir o palco com ele. Em pleno governo Médici, período de intensa polarização ideológica, o cantor ganhou a fama infausta de colaborador do Dops, a polícia política da ditadura. A história da ascensão fulgurante e da queda espetacular de Simonal é esmiuçada no documentário Ninguém Sabe o Duro que Dei (Brasil, 2007). Dirigido por Claudio Manoel (do Casseta & Planeta), Micael Langer e Calvito Leal, o filme também reavalia a importância artística do cantor: para além de seus supostos equívocos políticos, Simonal dominava o palco como poucos já o fizeram no Brasil.

Filho de empregada doméstica que abandonou a carreira militar – era cabo do Exército – para se tornar cantor, Simonal começou como intérprete de bossa nova. Adicionou um suingue inédito ao gênero no disco A Nova Dimensão do Samba, de 1964. A consagração popular chegou com a chamada "pilantragem", rótulo inventado por ele e seu mentor Carlos Imperial para designar suas músicas dançantes e malandras – como o grande sucesso Meu Limão, Meu Limoeiro, canção de domínio público que Simonal transformou em sua marca registrada. O cantor ficou rico e assinou contrato de publicidade com a Shell. O filme dá amplas mostras de seu talento – como o maravilhoso dueto com Sarah Vaughan, uma das grandes damas do jazz americano. A derrocada veio com um episódio vergonhoso: em 1971, desconfiado de que fora roubado pelo contador Raphael Viviani, Simonal solicitou ajuda a dois seguranças, um deles agente do Dops, o famigerado órgão de repressão da ditadura, para resolver o caso. Viviani foi raptado, torturado e obrigado a assinar um documento no qual confessava ter desfalcado o cantor. A mulher do contador deu queixa à polícia. Simonal foi chamado a depor e tentou se esquivar das acusações da pior maneira possível: gabou-se de suas pretensas conexões com a ditadura.

Entre os depoimentos mais fortes do filme, está o de Viviani. Em sua primeira entrevista sobre o caso, o contador relata como teria sido torturado pelos gorilas do Dops, a mando de Simonal. O episódio é estarrecedor, mas não foi isso que determinou o ostracismo de Simonal. Nunca comprovada, a acusação de que ele seria um informante das forças da repressão pode ter nascido de suas bravatas, mas foi incendiada pela sede de justiçamento moral da esquerda de então. Embora nunca se tenha sabido de um só preso político denunciado por Simonal, a pecha de dedo-duro colou-se ao cantor. Foi muito repisada pelo jornal alternativo O Pasquim. Isolado, deprimido, Simonal acabou se entregando ao alcoolismo. Morreu de problemas no fígado, aos 61 anos, em 2000. Seu nome ainda hoje está envolto em boatos fantasiosos. Claudio Manoel lembra o absurdo que ouviu de um empresário a quem pediu patrocínio para o filme. "Ele me perguntou por que eu queria fazer um documentário sobre o cara que torturou Caetano Veloso", disse Manoel. (Caetano, a propósito, nunca foi torturado.)

O Brasil de hoje conhece muitos patrulheiros da correção política, mas, assim como não se concebe mais a censura às artes e à imprensa, não existe mais clima para tamanho linchamento político. Foi a atmosfera de radicalização ideológica da ditadura que permitiu o enterro em vida imposto a Simonal. Mas isso só não explica inteiramente o caso. Outros artistas e intelectuais, como Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre, apoiaram publicamente a ditadura. Foram atacados por isso, com toda a razão, mas não silenciados como Simonal foi. Negro de origem pobre, ele gostava de ostentar sua riqueza, com roupas extravagantes e carros de luxo – e ainda tinha o desplante de namorar mulheres brancas. Um certo componente de preconceito social e racial contribuiu para a desgraça do cantor. E é por isso que, em retrospecto, ganha um sabor tão amargo a imagem, recuperada pelo filme, em que Simonal finge ouvir de seu anjo da guarda o seguinte alerta: "Simona, ou você vai ser alguém na vida, ou vai morrer crioulo mesmo".

segunda-feira, 21 de junho de 2010

As obsessões de Machado de Assis

(Raul Pederneiras)

Ariel Kostman
ariel.kostman@metrojornal.com.br
Jornalista

Novos estudos se debruçam sobre os temas que atormentaram o escritor ao longo da carreira

No Rio de Janeiro, o hábito de tomar banho de mar sem fins terapêuticos surgiu nos anos 80 do século 19. Era necessária toda uma produção. Uma tenda era erguida na praia do Flamengo ou na de Botafogo — Copacabana era então considerado um lugar remoto. Os homens usavam um maiô largo, no estilo aqualouco. As mulheres, trajes que não marcassem a silhueta — e eram orientadas a voltar para casa antes de o sol ficar forte, para evitar os olhares curiosos dos pescadores. No conto A Chave, publicado no livro Páginas Esquecidas: Uma Antologia Diferente de Contos Machadianos, organizado por Álvaro Martins, Machado de Assis leva para a literatura esse hábito recém-incorporado ao cenário carioca. No texto, o autor conversa com o leitor a respeito dos personagens. Quando o assunto é a moça que protagoniza a história, Machado usa uma linguagem direta. Quando é o pai dela, se vale do tom empolado que dominava as letras brasileiras na época do romantismo — e que, no tempo em que se passa o conto, soava tão antiquado quanto um maiô de aqualouco nos dias de hoje. A Chave é uma obra menor na produção do maior escritor brasileiro, mas no pequeno trecho descrito acima (veja texto na página 36) estão presentes dois dos temas pelos quais Machado se tornou conhecido: o hábito de dialogar com o leitor e a zombaria da fala empolada, em nome de um estilo mais direto — a linguagem que, mais tarde, se tornaria típica do realismo.

A leitura de Páginas Esquecidas provoca uma reflexão. Durante muito tempo, os manuais de literatura apresentavam o autor de Memórias Póstumas de Brás Cu bas como um personagem dividido em dois — justamente antes e depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Antes estaria o Machado romântico, emulando um estilo do passado e, nele, forjando as características de uma prosa própria. Depois da revolução de Memórias Póstumas, teria surgido o Machado realista, com pleno domínio de seu ofício. Os estudos mais recentes sobre o escritor carioca mostram que a realidade é bem mais complexa. Machado experimenta, efetivamente, a evolução pela qual passa todo escritor em busca de um estilo. Ao longo dessa trajetória, no entanto, ele retorna obsessivamente aos mesmos temas, que aparecem nas obras de juventude e nas de maturidade, nos textos despretensiosos como o conto A Chave e nas obras-primas como Dom Casmurro. Pode-se dizer, assim, que esses temas seriam suas "obsessões". Além do diálogo com o leitor e da sátira ao pedantismo, o ciúme, o dinheiro e o parasitismo da elite estariam entre elas.

A continuidade da obra e os temas recorrentes aparecem em vários estudos recentes sobre Machado. Um deles é Os Leitores de Machado de Assis, de Hélio de Seixas Guimarães, professor da Universidade de São Paulo, que trata justamente do diálogo constante do autor com o leitor e mostra as mudanças nessa relação ao longo do tempo. A postura didática e pedagógica do início é substituída por uma atitude mais provocativa, tentando causar desconforto e exigindo do leitor um esforço maior. Desafiando sistematicamente a expectativa de seus interlocutores, os narradores de Machado apontam para a necessidade de um novo tipo de literatura e para um novo tipo de leitor, menos acomodado. Esse leitor existia? O recenseamento feito pelo imperador dom Pedro 2o, em 1872, desnudou a dramática situação do analfabetismo no Brasil. "Há só 30% neste país que podem ler; 70% jazem em profunda ignorância", escreveu Machado na crônica de 15 de agosto de 1876, quando os resultados do censo foram divulgados em jornais de norte a sul do país. Os leitores eram poucos, e os que existiam haviam sido moldados pelo gosto romântico. Machado queria formar um novo leitor, e com esse intuito se dirigia a ele.
Outro tema presente na obra de Machado que só agora começa a ser mais estudado é o dinheiro. Ele aparece em seus livros de uma maneira original, como a quantificar, ironicamente, o valor de afetos e atos humanos. No capítulo O Almocreve, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o protagonista fica preso no estribo de um jumento que dispara pela estrada e é salvo por um almocreve (rapaz que cuida dos animais). Agradecido, Brás Cubas resolve dar a ele três moedas de ouro. "(...) não porque tal fosse o preço da minha vida, — essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou." Refletindo melhor, resolve reduzir a recompensa a uma moeda de ouro. Ao final, o pobre-diabo acaba ganhando apenas um cruzado de prata (veja quadro na página 37). Em Marcela, capítulo do mesmo livro, o protagonista conta que, para cativar a moça, teve de gastar o dinheiro do pai e da mãe e, ao final, recorrer a agiotas. É aí que aparece a famosa frase — a quantificação do afeto: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis". O economista e historiador Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, escreveu no ano passado um belíssimo livro sobre o assunto. Em A Economia em Machado de Assis: O Olhar Oblíquo do Acionista, Franco compila crônicas sobre economia e diz que, nelas, Machado adota a mesma ironia presente em seus principais contos e romances e o mesmo olhar tortuoso que caracterizava Capitu.

Um tema recorrentemente estudado na obra de Machado é o parasitismo da elite. O crítico literário Roberto Schwarz alude ao assunto no artigo A Viravolta Machadiana (2004). Para Schwarz, em algum momento entre Iaiá Garcia (1878) e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Machado teria concluído que o processo social brasileiro não transformaria escravos em cidadãos e que seria difícil superar as iniqüidades sociais. Sobre a densidade psicológica de sua obra, Schwarz diz: "Machado é um autor que, em 1880, está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois".
As relações entre Machado e outros autores constituem outro tema muito estudado atualmente. No recém-lançado Machado de Assis: O Romance com Pessoas, José Luiz Passos, professor da Universidade Berkeley, na Califórnia, diz que os romances de Machado não contam histórias. São, sobretudo, reflexões sobre o modo como as pessoas tomam suas decisões e sobre como, com freqüência, agem no sentido de camuflar aquilo que as motiva. Passos também enfatiza a presença constante de Shakespeare nos livros de Machado e afirma que o autor inglês funcionava como uma espécie de oráculo para responder às suas inquietações.

Entre os temas recorrentes na obra de Machado está, claro, o ciúme, fato, aliás, notado pela crítica norte-americana Helen Caldwell, a mesma que a certa altura questionou a interpretação até então assentada sobre a história de Bento Santiago e Capitu. Durante muito tempo, Dom Casmurro foi visto como um romance de adultério, a exemplo de Madame Bovary, O Primo Basílio e Ana Karenina. Helen foi a primeira a chamar a atenção para o fato de que o livro de Machado não era sobre o adultério, mas sobre o ciúme. Afinal, diferentemente dos livros realistas de Flaubert, Eça de Queirós e Tolstói, em Dom Casmurro não se sabe se o adultério ocorre de fato ou não. "Os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro", escreve o estudioso Silviano Santiago.

O tema é permanente na obra do chamado "Bruxo do Cosme Velho". Helen Caldwell observa que essa paixão vil tem papel central em nada menos do que sete dos nove romances escritos por Machado de Assis, marcando posição importante também em uma boa dezena de contos. O leitor que tiver a curiosidade de ler o romance de estréia de Machado, Ressurreição, facilmente perceberá as mórbidas semelhanças entre o Félix do romance de 1872 e o Bento Santiago do romance de 1899. Os dois protagonistas são atormentados pelo "monstro de olhos verdes", expressão usada por Shakespeare para se referir ao ciúme em Otelo. Ambos enxergam em tudo razões para duvidar de suas tão amadas quanto odiadas Lívia e Capitu e se dizem mais dispostos a acreditar no verossímil do que no verdadeiro. Em Ressurreição, Félix, apesar de todos os argumentos em contrário, prefere se apegar a uma carta anônima para pôr em dúvida a fidelidade de Lívia. Já o casmurro Bento Santiago, em um gesto extremo, hesita entre suicidar-se com veneno, colocado numa xícara de café, ou dá-lo para Ezequiel, o filho que é a cara de seu amigo Escobar. No último instante, ele recua, mas diz a Ezequiel que não é seu pai.

Houve tempo em que esse retorno freqüente às mesmas obsessões foi explicado com base em supostos distúrbios psíquicos do homem Joaquim Maria. A grande biógrafa e intérprete de Machado de Assis, Lúcia Miguel-Pereira, relacionava a insistência em retomar os mesmos temas com um comportamento que, na década de 1930, se acreditava típico daqueles que, como Machado, sofriam de epilepsia. "Essa recorrência em retomar os mesmos temas pode ser um traço de gliscróide", observou a biógrafa, usando um termo em voga na época para epilepsia. Em seu livro Machado de Assis: Estudo Crítico e Biográfico, de 1939, ela também descobre um Machado tímido e perturbado. "Tinha uma atitude de tímido, desses tímidos que se tornam afetados para esconderem o embaraço. Certo de ter, ao lado de indiscutíveis superioridades, taras de que se vexava, e quisera esconder, Machado penetrou na celebridade como num salão cheio de gente pronta a criticar-lhe o traje modesto."

Mais contemporaneamente, a recorrência dos temas vem sendo entendida como uma busca muito consciente e lúcida do escritor para encontrar formas capazes de condensar e expressar a complexidade da sua visão de mundo — daí tantos estudos recentes se debruçarem sobre suas obsessões. No lugar do gênio, do autor que a certa altura irrompe como um milagre, as leituras das últimas décadas enfatizam a relação estreita e fecunda que Machado estabeleceu não só com a tradição literária, mas também consigo mesmo, ou melhor, com a obra da sua juventude. Chamando a atenção para a economia interna da obra, o crítico Silviano Santiago constatou que o processo criativo de Machado de Assis está profundamente baseado na reelaboração incessante de certas estruturas estabelecidas desde seus escritos iniciais. Um homem é a soma de suas obsessões, disse muito mais tarde o dramaturgo Nelson Rodrigues. Quando, além disso, ele tem o talento artístico de um Machado de Assis, o resultado é uma soma elevadíssima de obras-primas.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ambivalência moral e política do mundo moderno




Jessé de Souza
jessedesouza@unb.br
Doutor em sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg (Alemanha)


No Brasil, onde o debate acadêmico ainda imagina um país dominado pelo "jeitinho", a teoria habermasiana pode ser ricamente aproveitada

Um grande pensador como Habermas pode ser compreendido de muitas maneiras e sua obra permite várias possibilidades de introdução. Escolho meu caminho elegendo a questão da "esfera pública" e, consequentemente, a questão da ambiguidade e positividade moral do Ocidente, como a questão mais relevante e mais atual deste pensador contemporâneo tão importante e influente.

Apesar da enorme divergência com relação ao quadro de referência teórico, existe um ponto em comum, na visão de todos os grandes clássicos das ciências sociais, acerca da peculiaridade da moderna sociedade capitalista: Estado racional burocratizado e mercado competitivo capitalista são percebidos como as instituições estruturantes do novo sistema social nascente. Para Karl Marx e Max Weber, por exemplo, as patologias do mundo moderno e capitalista têm a ver com os efeitos dessas instituições combinadas tanto na perversão da formação da vontade política quanto na fragmentação da consciência e da autonomia individual em todas as dimensões da vida.

As primeiras gerações da Escola de Frankfurt, à qual Habermas pertence como rebento tardio, haviam, precisamente, conseguido juntar a força combinada desses clássicos para mostrar a ubiquidade e a nova opacidade da dominação capitalista tardia: homens e mulheres escravizados por uma lógica mesquinha e impessoal ao mesmo tempo em que se imaginavam livres e senhores do próprio destino.

"Terceira" instituição

Habermas não iria negar a validade desse diagnóstico. Mas ele iria dedicar toda sua vida para matizá-lo e torná-lo mais complexo. Habermas é o pensador de uma "terceira" instituição típica do moderno mundo capitalista, além de mercado e Estado, que ele chama de "esfera pública". Essa me parece sua grande novidade como pensador crítico. Sem negar a lógica heterônoma que habita Estado e mercado, Habermas defende que a modernidade é "ambígua", ou melhor, "ambivalente", na medida em que possibilitou, também, processos de aprendizados coletivos, ancorados institucionalmente no que ele chama de esfera pública.

Desse modo, a comparação entre sociedades modernas concretas pode e deve se dar, não apenas se aferindo a eficácia diferencial do mercado e do Estado em cada uma delas, mas, também, a partir da maneira mais ou menos consequente na qual uma esfera pública plural e democrática logrou se institucionalizar.

O conceito de esfera pública já é o tema principal da tese de livre docência de Habermas de 1962, no início de sua carreira, denominada "Mudança estrutural da esfera pública". Neste livro, Habermas percebe a formação histórica de uma instituição singular, especificamente "moderna". "Moderna" não apenas porque começa a se delinear historicamente na segunda metade do século 18, mas porque pressupõe "estímulos" modernos como o aumento da troca de mercadorias implicando também a troca de informações e ideias ou a institucionalização da liberdade de confissão engendrando, pela primeira vez, a possibilidade de construção de uma esfera "privada", apartada do público e de sua vigilância.

Afinal, é precisamente uma recém estabelecida esfera privada fundada na autocrítica e na prática reflexiva da vida individual e de suas escolhas - possibilitada por novos meios como, dentre outros, o romance psicológico moderno - que irá possibilitar a transposição da lógica de uma nova racionalidade privada também para os assuntos públicos da coletividade.

É a partir daí que o poder político passa a necessitar, para sua legitimação, de "justificar-se" perante um público de pessoas cultas. Habermas percebe aqui o nascimento de algo qualitativamente novo, ainda que no livro de 1962 a entrada da grande imprensa e da indústria cultural, que se impõem a partir do final do século 19, seja percebida, muito ao gosto dos "velhos frankfurtianos", como uma história unilateral de decadência e de empobrecimento do espírito público.

Ainda assim, ninguém havia percebido antes dele, com tanta clareza, o ganho histórico tanto social quanto político, propiciado pela reflexão e pela possibilidade de autocrítica seja na dimensão privada seja na dimensão pública. Mais ainda, esse potencial crítico é percebido por Habermas como "inscrito na própria ordem social" sendo, portanto, passível de verificação empírica.

Em outros livros seminais como o Técnica e ciência como ideologia, (1969), e na sua obra magna A teoria do agir comunicativo (1981), Habermas retoma sua senda original armado da ambição científica de tentar demonstrar a existência empírica de uma racionalidade "comunicativa" que não se confundiria com a racionalidade instrumental e sistêmica de Estado e mercado.

O contexto histórico que lhe confere plausibilidade é a expansão inaudita, depois da Segunda Guerra Mundial, da social-democracia europeia e suas conquistas como boa educação ao alcance de todos. Em vez de apenas cego consumismo e domínio absoluto de necessidades materiais, temos, nessa época, a discussão pública de vários temas como expansão dos direitos sociais, libertação feminina e, finalmente, mudanças importantes na forma de perceber a autoridade e o poder político.

Para Habermas, esses "avanços" refletem precisamente possibilidades importantes de "aprendizado moral e político" da modernidade capitalista, sem que isso implique desconhecer os efeitos "colonizadores" da lógica do poder e do dinheiro. Captar essa "ambiguidade tensa" entre dominação opaca e imperceptível, por um lado, e novas possibilidades de aprendizado coletivo, por outro lado, foi o grande desiderato da vida desse pensador.

O conceito de "ação comunicativa" é central nessa empreitada. Ele serve para mostrar, na dimensão da ação social concreta, que o comportamento efetivo dos indivíduos pressupõe uma relação interna com valores morais e políticos que foi, historicamente, tornada possível, pela expansão do horizonte reflexivo possibilitado pela capacidade, historicamente recente, de se autocriticar como indivíduo e como sociedade.

Habermas no Brasil: "jeitinho" e "mal misterioso"

No Brasil, onde um velho debate acadêmico ainda imagina o país dominado pelo "jeitinho" ou por "relações pessoais pré-modernas" - como se aqui um "mal de origem" misterioso tivesse impedido que mercado e Estado (apenas no Brasil, dentre todos os países do globo) deixasse de desenvolver as virtualidades de uma sociedade moderna e impessoal - a teoria habermasiana pode ser ricamente aproveitada.

Num registro "habermasiano", os problemas sociais brasileiros parecem decorrentes de uma "colonização" quase absoluta dos interesses do mercado e do dinheiro sobre todas as outras esferas sociais. Como aqui não se desenvolveu uma esfera pública crítica - a não ser episodicamente - não se desenvolveu também consensos morais e políticos capazes de se opor ao simples uso indiscriminado de tudo e de todos com o fito de lucro.

A permanência e a naturalização da abissal desigualdade social brasileira em todas as dimensões advêm, portanto, não de um "jeitinho" corrupto que é sempre do Estado (demonizado) e nunca do mercado (divinizado) - como na visão de nosso liberalismo dominante que é conservador e pseudocrítico - mas da falta de capacidade de autocrítica que perpassa toda a sociedade.

Pensadores críticos, como Habermas, não devem ser usados apenas como meio de "distinção erudita", como mero "adorno da inteligência", como um fim em si, como é tão comum entre nós. Eles são uma "arma prática" para se perceber nossa própria sociedade de outro modo, mais crítico e menos autoindulgente e superficial como nos acostumamos a nos perceber.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

João Gilberto - "Há tanta coisa bonita a ser consertada"

Mario Sergio Conti
mariosergioconti@revistapiaui.com.br
Escritor e diretor de redação da Revista Piauí

O trabalho de recriar canções alheias toma a maior parte do tempo de João Gilberto. Mas sua atividade de compositor também é rica. Novas gravações de "Bim Bom" e uma coletânea chamam a atenção para essa vertente

O início de uma vida artística é definidor. Por mais que a arte e a vida venham a mudar, e a negar as suas origens, o começo permanece como referência. No caso de João Gilberto, mais de meio século depois, o início de sua obra é um atestado de coerência.

O disco que inicia a bossa nova é um compacto simples que ele gravou em julho de 1958. De um lado, havia Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Do outro, Bim Bom, dele mesmo. Não era nem a primeira gravação de João Gilberto nem o primeiro disco de bossa nova. Ele já havia gravado dois compactos com os Garotos da Lua, em 1951, e outro, solo, no ano seguinte.

A batida da bossa nova, por sua vez, aparecera no LP Canção do Amor Demais, gravado em abril de 1958 por Elizeth Cardoso. Nele, João Gilberto tocava violão em Chega de Saudade e Outra Vez. Apesar das treze faixas serem todas de Jobim e Vinicius, o LP não é de bossa nova. A "Divina" era uma cantora presa ao samba-canção, com suas ênfases óbvias e gastas.

A cápsula da invenção surge mesmo no compacto de 1958. A criação se dá em dois planos. Chega de Saudade havia sido composta por Jobim como um chorinho. Pois João Gilberto o transformou num samba enxuto, no qual o violão deixa de ser um mero acompanhante para dividir o primeiro plano com a voz. A letra é interpretada como quem fala, de modo íntimo. A melodia (de fundamento europeu) se amalgama à harmonia (com inspiração do jazz americano) e ao ritmo (que vem da África e se condensa no samba) para dar origem a outra coisa: um som que é uma arte.

No outro lado do disco está o segundo plano inventivo, o do João Gilberto compositor, autor de Bim Bom, a canção que não tem nada de baião. Alternando os sons "bim" e "bom", a letra diz:

É só isso o meu baião

E não tem mais nada não

O meu coração pediu assim, só.

A letra oscila entre a negativa absoluta e a afirmação de um resíduo solitário: "só isso", "não", nada", "não" de novo, e outra vez "só". O que resta, de concreto, são duas palavras, "baião" e "coração". Mas o que elas significam?

Antes de tentar responder, cabe outra questão: em qual instância o criador se manifesta mais: na interpretação que transforma Chega de Saudade de chorinho em samba, ou na autoria de Bim Bom? Desde 1958, João Gilberto segue as duas estratégias, mas dá preferência à primeira delas. Ele recompõe músicas tradicionais e contemporâneas. Trabalha com tudo, de sambas a boleros. Em português, inglês, italiano ou francês. Subtrai notas, altera o andamento, introduz silêncios, junta versos e muda as letras.

tirando os andaimes

O que resulta é algo bem distante do original. João Gilberto retira os andaimes da música-matriz para torná-la mais direta, objetiva e clara. Em Lígia, podou o próprio nome da moça do título, para evitar o derramamento de chamá-la em altos brados. Em Sampa, repetiu a palavra "alguma" logo no início: "alguma, alguma coisa acontece no meu coração" e mudou "a força da grana que ergue e destrói coisas belas" para "a força da grana que faz e destrói coisas belas".

Quando se pergunta a João Gilberto por que não compõe mais, sua explicação é singela e generosa: "Mas há tanta coisa bonita a ser consertada!". Ele prefere o trabalho modesto de polir a beleza que já existe a satisfazer o seu "eu" autoral. É um trabalho árduo. Em 1971, num show que fez na TV Tupi, ele interpretou Largo da Lapa, de Wilson Batista e Marino Pinto. A interpretação é maravilhosa. Mas ele acha que o encaixe entre a primeira e a segunda estrofes ainda não está bom. Por isso, quase quarenta anos depois, ainda não há registro em disco.

Com isso, o João Gilberto compositor ficou em segundo plano. Mas o panorama está mudando. Agora mesmo, foram lançados três CDs com Bim Bom. Bebel Gilberto, a filha do cantor, gravou-a sem violão em All In One. Adriana Calcanhoto cantou-a, com percussão do Olodum, em Partimpim Dois. E Ithamara Koorax interpretou-a em The Complete João Gilberto Songbook.

Antes delas, a música já fora gravada por Lena Horne, cantora americana de jazz. Ela fez uma temporada, em 1960, no Golden Room do Copacabana Palace. Chegou ao Rio sabendo a música e convidou João Gilberto a visitá-la na sua suite - cobriu-o de elogios e avisou que Bim Bom seria a única canção em português que interpretaria no show. Percebera a sua beleza antes de muitos brasileiros. Caso de Sérgio Porto, que, com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, era o cronista mais famoso da cidade. Ele publicou uma coluna dizendo que Lena Horne não deveria ter escolhido Bim Bom porque a canção não era em português...

Bim Bom também foi gravada por Charlie Byrd, Sergio Mendes, Ornella Vanoni, Stan Getz e Astrud Gilberto. As interpretações atestam a vitalidade de Bim Bom. Uma vitalidade que foi analisada em profundidade em Bim Bom - A Contradição Sem Conflitos de João Gilberto, o belo livro que Walter Garcia publicou em 1999. João Gilberto compôs Bim Bom em meados dos anos 50. Antes, portanto, de sair do Rio para a peregrinação que o levou a Porto Alegre, a Diamantina, a Juazeiro, a Salvador, e de volta ao Rio. Foi nesse percurso, descrito com brio por Ruy Castro em Chega de Saudade, que ele inventou a sua arte - e burilou Bim Bom.

canção em quatro linguas

Voltando à pergunta: o que significam "baião" e "coração", o que quer dizer "bim bom"? É do compositor Ronaldo Bôscoli a informação de que João Gilberto buscou mimetizar o balanço de lavadeiras, com bacias de roupas na cabeça, a caminho do rio São Francisco. De Bôscoli ao livro de Ruy Castro, e dele ao de Walter Garcia, a informação virou realidade. A mim, no entanto, João Gilberto disse mais de uma vez que essa história é folclore, que não aconteceu. A Edinha Diniz, a autora de Chiquinha Gonzaga: Uma História de Vida, ele contou que usou "baião" como sinônimo de "troço", "treco" ou, como dizem os mineiros, "trem". "Bim bom" seria então o espaço entre a sua "coisa" e o coração, entre a realidade e a afetividade, entre o objetivo e o subjetivo: a canção, o som, a arte.

Em Hô-Ba-Lá-Lá, João Gilberto também segue o caminho que vai e vem do coração à realidade e se materializa na canção:

É amor o hô-bá-lá-lá

Hô-bá-lá-lá uma canção

Quem ouvir o hô-bá-lá-lá

Terá feliz o coração

O amor encontrará

Ouvindo esta canção

Alguém compreenderá

Seu coração

Vem ouvir o hô-bá-lá-lá

Hô-bá-lá-lá

Esta canção

As canções de João Gilberto estão por ser descobertas. The Complete João Gilberto Songbook registra a existência de onze músicas de autoria dele. Mas não dá a letra de Undiú nem informa quem a escreveu. A canção é uma coautoria de João Gilberto com Jorge Amado. O romancista era amigo do compositor. Foi padrinho do casamento dele com Astrud Gilberto. Jorge Amado depois disse a Sergio Buarque de Holanda para receber João Gilberto, que queria pedir a mão da filha do autor de Raízes do Brasil, Miúcha, com quem veio de fato a se casar.

O título original de Undiú é Lamento da Morte de Dalva na Beira do Rio São Francisco, em Juazeiro. Foi composta no final dos anos 50 para integrar a trilha-sonora Seara Vermelha. O filme, baseado no romance de mesmo título de Jorge Amado, foi dirigido por Alberto D'Aversa em 1963. D'Aversa, um italiano que se radicou em São Paulo e trabalhou no Teatro Brasileiro de Comédia, chamou o maestro Moacir Santos para fazer a trilha-sonora. Ele pôs Lamento da Morte de Dalva no filme, mas esqueceu de colocar nos créditos que Jorge Amado fizera a letra. João Gilberto a gravou, com o título de Undiú, no seu álbum de 1973. Dos versos de Jorge Amado, restou uma palavra: "undiú".

The Complete João Gilberto Songbook também não traz a mais recente composição dele, Japão. Ela vem sendo trabalhada por João Gilberto desde 2004, depois de sua primeira turnê no Japão - e foi aplaudido em cena aberta durante 25 minutos, contados no relógio. Na turnê seguinte, uma das salvas de palmas se estendeu por 38 minutos ininterruptos. A canção, quadrilíngue (o verso em japonês quer dizer "Eu te amo Japão") está assim:

Je t´aime beaucoup, Japão

I love you

E te amo por que

O teu coração é cheio de amor

Anata ga suki Nipon

Je t´aime Japão

Te amo

I love you.

É só isso o seu baião.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Nara: saudades imaginárias




Daniela Aragão
danielaa@acessa.com
Cantora e mestre em literatura brasileira pela UFRJ

Nesses tempos de muitos funks, sertanejos e outras breguices do gênero, o selo Biscoito Fino lança no mercado o primeiro DVD da cantora Nara Leão. Este DVD é mais um que integra uma série de programas especiais dedicados a artistas da música popular brasileira como Elis Regina, Paulinho da Viola, Wanda Sá e Gal Costa.

O Especial reproduz a entrevista de Nara no programa “Ensaio”, da TV Cultura, realizado em 1973 por Fernando Faro, que continua até hoje à sua frente (melhor dizendo, por trás das câmeras). A voz e a imagem em off do entrevistador, aliada ao preto e branco da transmissão, reforça o clima intimista e transmite um quê de sensualidade, mistério e delicadeza, esta última a marca maior da musa portadora dos joelhos mais famosos da MPB. Joelhos que se encontram na imaginação dos espectadores, é claro, pois a tônica dos programas realizados por Fernando Faro é manter o entrevistado permanentemente em close, captando as mínimas nuances de seu rosto.

O resgate das imagens dos programas dirigidos por Fernando Faro é de fundamental importância para a preservação não só da história musical, mas também política de nosso país. Nara Leão foi um nome de grande importância na cultura brasileira na segunda metade do século XX. Tímida e paradoxalmente inquieta, corajosa, inovadora, nos seus vinte e cinco anos de carreira, correu em busca do registro de uma arte compatível com sua “verdadeira natureza interior” (como diz Gilberto Gil em Copo Vazio: “Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho/ que o vinho busca ocupar o lugar da dor/ que a dor ocupa a metade da verdade/ a verdadeira natureza interior”).

Nara Leão é a cantora que reuniu o melhor repertório do cancioneiro nacional. Gravou Nelson Cavaquinho, Sidney Miller, Zé Keti, Chico Buarque, Tom Jobim, João do Vale, Paulinho da Viola, Carlos Lyra, Dorival Caymmi, Edu Lobo, Vinicius de Moraes, Assis Valente, Sueli Costa, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e até mesmo um belo disco inteiramente dedicado ao Rei Roberto Carlos.

O DVD inicia com Nara interpretando a capella a canção “Soneto” de Chico Buarque, compositor que ela também homenageou no álbum “Com açúcar, com afeto”, de 1980: “Gravei muita coisa dele”, diz Nara, “nem sei direito o que mais. Do Chico eu me lembro de uma música que eu pedi que ele fizesse pra mim. Eu gosto muito de música que a mulher fica em casa chorosa e o marido na rua farreando. Você vê que eu canto “Fez bobagem” (Assis Valente), “Camisa amarela” (Ary Barroso). Chico fez para mim “Com açúcar com afeto”.

Com a voz pequena, no registro de soprano quase ligeiro, Nara imprime uma delicadeza e simultânea carga de emoção que causa impacto naqueles que a assistem pela primeira vez. A câmera persegue detalhadamente os movimentos da cantora, captando toda a sua expressividade. Acompanhada durante todo o tempo somente por seu violão, ela depura cada nota, cada acorde. Em “Morena do mar” de Caymmi, Nara Leão canta com tamanha suavidade que parece que a brisa leve do vento toca seus cabelos: “Para te agradar/ Ai, eu trouxe os peixinhos do mar, morena/ Para te enfeitar, eu trouxe as conchinhas do mar/ As estrelas do céu, morena/ E as estrelas do mar/ Ai, as pratas e os ouros de Iemanjá”.

Absolutamente espontânea, Nara fala sobre o acontecimento da música em sua vida, com o charme de um humor levemente Bossa Nova: “Eu andava com esse negócio de cinema porque eu pensava em ser montadora de filmes. E aprendi a fazer montagem. Naquela época, eu queria ser montadora, eu não pensava em ser cantora. Eu cantava, eu fazia gravuras, eu queria fazer montagem de filmes, fazia várias coisas. Até hoje eu não sei o que eu vou ser na vida”.

Mesmo a contragosto, Nara jamais deixou de ser a legítima representante da Bossa Nova. Avessa à postura ortodoxa que marcou muitos de seus companheiros, ela sempre esteve à frente e acima de qualquer rótulo. Nara sabia o que queria, tinha total consciência do que cantava: “Devo dizer que eu não sou nada preconceituosa. Então, vendo uma coisa que eu gosto, que acho bom e que acho renovador, eu não tenho preconceitos para dizer que não canto porque não cantava antes”.

"Eu sou um nostálgico de tudo aquilo que eu não vivi” disse certa vez Ed Motta numa entrevista. Guardei essa frase como se fosse minha. Fico imaginando Nara Leão e sinto saudades.