quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Emily Dickinson e a voz da imortalidade

Pedro Maciel
pedro_maciel@uol.com.br
Cronista

Emily Dickinson (1830/1886) inaugura a fase moderna da poesia norte-americana. Coube a ela, com suas imagens e visões, criar uma nova estética. Emily tratou de temas universais, como a vida e a renúncia, o amor e a dor, a fé e Deus e, sobretudo, a imortalidade. Emily, com seu espírito atormentado, e desesperançado abordou ao mesmo tempo a morte e a imortalidade. Aflorou suas agonias e êxtases para transcender desse mundo rotineiro e banal: “Viver é assombroso, nem deixa lugar para qualquer outra ocupação”. Ela viveu reclusa quase a vida toda na cidade onde morava, Amherst, em Massachusetts.

Emily não publicou nenhum livro em vida. Em 1862 o crítico Thomas Higginson recebia uma carta da poeta pedindo sua opinião sobre quatro poemas. O crítico ficou perplexo com as inovações estéticas e escreveu-lhe pedindo para adiar a publicação dos poemas. Emily respondeu: “Sorrio quando você sugere que eu protele a “publicação” _ o que está longe de meus projetos, como o firmamento dos dedos _ se eu conhecesse a fama, eu não poderia fugir a ela _ se não a conhecesse, ela me perseguiria o dia inteiro _ e eu perderia a aprovação de meu cachorro _ minha condição de mendigo é melhor.”

Os poemas de Emily foram publicados em 1890, quatro anos após a sua morte, numa edição de 480 exemplares, custeados pela sua irmã mais nova. Só em 1954 toda a sua obra (1.775 poemas), ganha uma edição completa e definitiva. Os editores e críticos alegavam que “os poemas são bizarros e as rimas enviesadas”.

Poeta “inspirada”, incompreendida em sua época, seus versos revelam a ruptura do ritmo cadenciado dos românticos, a sintaxe telegráfica, a condensação do pensamento e mostram a livre pontuação com travessões, substituindo os pontos e vírgulas e criando poemas fragmentados, já totalmente modernos.

“50 Poemas”, de Emily Dickinson (Ed. Imago), traduzidos por Isa Marà Lando, infelizmente, é um equívoco de interpretação. Os poemas se perdem na busca do ritmo e das idéias que jogam com a analogia, essência do método dickinsoniano de poetar.

Talvez o poeta devesse ser traduzido apenas por um outro poeta. Afinal, nem todos dominam a melodia “controlada por palavras-chave, cada parte expressando o todo”, e nem a alteração da batida métrica que “retarda ou acelera o próprio tempo” _ dimensões que nem sempre são apreendidas pelos tradutores ou críticos.

No Brasil, Augusto de Campos, em “O anticrítico” (Cia das Letras) e Ana Cristina César, tradutora de alguns poemas publicados em suplementos, conseguiram transcriar a densidade de Dickinson. “Emily é intraduzível, e em português mais do que qualquer outra língua. Tínhamos alguma suspeita disso. Terrível Emily! Realiza o máximo de magia com o mínimo de sons...”, anotou o crítico Paulo Rónai na introdução de “Uma centena de poemas”, tradução de Aíla de Oliveira Gomes (Queiroz Editor).

Para concluir esta breve notícia sobre a poesia de Emily Dickinson, é bom ressaltar que, ela e Walt Whitman (os dois principais nomes da poesia norte-americana do século 19), não falam a mesma língua poética. Emily filia-se à tradição apolínea, ao contrário de Walt Whitman, autor do épico Leaves of Grass, poeta dionisíaco, peregrino, uma espécie de avô dos beats, cantador que mapeou a nova terra americana.

Enquanto Emily é poeta dos monossílabos, da linguagem sintética, das verdades nas entrelinhas: “Dizer toda a verdade, mas obliquamente”. Na poesia de Emily os versos falam baixo, fazem um silêncio quase religioso. Não há lamento, choradeira ou autopiedade, e sim a experiência sensível, pronta para resgatar o mundo metafísico e lúdico para o nível humano, demasiadamente humano.

***

Duas versões para um mesmo poema

Quem está morrendo, amor,
Precisa de tão pouco:
Um copo d’água, o Rosto
Discreto de uma Flor,
Um Leque, talvez, Uma Dor Amiga,
E a Certeza que nenhuma cor
Do Arco-Íris perceba
Quando embora for.

(Tradução de Ana Cristina César)

The Dying need but little, Dear

The Dying need but little, Dear,
A Glass of Water’s all,
A Flower’s unobtrusive face
To punctuate the Wall,
A Fan, perhaps, a Friend’s Regret
And Certainty that one
No color in the Rainbow
Perceive, when you are gone.

Quem morre, Querido, de pouco precisa

Quem morre, Querido, de pouco precisa
Apenas um Copo d’Água
O Rosto discreto da flor
Pontuando a Parede lisa,
Um Leque, talvez, do Amigo a Mágoa
E a certeza de que alguém
No Arco-Íris não verá mais cor
Depois que você se for.

(Tradução de Isa Marà Lando)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Flor: Bela ou Espanca?





Márcia de Oliveira Pinto
marciadeopinto@hotmail.com
Jornalista

Quem é realmente Florbela Espanca? Apenas mais uma poetisa romântica e exagerada de subjetivismo? Ou uma poetisa à frente se seu tempo? A poetisa eleita, aquela que diz tudo e tudo sabe? Nos versos de Eu, ela nos diz: “Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte, Sou a crucificada... a dolorida...”. Estes versos corroboram a confissão presente no livro “Afinado Desconcerto (Contos, cartas e diário)” (2002) que traz o escrito de 11/01/1930 do seu diário: “Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo – uma alma – se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me.” E para conhecer Florbela, só há um caminho a seguir: sua poética.

A crítica anuncia o surgimento poético de Florbela desligado de preocupações de conteúdo humanista ou social. Uma poesia exagerada, carregada de sentimentalismo, acusada de ser piegas, adocicada, redundante e melodramática. Maria Lúcia Dal Farra no prefácio de “Poemas” (1996) nos informa que Florbela foi ignorada por completo pelo público leitor e pela crítica. “Sua obra tinha sido vagamente saudada na altura, pelos comentaristas de plantão, como mais uma das (abundantes e inexpressivas) flores do galante ramalhe das poetisas de salão”.

É certo que o universo temático de Florbela centra-se no Amor e em seus derivados. E o que é o amor senão algo extremamente humanista e social? A sua obra poética evidencia uma ampla gama de estados emocionais ligados ao amor, desde a exaltação dos sentidos (entrega por inteiro), até ao desejo de sacrifícios, oscilando entre momentos de plenitude e de grande fragilidade emocional, decorrentes dos permanentes e eternos desencontros das relações amorosas. Veja nos versos de Inconstância: “E este amor que assim me vai fugindo, É igual a outro amor que vai surgindo, Que há de partir também... nem eu sei quando...” Mesmo assim, para Florbela, amar é o que importa. Esta experiência única é a força motriz da sua alma, e por isso ela quer “Amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém!”

O amor sugere um sentir onde o erotismo é um ingrediente presente. “Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente, Tudo o que é vida e vibra eternamente, É tu seres meu, Amor, e eu ser tua!”. O Erotismo é exaltado em vários escritos que para a época se consideravam impróprios. Tudo produto duma moral que interditava a mulher de exprimir seus desejos e o seu prazer sexual. As sugestões mais ousadas sobre sexo eram tidas como degradação ou como provocação. Foi por isso que o “Livro de “Sóror Saudade””(1923) foi considerado um livro mau, desmoralizador para a sociedade da época. Mas o que Florbela pretende é romper com os comportamentos tidos como convenientes e moralmente correto. Ela serve-se de múltiplos motivos para dar vida aos seus poemas e para transpor para o que escreve as suas vivências pessoais. “Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver, Pois que tu és já toda a minha vida!”. Nos versos do famoso poema “Fanatismo” podemos identificar a veemência passional da sua linguagem, marcadamente pessoal, centrada nas suas próprias frustrações e anseios.

A sensualidade, o erotismo, a morte e o sonho são elementos que combinados, adquirem uma feição positiva. Para Florbela “a morte ganha uma avaliação positiva, de um universo liberto das cadeias da convenção, das hierarquias, das referências codificadas, da proibição, das restrições. E o motivo do sonho e o da morte se imbricam então para compor esse estado paralelo ao real, que descobre um espaço de marginalidade, habitado apenas pelo princípio feminino”. Como nos versos de Súplica (II): “Vem pra mim, amor...Ai não desprezes, A minha adoração de escrava louca!, Só te peço que deixes exalar, Meu último suspiro na tua boca!...”

É notável, como o erotismo, tabu feminino, até então, e ainda para além do seu tempo é um dos traços mais inovadores e importantes da sua poética. Ela aspira a um estado ilimitado, definido, simbolicamente, pelo desejo sexual, o que faz com que alguns dos símbolos que percorrem a sua obra tenham claras conotações eróticas. “Frêmito do meu corpo a procurar-te, Febre das minhas mãos na tua pele (...) Estonteante fome, áspera e cruel, Que nada existe que a mitigue e a farte!”. Ao mesmo tempo, assiste-se a uma espiritualização do erotismo e a uma conversão, que, simultaneamente, reprime o erotismo, mas não lhe consegue resistir. Observe os versos de Volúpia: “No divino impudor da mocidade, Nesse êxtase pagão que vence a sorte, Num frêmito vibrante de ansiedade, Dou-te o meu corpo prometido à morte! (...) E do meu corpo os leves arabescos, Vão-te envolvendo em círculos dantescos, Felinamente, em voluptuosas danças...”.

As prerrogativas eróticas masculinas transformam-se em femininas, como a atualizar e a desmistificar, a partir da sua própria experiência de mulher, o verdadeiro agente da dependência. “Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços... – São teus braços dentro dos meus braços, Via Láctea fechando o Infinito.”

Marcada de um forte ímpeto passional, a obra de Florbela revela e acentua esse erotismo que contagia o sujeito poético. Florbela dá o primeiro passo rumo à livre abordagem da intimidade feminina e à acentuação de um erotismo que subverte a tradição que é dominado pelo masculino, revelando assim, uma pulsão erótica, em que o eu feminino da poetisa se afirma. Essa gradual afirmação do eu feminino culmina com a exaltação da beleza e das capacidades de sedução exercidas pela mulher. “Mas eu sou a manhã: apago estrelas! Hás de ver-me, beijar-me em todas elas, Mesmo na boca da que for mais linda! E quando a derradeira, enfim, vier, Nesse corpo vibrante de mulher, Será o meu que hás de encontrar ainda...”.

A poetisa quebrou preconceitos, dogmas, algemas e correntes, porém não pode quebrar todos. Florbela não pode ser separada da sua condição de mulher e das suas paixões na sociedade em que vivia. Mas tentou, como revela nos versos de A mulher: “Sê forte, corajoso, não fraquejes, Na luta; sê em Vênus sempre Marte”. Em uma carta enviada a um amigo em 27/07/1930, ela pergunta: “Incompreendida! Que quererá isto dizer? Quase nada... quem não compreende sou eu; eu é que não compreendo os outros, os seus prazeres, os seus gostos, as suas fontes de água clara onde se lavam e onde se contemplam.”.

Florbela d’Alma da Conceição Espanca não se ligou claramente a qualquer movimento literário. Para alguns estudiosos ela é Simbolista, para outros Modernista. O que podemos afirmar é que sua poesia apresenta um caráter confessional, sentimental. Poetisa de excessos sim, com voz marcadamente feminina. Mesmo acusada de pecar por exagero, sua poesia tem suscitado interesse contínuo de leitores e investigadores. É tida como a grande figura feminina das primeiras décadas da literatura portuguesa do século XX.

Sua poesia é Bela e Espanca! Bate na alma, fala ao coração. Encanta, emociona, intriga, arrebata. Como afirma Roland Barthes (1974), a literatura é sempre uma perversão, ou seja, uma prática que visa abalar o sujeito. Nesse sentido Florbela cumpriu o papel pervertido de desestabilizar o leitor e provocar a catarse necessária a toda obra de arte.