terça-feira, 27 de abril de 2010

Realismo e política

Alvaro Bianchi
albianchi@terra.com.br
Professor do instituto de filosofia e ciências humanas da UNICAMP

Inspirado em Maquiavel e Marx, Gramsci identificou a íntima relação entre o ser e o dever ser da política

Preocupado com o desenvolvimento de uma ciência da política e de uma prática política capaz de superar a divisão entre governantes e governados, Antonio Gramsci encontrou na obra do filósofo Nicolau Maquiavel (1469-1527) e do historiador Francesco Guicciardini (1483-1540) grande inspiração. Políticos, historiadores e filósofos do Renascimento italiano, ambos marcaram profundamente a história da Itália e as ideias políticas que tiveram lugar na península. O que atraía Gramsci nesses autores era o forte realismo neles presente, que aconselhava a tomar as coisas em sua efetividade e a considerar a política como um conjunto de práticas voltadas para a conquista e manutenção do poder político.

O realismo de ambos os escritores renascentistas era substancialmente diferente e foi sobre essas diferenças que Gramsci refletiu. O pensamento e a ação política de Guicciardini estavam baseados no discernimento e na prudência. Estudando as coisas tais como elas eram, em sua verdade, ou seja, com discernimento, o homem sábio poderia evitar os riscos da política e agir com prudência, evitando ao máximo os perigos decorrentes das grandes transformações.

Mas o realismo de Maquiavel era de outro tipo. Defendendo como regra o estudo da verità effettuale della cosa (a verdade efetiva da coisa) em vez de sua imaginação, o secretário florentino não suprimia toda imaginação política, mas apenas aquela que não encontrava fundamento na realidade. O compromisso de Maquiavel com a unidade da Itália era, assim, um compromisso com um futuro imaginado e desejado pelo qual estava disposto a combater. Esse não era um amanhã qualquer, e sim um amanhã que encontrava sua legitimidade histórica no fato do dever ser estar inscrito previamente no ser.

Paradigmas do político

Guicciardini e Maquiavel constituem dois paradigmas para o pensamento político italiano. O crítico literário Francesco De Sanctis (1817-1883) tratou desses paradigmas de modo exemplar em dois ensaios. Para De Sanctis, Maquiavel era um homem da transição entre o feudalismo e o mundo moderno que via o medievo morto na consciência, mas vivo nas instituições de sua época. O secretário florentino não procurava no passado a cura dos males do presente. Ele encontrava no passado as causas desses males e por isso, em vez de pensar na restauração do medievo, sonhava com sua demolição.

Para construir esse novo edifício social e político era preciso colocar o homem em seu centro, o homem real, o homem de seu tempo. À negação que o medievo fazia da vida terrena e da verdade da realidade, Maquiavel contrapunha o restabelecimento da vida terrena, de sua consciência e das forças que nela operavam. O homem, desse modo, não era passivo ou contemplativo; era um ser que operava sobre o real, um ser ativo e atuante. O secretário florentino era, assim, "não o filósofo da natureza, é filósofo do homem. Mas seu engenho ultrapassa e prepara o argumento de Galileu". Filósofo e político, Maquiavel havia inaugurado uma filosofia da ação política.

A posição de Guicciardini era, para De Sanctis, muito diferente. O diplomata florentino enfatizava a separação entre filosofia e práxis e afirmava que "conhecer não é colocar em ato". Assim, embora Guicciardini fosse um amante da liberdade bem ordenada, da laicização da política, da independência e da unidade italiana, esse amor era platônico. Esse programa era simplesmente abstrato; não impregnava sentimentos vivos e forças operantes; era apenas formado por ideias e opiniões.

O homem sábio definido e defendido por Guicciardini não era, desse modo, um homem de ação. O discernimento não estava voltado a instruir uma prática; ele tornava o sábio consciente dos perigos enfrentados, superior aos seus compatriotas que nada viam ou que viam o que não existia, e cheio de desprezo pelos homens vulgares que não tinham um olhar treinado e uma mente perspicaz como a dele. Mas toda essa inteligência só lhe permitia ser irônico. Nada mais.

Gramsci conhecia e valorizava positivamente a opinião de De Sanctis a respeito desses dois realistas do Renascimento, percebendo neles dois modelos de homem político, ambos realistas: o moderado-conservador e o radical-revolucionário. A oportunidade para o marxista sardo desenvolver essa percepção foi dada pela leitura de um artigo do socialista Paolo Treves, no qual ele manifestava sua preferência pelo realismo passivo de Francesco Guicciardini, em vez do realismo ativo de Maquiavel.

Guicciardini seria para Gramsci um "diplomata" e mesmo um "cientista da política". Mas Maquiavel era de outro naipe; o secretário florentino era um político. O diplomata e o cientista da política poderiam ter como horizonte uma realidade já constituída. Mas um homem de partido, "um político em ato" teria como objetivo "criar novas relações de forças e por isso não pode deixar de ocupar-se do dever ser". Era esse o objetivo de Maquiavel: produzir novas relações de força que superassem as antigas, criar um novo Estado. Era um objetivo perigoso, mas esse risco valia a pena correr.

Realidade efetiva

Inspirado em Maquiavel e Marx, Gramsci identificou a íntima relação existente entre o ser e o dever ser da política: "O político em ato é um criador, um suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move no turvo vazio de seus desejos e sonhos. Toma como base a realidade efetiva". O político em ato, tal como Maquiavel, deveria ser capaz de ler a realidade efetiva, a relação de forças existentes e em contínuo movimento. Mas, ao contrário de Guicciardini, que permanecia passivo e, por isso mesmo, não se opunha à reprodução incessante do ser, o secretário florentino fazia sua aposta na transformação. Por essa razão, enquanto o realismo de Guicciardini era conservador, assim como o socialismo de Treves, o realismo de Maquiavel era, para Gramsci, popular, assim como o de Marx.

Para esse realismo popular, a leitura da realidade efetiva tem por objetivo encontrar as possibilidades de transformação realmente efetivas. Não se trata, pois, de conservar, estabilizar ou acomodar-se, trata-se de transformar o mundo. O realismo popular é, assim, capaz de revelar uma realidade que é igual a si própria, mas que contém, ao mesmo tempo, aquilo que lhe é diferente. É por essa razão que, segundo Gramsci: "Aplicar a vontade à criação de um novo equilíbrio das forças realmente existentes e operantes, fundando-se sobre aquela determinada força que se considera progressiva, e potencializando-a para fazê-la triunfar é, sempre, mover-se no terreno da realidade efetiva, mas para dominá-la e superá-la (ou contribuir para tal). O 'dever ser' é, portanto, concreto, é a única interpretação realista e historicista da realidade, é a única história em ato e filosofia em ato, a única política".

Pessimismo e otimismo

A máxima de Gramsci "pessimismo do intelecto, otimismo da vontade" refletia-se de modo diferente no espelho de Guicciardini e no de Maquiavel. Ambos os renascentistas partilhavam o pessimismo do intelecto, mas apenas o último propugnava o otimismo da vontade. Nisso Gramsci estava com o realismo popular do secretário florentino. Onde o marxista sardo se distanciava deste e também de Guicciardini era nas razões para o pessimismo. Para Gramsci, o pessimismo do intelecto não deitava raízes em uma apreciação negativa da natureza humana. A revolução operada pelo marxismo sobre o pensamento de Maquiavel estava justamente na crítica da ideia de natureza humana e na ênfase no caráter histórico do homem e na distinção entre governantes e governados.

Essa crítica permitia desnaturalizar a política, identificando o conteúdo concreto da ciência política com uma ciência histórica. O realismo de Maquiavel e de Guicciardini estava assentado na constância natural do comportamento humano. Seus estudos históricos tinham por objetivo demonstrar essa constância. A recusa de uma natureza humana fixa permitia a Gramsci livrar-se de uma concepção naturalizada da história sem com isso abrir mão daquela importante sensibilidade histórica que havia marcado os pensadores renascentistas. Também para o sardo a experiência contemporânea e o estudo da história forneciam a chave para a inteligibilidade do presente.

O pessimismo gramsciano do intelecto era, assim, alimentado por seu realismo popular e radicalmente histórico. Ele implicava uma atitude cautelosa na análise das relações de forças econômicas, políticas e ideológicas, bem como na desconfiança de toda tentativa de subestimar o inimigo. Mas seu otimismo da vontade era a contrapartida. Este não se dobrava à força das coisas, agia sobre elas com vistas a transformá-las. Se nos lembrarmos que esse otimismo não foi abandonado sequer na prisão, poderemos imaginar a força das ideias e do homem que pacientemente as produziu.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

E Shakespeare criou o mundo




Jerônimo Teiveira
jeronimoteixeira@abril.com.br
Jornalista

A obra do poeta abrangeu virtualmente todo o conhecimento de sua era de inovações. Um livro recém-lançado examina uma faceta proeminente dessa rica literatura: sua dimensão econômica. O autor de Rei Lear, afinal, morreu rico

O adjetivo "comercial", quando usado para qualificar um romance, uma música, uma peça de teatro, carrega conotações depreciativas. O senso comum consagrou a noção de que o grande artista não se vende, de que sua obra deve mirar apenas a imaterial consagração dos séculos. A qualidade discutível da maioria dos best-sellers e blockbusters ajuda a reiterar esse preconceito – que, no entanto, é facilmente desmontado com um único exemplo histórico: William Shakespeare. O autor de Hamlet e Rei Lear foi um dos mais populares dramaturgos de seu tempo. E seu sucesso não foi acidental: sua carreira nos palcos de Londres, na virada do século XVI para o XVII, foi fruto de investimento cuidadoso e bem planejado. Ele não foi apenas ator e dramaturgo: foi um empreendedor do teatro. Ao morrer, na provinciana Stratford-upon-Avon, em 1623, Shakespeare era um homem rico. A dimensão econômica de sua vida e obra está bem esmiuçada em um livro que acaba de ser lançado: Shakespeare e a Economia (tradução de Pedro Maia Soares; Jorge Zahar; 232 páginas; 36 reais) traz dois ensaios – um de autoria do brasileiro Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, e o outro do americano Henry Farnam (1853-1933), professor de Yale e pioneiro dos estudos econômicos sobre Shakespeare – que examinam o alvorecer da economia de mercado na Inglaterra ao tempo do bardo, e o modo como a nova realidade capitalista se imprimiu em sua obra.

Não deve surpreender que os cálculos de juros, a depreciação monetária e outras realidades comezinhas do mundo financeiro tenham ingressado na literatura de Shakespeare. Como nenhum outro escritor anterior ou posterior, o autor de Macbeth concentrou virtualmente toda a imaginação e todo o saber de seu tempo na vasta síntese artística que é seu teatro. Da filosofia política de Maquiavel ao conhecimento miúdo de flores e ervas, da geografia das províncias inglesas à navegação pelo Novo Mundo, Shakespeare abarca tudo e todos. Sua obra, que expandiu a literatura inglesa e a imaginação humana, é antes de tudo produto do imponderável gênio individual – mas também é fruto de uma conjunção de circunstâncias históricas favoráveis. Quando nasceu, em 1564, Elizabeth I, última monarca da dinastia Tudor, ocupava o trono havia seis anos. Ela instaurou uma relativa paz religiosa no país até então violentamente dividido entre anglicanos e católicos, consolidou o poderio naval inglês e estabilizou, pelo menos em parte, um sistema financeiro combalido pela inflação. A corte também se tornou uma grande incentivadora das artes, incluindo o teatro. Nicholas Rowe, biógrafo de Shakespeare que escreveu no século XVIII, afirmou que a rainha teria encomendado ao dramaturgo a peça As Alegres Comadres de Windsor, pois desejava ver o bonachão Falstaff, personagem de Henrique IV, figurar em uma comédia. A anedota é provavelmente apócrifa – não ficaram registros documentais das predileções teatrais de Elizabeth.

James I, que assumiu o trono inglês depois da morte de Elizabeth, em 1603, seguiu incentivando as letras e as artes. A chamada Bíblia do Rei James – uma tradução ecumênica das escrituras, comissionada pelo monarca – é considerada um dos pilares da língua inglesa moderna (ao lado, é claro, da obra de Shakespeare). O rei também estendeu sua proteção à companhia teatral de que Shakespeare era sócio. A King’s Men, como então passou a se chamar, atuava no legendário Teatro Globe, mais popular, com ingressos baratos para os pobres que se dispunham a ver as peças em pé, e no Blackfriars, recinto fechado que atendia a um público de maior poder aquisitivo. A patronagem do rei era mais política do que financeira, como mostram os números levantados por especialistas que Gustavo Franco apresenta em seu ensaio: da receita total de 1 925 libras que a companhia de Shakespeare arrecadou no período de 1603 a 1608, as apresentações na corte responderam por apenas 50 libras (para se ter uma ideia do que isso representava então, considere-se que um artesão ou um professor ganharia entre 15 e 20 libras por ano). O grande milagre cultural do tempo de Shakespeare era o público, que acorria em massa para ouvir os monólogos metafísicos do príncipe Hamlet ou as maquinações perversas de Iago. Em uma Londres de 250 000 habitantes, estima-se que 30 000 – mais de 10% – frequentavam os teatros nos fins de semana. "O autor mais erudito de todos os tempos era popular. Essa é uma experiência histórica extraordinária, que ataca de frente a mitologia do antagonismo entre arte e mercado", disse Gustavo Franco.

O economista compara os atores e empresários do teatro de então a grandes aventureiros como o navegador Francis Drake, que se arriscavam nos mares para pilhar navios espanhóis e portugueses: eram todos investidores de risco (aliás, Shakespeare retrata com acuidade os empreendimentos marítimos e suas incertezas na peça O Mercador de Veneza). Essa nova atmosfera de aventura e risco imprime-se até na linguagem do poeta, rica em metáforas econômicas. Em Shakespeare, há sempre mais do que a primeira leitura sugere. Tome-se, por exemplo, o final do soneto 144: "Até que o anjo do mal expulse o anjo do bem". O sentido parece transparente: mesmo quem não acredita em anjos sabe bem que criatura é essa. No entanto, o verso pode incluir um trocadilho financeiro: o "anjo" era uma das várias moedas circulantes no caótico sistema monetário que Elizabeth herdou dos antecessores. O "anjo mau" seria a moeda ruim, que teve seu metal raspado, expediente comum em uma época na qual o peso da prata poderia pagar mais do que o valor nominal da moeda.

A par do surgimento da economia de mercado, outras tantas revoluções transcorriam ao tempo de Shakespeare – examinadas com rigor em uma impressionante biografia intelectual do poeta lançada no ano passado na Inglaterra: Soul of the Age, de Jonathan Bate, professor da Universidade de Warwick. Em 1579, por exemplo, o geógrafo Christopher Saxton publicou o primeiro mapa preciso da Inglaterra e do País de Gales, o que deu a seus habitantes um novo sentido de pertencimento à nação. O mapa do universo também mudava: o astrônomo Thomas Digges – enteado de um amigo de Shakespeare – começava a divulgar na Inglaterra o modelo heliocêntrico de Copérnico. Bate examina as implicações políticas da ideia de que a Terra orbita em torno do Sol, e não o contrário: acreditava-se então – e essa ideia tem eco em algumas peças de Shakespeare, como Troilus e Créssida – que a ordem política, com o monarca no centro do estado, espelhava a ordem celeste. Mexer nesses modelos era mexer com o poder. Não estranha que a legitimidade dos reis e a possibilidade de que a coroa seja usurpada estejam em causa em tantas tragédias de Shakespeare.

Não se sabe como o vírus da lite-ratura e do teatro terá contagiado o provinciano Shakespeare. Ao contrário de dramaturgos contemporâneos como Christopher Marlowe, ele nunca frequentou uma universidade. Não conviveu com a cultura de questionamento e inovação que então fermentava em centros como Oxford. Provavelmente inspirado pelo realismo político (outros diriam: pelo cinismo) de um Maquiavel, Marlowe criou heróis humanistas, contestadores da religião e da ordem monárquica – mas monstruosamente egoístas, como o protagonista da tragédia Fausto, que acaba engolido pela boca do inferno. Shakespeare, observa Bate, era mais conservador: o novo homem que emerge de suas peças ainda respeita a estabilidade da velha ordem. Mas sua obra é mais densa e rica do que a de qualquer contemporâneo – e do que a de qualquer sucessor. Shakespeare não foi superado pelo mundo que nascia então: ele ajudou a criá-lo.

domingo, 25 de abril de 2010

Hora de despertar

Nilto Maciel
niltomaciel@uol.com.br
Contista e romancista

Filho desnaturado – disseram vizinhos de Bartira.

Num Domingo de muita luz. Oliveiros beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora o espectro do sono flutuará na penumbra da sala.” Pareceu-lhe ouvir o chamado da doente e voltou. Os olhos dela o fitaram como se o fitassem há tempos, desde o princípio de tudo. “A qualquer hora seremos amputados pelo alfanje do vento “Ele a beijou de novo e arrastou para mais próximo dela a mesinha com as fitas e o gravador. Quando quisesse ouvir outra fita, bastaria esticar o braço. E garantiu voltar logo.

Presa à cama e à cadeira de rodas. Bartira quase não falava mais e pouco enxergava. Urgia arranjarem acompanhante, enfermeira ou dedicada moça. Anunciaram nos jornais. Apareceram meninotas espantadas. Mocinhas loquazes. Senhoras de fala grossa. Porém Bartira só se impressionou com uma e em razão de seu nome – Oriana. “Não precisa dormir aqui.”

Oliveiros passava o dia fora de casa, vendendo armas e munições numa loja. E aos domingos substituía Oriana nos cuidados a sua mãe.

Bartira sonhou desde de menina uma vida de palcos, platéias e famas. Quis ser dançarina, mas seu pai cortou-lhe os passos pela raiz. Quis ser cantora, porém seu pai apertou-lhe a garganta com promessas de morte. Quis ser atriz e seu pai a chamou de meretriz. Quis ser, então, poetisa bem taciturna, olhos fundos, mãos trêmulas, envolta na névoa dos versos. Noturna, quase invisível. E pôs-se a compor elegias, enquanto lia poetas. O tempo, no entanto, se encarregou de amarelar seus versos. E uma súbita paixão os queimou. O vento levou-lhe as cinzas. O pai feriu-lhe as faces, chamou-a de perdida. Fosse criar o fruto amargo de seu pecado às custas da caridade pública.

Entanto, Bartira não caiu, antes subiu aos palcos. Representou heroínas de todos os matize. Viajou muito, conheceu heróis e vilões, enquanto via crescer o pequeno Oliveiros.

No meio do caminho, porém, aconteceu a catástrofe. Um acidente paralisou-lhe parte do corpo. E Bartira voltou aos versos. “Meu filho. Leia para mim um pouco de Florbela.”

O rapazinho lia sem jeito, como se lesse prospectos. “Leia aquele poema que começa assim: ‘Sou um ser, o outro é a metade que não sei de onde veio’. Oliveiros não sabia onde encontrar o poema. Dissesse o título do poema ou do livro. Ela se punha a pensar. Finalmente lembrava um nome: “Francisco Carvalho. Sim, tenho certeza, é dele.” O rapaz ainda não se satisfazia. Como encontrar um poema no meio de tantos livros? Se ao menos o poeta tivesse um só livro. E ainda nem havia falado de si mesmo, o cotidiano, o trabalho, as armas e munições. “Mãe, vendi uma pistola a um padre.” Ela se lembrava de armas e barões assinalados, de memórias gloriosas. “Estou cansado.” E iam dormir.

Aos poucos. Mãe e filho foram aprendendo a conviver com a paralisia e a leitura. Ele não precisava catar poemas nos livros. Lesse tudo. E Oliveiros leu Anacreonte, Bilac, Camões. Foi lendo todos os livros da biblioteca de casa. Quando Bartira dormia. Ele fechava o livro e ia também deitar-se.

Chegada a vez de Zorrilla, sentia-se Oliveiros cansadíssimo. E, no entanto, sua mãe queria ouvir tudo de novo. Para fazer a seleção do melhor. Assim, quando quisesse ouvi-los outra vez, saberia onde localizá-los. “Por que não tivemos antes essa idéia?”

Outra idéia encantadora chamava-se Oriana. Limpava a casa, preparava as refeições. Cuidava de Bartira e lia versos em voz alta. “há muito te procuro na ladeira das tardes em declínio.”

Hemorragia no céu, melancolia nos olhos. “Já vou, Bartira.” E Oriana punha uma fita no gravador. “O vento que veio dentro da mansarda era um azul como os devaneios da tarde.”

A idéia de gravar poemas em fias caiu do céu. A voz de Oriana era macia, a de Oliveiros, serena. Um pouco de cada poeta.

Então o rapaz sentiu-se mais livre para voar nos ventos de sua juventude. E num domingo de muita luz beijos a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora crepitará a chama da presença.”

Demorou-se Oliveiros nos braços da noite. A madrugada o beijou mil vezes, e o afagou e o deslumbrou.

De manhã Oriana encontrou rija a patroa. Chamou vizinhos, gritou, desesperou-se. Onde andava o filho, aquele ingrato? Talvez um crime tivesse acontecido. Solicitaram a polícia. Acionaram o gravador. “A qualquer hora seremos impelidos para o terrível despertar”.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

No Antigo Egito

Carlos Emilio C. Lima
carlosemiliobarretocorrealima@yahoo.com.br
Escritor, Poeta, Editor, Ensaísta e Antidesigner

Os egípcios que eu conheci não tinham rugas e possuíam crânio duro onde o sol não penetrava. Suas faces eram tão lisas que da pele a barba não brotava. Eles são tão fortes e donos de si mesmos que desvendaram os segredos antigos e já nada mais precisam descobrir. Controlam os rios infindáveis do passado. Eles governam um país fértil e ilimitado que conhecem a cada palmo, detalhe e reentrância. Da mesma forma que conhecem até a vertigem as origens do longo rio que banha as margens onde vivem, se alimentam e sobrevivem, eles conhecem os sons da cachoeira da sabedoria. Não vivem das brisas da noite mas a habitam, suas riquezas poderosas e cavernas permanecem eternamente à sua disposição. Eles são sábios de todas as sendas. Já fizeram todas as viagens, exceto uma. O sacerdote do tempo de Amon, uma vez, contou que há havia invadido as regiões tenebrosas do mar Atlântico com um pequeno exército de mergulhadores, tendo apenas ele retornado com vida. Ainda hoje, ouve-se por mínimos orifícios perfurados nas paredes de granito polido do templo as vozes e os gritos suaves desses desaparecidos nos confins do Atlântico invernal. Porque os egípcios estão indissoluvelmente ligados a esse oceano nos limites finais do Ocidente e é por isso que sua ancestralidade é tão misteriosa. Eu mesmo assisti, num certo entardecer inesquecível nas margens do Nilo à chegada de um estranho homem que se apresentava inteiramente desnudo, exposto por completo ao ardente clima daquela nação. Ele fora trazido num barco de papiro de um dos deltas extremos do grande rio que atravessa todo o país por uma guarnição das fronteiras e acabava de descer na praia onde eu conversava com os sacerdotes. Ele era moreno e tinha cabelos fartamente crescidos, lisos e negros como noites sem lua cheia. Era imberbe como os egípcios e nenhum outro tipo de barba contornava a sagrada região da fecundidade. Foi colocado numa liteira. Transportado nos ombros dos sacerdotes, foi levado pelas ruas de Mênfis em aclamação. Perguntei-lhes se aquele homem viera de algum sítio ou país relegado ao esquecimento no Oriente. Eles não quiseram me responder nada que pudesse me informar a verdadeira origem do homem que viera do longínquo. Sei que, o cortejo chegado ao templo, ele foi sacrificado. Sua cabeça cortada e mumificada para servir de oráculo para as gerações futuras. O restante do corpo foi sepultado no labirinto do lago dos crocodilos situado muitos dias de viagem de Mênfis. Nunca esquecerei na memória esse episódio que tive a honra de presenciar: a vinda de um deus para habitar entre os homens. Construíram-lhe um templo de dimensões consideráveis. Nele colocaram a cabeça preciosa num nicho. E pela boca dessa cabeça saem palavras que orientam a vida de milhões de pessoas. Esse novo deus incorporado ao panteão dos egípcios, irá com o passar dos anos e dos séculos mais e mais influenciando a mentalidade sempre em desenvolvimento desse povo tão sábio e , para nós, estrangeiros, tão incompreensível.

Nada me relataram os sacerdotes sobre a origem e o passado desse deus que eu mesmo contemplei naquela tarde memorável. Para que nenhum estrangeiro se aproxime desse conhecimento, eles guardam o mais profundo silêncio quando acerca dele são indagados. O povo, todo o povo não pronuncia o nome desse deus cujo sentido para mim é inexpugnável. E por isso o deus continua sem nome.

Atualmente, seu nome só é ouvido nas fanfarras que o povo toca nas celebrações diante de seu templo, ao entardecer. Tive acesso à cabeça. Seus olhos são muito apertados como os dos mongóis. Seus lábios são grossos, estilizados num eterno sorriso de complacência. Mas tenho uma explicação que gostaria de dar aos meus leitores. Acho que esse deus partiu de um inacessível continente por detrás do Grande Oceano, onde habitam os deuses do Egito. O nome que os egípcios dão a esse continente é o de uma árvore que produz cera e palha, muito semelhante à palmeira encontrada nas margens do Nilo. Foi-me dito também que só há três mil anos um outro deus compareceu à presença dos homens e que esse deus era o nosso grande Apolo, que os egípcios chamam de som. Durante três mil anos ninguém pronunciou o nome desse deus. Terminado o ciclo, o nome do deus revelou-se, através de músicas no crepúsculo, que todo o povo compreendeu. Agora o mesmo fenômeno recomeça a acontecer. Dizem também os povos das margens do Nilo que foi assim que foram lentamente sendo conhecidos os deuses, que no princípio não havia nenhum e que os homens viviam como plantas, nas regiões das florestas. O primeiro deus trouxe a carne bovina. O segundo deus trouxe a flauta e uma ampla doutrina que se estendeu pelas planícies e campos e que passou a ser obedecida. E assim por diante. O deus do qual presenciei a vinda foi o décimo segundo deus, o último deus. Portanto, isso quer dizer que nenhum outro deus brotará do mar-oceano e que o panteão dos egípcios finalmente erige-se completo. Acho que, portanto, esse deus veio vindo do mar do ocidente e aqui aportou solenemente. Uma noite fui ao templo e pude ouvir a voz do deus impronunciável. Falava em língua para mim inteiramente nova e inédita. Pareceu-me um tipo de língua que só existirá no futuro. Nenhum dos radicais gregos são percebidos ali. A língua tem uma fluência perpétua que alucina os peregrinos ata a demência. As pessoas se atiram no chão e passam a se contorcer freneticamente ao som fantasmagórico daquela voz soberana que é o fluxo de uma nova, inconcebível linguagem. Acredito que os sonhos que têm durante a noite são mais longos e mais repletos de símbolos e que essa é a maneira de fazerem a tradução das palavras do deus. Também pode ser que entendam imediatamente as frases pronunciadas e que essa faculdade só exista presente nos verdadeiros egípcios. Minha afirmação, de que os sonhos são o rio tradutor da esteira fremente de verbos do deus, reside no fato de que eu próprio experimentei tão fascinante alucinação. Não me prostrei por terra, nem pratiquei atos primitivos, mas depois de um crepúsculo remoto que vislumbrei atrás das cordilheiras de pedra do oeste e que contornam o Egito nessa parte, fui para o leito da estalagem rústica em que me hospedara e sonhei que do outro lado do mar, além de nossa respiração, e de todos os nossos desejos, no outro lado do imenso oceano, que vai além de nossos distantes pensamentos, há um continente envolto em densas nuvens de chuva, coberto por florestas tão espessas como nenhuma aqui no Ocidente, e por desertos tão ardentes e extensos como não se tem notícia. Em meu sonho, sobrevoei esse continente como se estivesse possuído de asas invisíveis. Do alto e em grande velocidade, pude perceber uma quantidade inumerável de cidades tão gigantescas que nenhuma atenção poderia abarcar, todas elas ligadas por um infindável número de estradas. Nelas pude notar também pirâmides como as que no Egito foram erigidas já há muitos séculos, pirâmides que despontavam no meio da floresta irrigada por rios sufocantes. Acordei quando o som dos pássaros e animais da floresta distante tornou-se insuportável. E eram gritos, cantos bizarros e desconhecidos.

Desperto do sonho, fiquei desnorteado por todos os nortes. Minha alma seguia em ventos para o sul. Desci as escadarias tortuosas do bairro de casas circulares onde vivia no Egito e segui, a passos rápidos, para o labirinto dos crocodilos, muitos dias de viagem dentro do sol. Havia perdido minha alma para sempre. Uma tempestade volumosa, acumulada desde os confins do ocidente, passava furiosamente sobre Mênfis.

Naquela manhã vazia, pesada, cheia de calor, senti que algo de espantoso ocorrera e que era um fenômeno incontrolável. Todos os edifícios da cidade erigiam-se secos, sem vida, como se os homens que agitados ali viviam não pudessem mais existir por muito tempo. As casas, caladas, com a areia do deserto tiniam pela força da luz infinita. O suor já não porejava em nossa pele que contorna nossos corpos. Nos espelhos de metal, plantados em cada encruzilhada, não percebíamos o olhar de nossos olhos. Eles não luziam mais como antigamente. Nem músicas nem cantos, nem danças, nem mortificaçções trariam de volta o brilho que, antes, encerrava-se contínuo. Todos os habitantes da cidade de Mênfis precipitavam-se pelas ruas, sentindo que algo de essencial havia partido definitivamente de todos eles. Com o chegado décimo segundo deus a grande alma do Egito, que se erguia como uma cúpula de som e de silêncio, fez-se dispersa e rumou para o Oriente, no curso infalível dos rios de vácuo que giram em torno da Terra interminavelmente. O Egito estava seco, sem água, a fome tornara-se atmosfera poderosa.

Naquele dia, o último faraó morrera sem deixar descendentes e um pavor sem fim tomava conta dos homens, sem direção e destino. Somente corpos éramos e ébrios de dor e prazer gritávamos alucinados pelas ruas em busca de um centro. Multidões aflitas infladas por um demônio do deserto que não denominamos porque ali mesmo, no pó das ruas incendiadas pelo vazio, poderíamos morrer, seguiam em grandes ondas para o templo do deus recém-chegado. Todos queríamos destruir o templo. Eu mesmo, um estrangeiro, era dominado por aquela força de desespero. Não tinha como voltar do caminho. O templo ficava no meio da estrada serpenteante, construído entre vagas e afiadas pedras, no meio dessa estrada que nos leva ao labirinto da eternidade.

Não restou pedra sobre pedra. Entre gritos e guinchos, as picaretas e as mãos enrijecidas e fortalecidas pelo desespero da perda da grande alma total de todos os povos da extensa região do Egito, dizem que a mais velha do mundo, o templo foi reduzido a pó e a cabeça do deus levada em procissão para o labirinto dos crocodilos em muitos dias de viagem de fome e sede finais. É a maravilhosa e estranha história dessa viagem até o templo da natureza, o templo do universo, que agora vou lhes narrar, contando a história de seis viajantes...

terça-feira, 6 de abril de 2010

Sonolento?

(Salvador Dalí)

Rodrigo C. Vargas

Alguns pensam que pensam e tem sono
É melhor dormir

Pensar acordado pode causar transtorno
Descobrir que dormindo se pode ser outro alguém
Diferente, dono dos pés

É melhor não pensar e nem ouvir
O som pode ser barulho
Não é assim que um dia chamaram o Jazz?

Bom mesmo é não pensar, não ouvir e não ver
Principalmente o reflexo no espelho
Eu e você

De um bom conselho eu não fujo
Fique acordado!

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Aristóteles

(Rembrandt)

Franklin Leopoldo e Silva
franklin@usp.br
Professor titular de história da filosofia moderna e contemporânea da faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da USP

Enquanto Platão busca a verdade em um mundo das idéias, a procura no mesmo plano do contato prático e perceptivo com a realidade

Tal como seu mestre Platão, também pretende alcançar a inteligibilidade do mundo, isto é, estabelecer as condições de um conhecimento racional que vá além das aparências ou do contato imediato com as coisas. Mas, diferentemente de Platão, não busca atingir esse objetivo por meio da separação entre aparências sensíveis e idéias inteligíveis, existências contingentes e essências absolutas; opta por um outro caminho que é o de tentar encontrar o que há de essencial e de inteligível no próprio âmbito da realidade que nos é dada. Podemos dizer, simplificando bastante, que Platão busca a verdade em um mundo transcendente (o mundo das idéias, distinto do mundo sensível) e a procura em uma ordem imanente ao mundo percebido, isto é, no mesmo plano em que desenvolvemos nosso contato prático e perceptivo com a realidade.

Essa diferença, decisivamente importante para entender os dois autores e as vertentes filosóficas a que dão origem, não nos deve fazer esquecer, no entanto, que ambos consideram que há uma nítida distinção entre o conhecimento sensível e o intelectual, e que o segundo é hierarquicamente superior ao primeiro. O que rejeita em Platão é a interpretação dessa diferença como separação e a conseqüente duplicação da realidade em dois mundos, o que faz do processo de conhecimento uma ascensão metódica do mundo sensível ao mundo inteligível e, no limite, o abandono dos conteúdos sensíveis em prol da intuição das formas inteligíveis.

Para , o conhecimento consiste em descobrir no sensível as condições de sua própria inteligibilidade. Pressupõe-se, então, que é possível passar de um primeiro contato com a multiplicidade contingente das coisas percebidas ao conhecimento intelectual da ordem e da estrutura, ou seja, é possível transformar a experiência imediata em compreensão teórica mediada por categorias e princípios que nos permitem saber não apenas que as coisas existem, mas também como e por que elas são tais como se apresentam aos nossos sentidos e ao nosso intelecto.

Dentre as condições ou requisitos de inteligibilidade destaca-se a causalidade: quando entendemos que a gênese e a estrutura de tudo que existe depende de causas, atingimos um patamar de ordem e de articulação em que todos os elementos das coisas tornam-se explicáveis. Entendemos que algo existe porque é feito de uma determinada matéria; que obedece a uma certa forma; que o fato de algo vir a existir depende de uma ação e de um agente e que se destina a alguma finalidade. Assim podemos articular a imensa variedade do real com a unidade intelectual de uma noção que nos permite compreender a pluralidade e a composição pela unidade e pela simplicidade. Da mesma maneira compreendemos que a variedade das qualidades que apreendemos nas coisas articula-se em torno da substância ou essência, o atributo principal que confere à multiplicidade qualitativa, em muitos aspectos acidental e passageira, a unidade de uma coisa, uma realidade dotada de permanência.

A visão dessa ordem é também o impulso para que procuremos seu princípio e sua razão de ser, o elemento primeiro que dá origem ao universo dos fenômenos e que deve ser entendido como Causa na acepção mais elevada, porque sua posição o coloca como absoluto, isto é, uma existência que deve ser pensada como independente de qualquer outra condição. Passando assim da Filosofia Natural à Filosofia Primeira realizamos o conhecimento no mais alto grau que o ser humano possa alcançar; realizamos o propósito implicado na Filosofia como amor ao saber ou como o desejo de saber que anima naturalmente, segundo , todo ser racional.

E por que nos deixamos levar por esse amor e esse desejo? Certamente não nos move qualquer motivação utilitária; a filosofia nada acrescenta à nossa prática natural, à nossa vida estritamente cotidiana. diz mesmo que a filosofia começa quando já estão estabelecidos os meios de satisfazer as necessidades imediatas. A questão é que, quando já temos tudo de que aparentemente necessitamos, um outro desejo nos assola, um outro objeto de amor; e a ele nos dirigimos não movidos por necessidades práticas, mas simplesmente pela admiração, um estado de ânimo que abre a nossa mente para investigar não aquilo de que precisamos, mas aquilo que admiramos e diante do que nos colocamos como que perplexos e tomados por um sentimento de ignorância infinitamente maior do que tudo que já sabemos. Trata-se de um espanto proveniente de que sentimos que tudo que sabemos é nada frente ao que há para saber.

A ignorância filosófica é, portanto, o fundamento da liberdade de saber; pois se trata de um conhecimento que procuramos movidos pela admiração, que é algo como uma espontaneidade gratuita quando comparado à necessidade, à urgência de saber aquilo de que precisamos para viver. Quando submetidos à necessidade, somos menos do que homens, somos escravos; quando movidos pela admiração, quase superamos a condição humana, pois nos colocamos na via de um saber divino: mesmo que não o alcancemos, diz , nossa dignidade está em buscá-lo.