quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Literatura e Mídia

Nilto Maciel
niltomaciel@uol.com.br
Escritor e critico

Publicam-se todo ano no Brasil milhares de livros de poesia e prosa de ficção, quase sempre às custas dos próprios autores e em pequenas tiragens. A maioria desses livros não chega às livrarias, que hoje se dedicam a vender obras científicas (literatura médica, por exemplo), jurídicas, religiosas, filosóficas, infantis, ao lado de livros de auto-ajuda, política, amenidades, romances norte-americanos de segunda categoria e os clássicos da literatura universal e nacional.

O fim da editora tradicional talvez já tenha chegado. A literatura já estaria praticamente fora dos interesses dos editores e livreiros. A exceção a esta regra seriam os clássicos, que têm, como leitores, estudantes e escritores. A literatura nova (presente e futura) será editada por conta dos próprios autores ou pequenas editoras.

Para alguns escritores, as editoras não investem em literatura (daqui em diante empregarei o termo literatura apenas para me referir à poesia e à prosa de ficção), a mídia não dá a mínima importância ao livro, não há editoras e livrarias em número suficiente para acolher todas as obras escritas etc. E aí estaria o grande problema do escritor. No entanto, críticos e jornalistas acreditam mais na incapacidade de comunicação da maioria dos escritores com o leitor, uns por serem pobres de talento e conhecimento, outros por terem muito talento e conhecimento e se isolarem na torre de marfim da poesia para poetas, do romance para romancistas etc. Muitos escreveriam para si mesmos ou para outros escritores. Seria uma literatura para iniciados, como se a literatura fosse a linguagem de uma sociedade secreta, com seus símbolos próprios. Seria a literatura fora de mercado, não-mercantil, em contraposição à subliteratura e a uma literatura “popular”, do gosto das massas.

Edgar Morin, em Cultura de Massas no Século XX (O Espírito do Tempo), teoriza: “A corrente média triunfa e nivela, mistura e homogeneíza, levando Van Gogh e Jean Nohain. Favorece as estéticas médias, as poesias médias, os talentos médios, as inteligências médias, as bobagens médias. É que a cultura de massa é média em sua inspiração e seu objetivo, porque ela é a cultura do denominador comum entre as idades, os sexos, as classes, os povos, porque ela está ligada a seu meio natural de formação, a sociedade na qual se desenvolve sua humanidade média, de níveis de vida médios, de tipo de vida médio.”

E acrescenta: “Um exemplo de vulgarização ininterrupta esclarecerá esse propósito: O Vermelho e o Negro de Stendhal se torna um filme adaptado aos padrões comerciais; desse filme nasce O Vermelho e o Negro, folhetim em quadrinhos publicado num diário.”

Esses escritores não-mercantis não estariam voltados para o leitor, para o outro, mas para si mesmos. Segundo Emanuel Medeiros Vieira, “escrevemos para perdurar, para vencer a poeira do tempo, para despistar a morte, para regar nossos fantasmas e obsessões, para nos comunicar”. Porém como vamos os escritores nos comunicar com os leitores? Se escrevermos para nós mesmos, não haverá comunicação, e escrever será apenas catarse, psicoterapia, auto-análise.

Haveria, então, uma literatura sem mercado ou fora dele e uma literatura produzida especialmente para o mercado. Os livros produzidos para o mercado têm cotação: os mais vendidos, os best-sellers, os que interessam diretamente às editoras, aos livreiros e à mídia. Segundo Juan Liscano, em entrevista a Floriano Martins, no livro Escritura Conquistada: “Enquanto o best-seller, um produto para o mercado, constitui hoje em dia a meta da literatura, a poesia situa-se no extremo contrário, representando, portanto, o não mercantil literário, o trabalho nobre artesanal, o ofício tradicional, mesclado com as funções xamânicas de expressar o humano em transe de universalização arquetipal (a tribo de que falou Mallarmé).” Não está descartada a hipótese de uma obra literária tornar-se best-seller. Porém isto se dará quase que por acaso ou dependendo do merchandising do editor. Assim, um grande romance pode em determinado tempo tornar-se o mais vendido em algum país ou em parte do mundo. Foi o caso dos Versos Satânicos, de O Nome da Rosa e outros.

São ainda de Edgar Morin as seguintes observações: “Em certo sentido aplicam-se as palavras de Marx: “a produção cria o consumidor... A produção produz não só um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”.

De fato, a produção cultural cria o público de massa, o público universal. Ao mesmo tempo, porém, ela redescobre o que estava subjacente: um tronco humano comum ao público de massa.

Em outro sentido, a produção cultural é determinada pelo próprio mercado. Por esse traço, igualmente, ela se diferencia fundamentalmente das outras culturas: estas utilizam também, e cada vez mais, as mass-media (impresso, filme, programas de rádio ou televisão), mas têm um caráter normativo: são impostas, pedagógica ou autoritariamente (na escola, no catecismo, na caserna) sob forma de injunções ou proibições. A cultura de massa, no universo capitalista, não é imposta pelas instituições sociais, ela depende da indústria e do comércio, ela é proposta. Ela se sujeita aos tabus (da religião, do Estado etc.), mas não os cria; ela propõe modelos, mas não ordena nada. Passa sempre pela mediação do produto vendável e por isso mesmo toma emprestadas certas características do produto vendável como a de se dobrar à lei do mercado, da oferta e da procura. Sua lei fundamental é a do mercado.”

Em outra página o filósofo francês acrescenta: “No entanto, se nos colocarmos do ponto de vista dos próprios mecanismos do consumo e do ponto de vista do tempo, podemos considerar que ao longo dos anos, os temas que desabrocham ou desfalecem, evoluem ou se estabilizam no cinema, na imprensa, no rádio ou na televisão, traduzem uma certa dialética da relação produção-consumo.

Não se pode colocar a alternativa simplista: é a imprensa (ou o cinema, o rádio) que faz o público, ou é o público que faz a imprensa?

A cultura de massa é imposta do exterior ao público (e lhe fabrica pseudo-necessidades, pseudo-interesses) ou reflete as necessidades do público? É evidente que o verdadeiro problema é o da dialética entre o sistema de produção cultural e as necessidades culturais dos consumidores. Essa dialética é muito complexa, pois, por um lado, o que chamamos de público é uma resultante econômica abstrata da lei da oferta e da procura (é o “público médio ideal” do qual falei) e, por outro lado, os constrangimentos do Estado (censura) e as regras do sistema industrial capitalista pesam sobre o caráter mesmo desse diálogo.
A cultura de massa é, portanto, o produto de uma dialética produção-consumo, no centro de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade.”

Na verdade, o grande problema do livro não está na distribuição, ao contrário do que afirmam algumas pessoas. Porque mesmo que as livrarias - que são poucas no Brasil - aceitassem os livros de todos os escritores, ou de grande parte deles - mesmo assim não estaria garantida a comercialização dos livros editados. Não há leitor para literatura, especialmente poesia e prosa de ficção. A circulação das obras literárias é e deverá ser sempre restrita a outros escritores, estudiosos, pesquisadores, críticos, estudantes etc. Livros com distribuição garantida a todas livrarias e bancas de revistas são aqueles livros produzidos com os ingredientes da violência, cenas de sexo, drogas etc. Os best-sellers norte-americanos são o melhor exemplo desse tipo de “literatura”.

As livrarias não aceitam livros editados por pequenas editoras, geralmente criadas por um escritor para editar os próprios livros. E quem são os escritores que têm leitores? Os melhores? E quem são os melhores? Geralmente os melhores são eleitos pelos professores de literatura e pelos críticos. Os primeiros, talvez por falta de tempo, já chegam às cátedras das Faculdades de Letras com os mesmos nomes de sempre, os escritores que leram e estudaram: Fernando Pessoa, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Manuel Bandeira e poucos outros. Mesmo grandes poetas e prosadores são esquecidos, como Jorge de Lima. Dirão: daqui a 50 anos outros nomes serão incluídos nessa lista dos melhores. Será a sua vez - dizem, como consolo ao escritor de hoje. O grande público, porém, não conhece esses bons escritores. Isto é, um pequeno número de pessoas, ilustres leitores e estudiosos, seleciona os melhores.

Moacyr Scliar resumiu a questão escritor-leitor, valendo-se de palavras de outros grandes escritores: “Quem não espera um milhão de leitores não deveria escrever, dizia Goethe, mas desde então as expectativas têm sido mais modestas. Stendhal: “Escrevo para apenas cem leitores, e desses seres infelizes, amáveis, encantadores, conheço apenas um ou dois”. Arthur Koestler levou mais adiante a fórmula dos “cem leitores”: uma centena, sim, mas que possam ser trocados por dez ao cabo de uma década e por um único no fim de um século.” (Revista Literatura n.º 3, dezembro, 1992).

O público de jornal, de revista semanal e de televisão não tem interesse por literatura. Mesmo a literatura mais banal, mais popularesca, mesmo essa não tem grande público. Daí a mídia não ter interesse nela. Ora, a política, nacional e internacional (agora mais do que nunca, com a globalização da informação), os esportes, o crime, a música pop têm público, grande público. Daí as muitas páginas nos jornais. E os melhores horários na televisão.

Eloésio Paulo, em seu recente Teatro às Escuras - Uma Introdução ao Romance de Uilcon Pereira, afirma: “A propósito das relações entre o texto literário e o padrão de comunicação estética estabelecido pelos veículos de comunicação de massa, o poeta João Cabral de Melo Neto já apontava em 1954 para a necessidade de um comércio maior entre as formas poéticas e novos meios de difusão. Cabral destacava principalmente as virtualidades do rádio como difusor da poesia; apresentava, como uma direção inevitável para o poeta moderno, reformular sua posição enquanto agente de um processo de comunicação, ao mesmo tempo mantendo a alta elaboração estética na base de seus objetivos e procurando abrir-se à possibilidade de atingir o grande público. Via-se o poeta, portanto, diante de um impasse representado pela concorrência dos mass media, que por outro lado encerrava, dialeticamente, a própria saída ou solução, já que o tornar a poesia capaz de “entrar em comunicação com os homens nas condições que a vida moderna oferece” era, para Cabral, a “contraparte orgânica” da luta pela expressão poética desobstruída do tom oratório característico do lirismo tradicional.”

E diz mais: “Se a ficção do período (anos 50 e 60) não ignorava a cultura de massas, é certo que encerrou a problemática em outros termos, distanciando-se do mundo racionalmente administrado da sociedade em industrialização para mergulhar nos impasses da consciência individual e nas indagações metafísicas, coincidindo os escritores mais importantes numa pesquisa estética em nada dirigidas para a massificação da literatura.”

Há alguns anos os jornalistas eram, antes de tudo, escritores, como Machado de Assis e outros. Os donos dos jornais ou os editores-chefes precisavam desses escritores. Sem eles, não teriam como editar seus periódicos. Daí também os suplementos literários, que certamente nunca ressurgirão. Não havia ainda os cursos de comunicação. Mesmo assim, ainda hoje temos os artigos assinados, sim. Porém seus autores geralmente são políticos profissionais, sociólogos ou economistas. Que eventualmente podem ser escritores.

Edgar Morin cita um trecho de Robert Musil, em O Homem sem Qualidades, quando o personagem Arnheim pergunta: “Você não notou que nossos jornalistas ficam sempre melhores e nossos poetas sempre piores?” E tira sua conclusão: “Efetivamente, os padrões se enchem de talento, mas sufocam o gênio. Um copy desk do Paris-Match escreve melhor que Henri Bordeaux, mas não saberia ser André Breton.”

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O trabalho na balança dos valores




Suzana Albornoz
suzanaalbornoz@unisc.br
Doutora em filosofia pela UFMG

Desprezado e enaltecido no plano moral, o trabalho passou por transformações conceituais decisivas cuja história, da Antiguidade ao mundo pós-industrial, ainda está longe de ter um fim

Seria ilusão imaginar que o conceito de trabalho na história do pensamento ocidental evoluiu por uma linha coerente, apenas modificada neste ou naquele ponto da transformação socioeconômica, política ou religiosa. A experiência do trabalho como esforço para prover a sobrevivência e enfrentar os desafios cotidianos tem acompanhado a humanidade desde seu aparecimento, e nas mais diversas culturas teceram-se modos de sentir e pensar sobre o trabalho. Na encruzilhada de culturas que conviveram em torno do Mediterrâneo e do Atlântico, do século de ouro da Grécia até o começo do 21, o conceito apresentou um movimento que neste texto será indicado apenas de passagem.

Os preconceitos gregos encontraram alguma expressão no texto dos filósofos, como na teoria da atividade criadora de Aristóteles: o artesão é causa motriz da produção, sendo causa material a matéria sobre a qual opera, e causa formal e final o modelo ou finalidade que inspira a criação e aparece na obra acabada. Porém, embora na Antiguidade se encontrem pensamentos sobre a atividade criadora e o tema comece a tomar importância na modernidade entre reformadores e humanistas, o trabalho só se afirmaria como objeto da filosofia na época industrial, quando novas situações políticas, econômicas e sociais mudam a relação com a tradição.

Da dialética senhor-escravo à condição humana

No século 19, o trabalho estava subentendido nas especulações de Hegel sobre a dialética do senhor e do escravo, como também nas imaginações dos primeiros socialistas. Tornou-se centro das análises de Marx sobre a alienação do trabalho industrial na economia capitalista. Continuou a se desenvolver no século 20 entre discípulos e interlocutores do marxismo, como Marcuse, que complementou a análise do trabalho alienado com a do caráter alienante da produção e do consumo no capitalismo tardio, e Hannah Arendt, que, com suas reflexões sobre a vita activa face à vita contemplativa, remete o leitor à cultura clássica, para repensar a condição do homem moderno.

Em A condição humana, Arendt retoma a distinção grega das três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo do homem pela sobrevivência, com o fim de manutenção e reprodução da vida. O modelo é o do camponês sobre o arado, o trabalho na terra. Ressalta a passividade dessa forma de atividade humana submissa aos ritmos da natureza, às estações, à intempérie, às forças incontroláveis. O produto desse esforço é perecível, embora dele dependa a vida de quem trabalha, por isso não é um trabalho livre. A condição humana do labor é a vida.

Por outro lado, o trabalho propriamente dito, que corresponde à poiesis grega, significa fazer, fabricação, criação de um produto por técnica ou arte, e corresponde ao artificialismo da existência humana. Poiesis é a obra da mão humana e dos instrumentos que a imitam. O modelo é o do escultor; por seu resultado concreto, o fazer do artista adquire a qualidade da permanência e torna-se presença no mundo, para além da vida de seu produtor. A mundanidade é a condição humana do trabalho.

Por sua vez, a ação ou práxis se exerce diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas nem da matéria. Não apresenta um produto concreto, portanto, não possui a permanência da fabricação. É o domínio da atividade em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra do homem. Corresponde à condição humana da pluralidade e realiza a liberdade.

Arendt também analisa a marca da cultura judaica e cristã na concepção ocidental da condição humana, em cujos entrelaçamentos se manteviveram a primazia da teoria sobre a atividade e o menosprezo do trabalho manual. Na tradição judaica, o trabalho se apresentava como castigo, meio de expiação do pecado original, labuta penosa à qual o homem foi condenado. Nos primeiros tempos do cristianismo, o trabalho continuou a ser visto como punição, embora servindo à saúde do corpo e da alma. Nos mosteiros medievais, devia ser alternado com a oração e limitar-se à satisfação das necessidades básicas da comunidade.

Weber e Marx

Com a ampliação das fronteiras geográficas pelas navegações e a nova percepção do universo pelas descobertas científicas, no Renascimento começaria uma inversão de valores sobre a vida contemplativa e a vida ativa. A inversão moderna tomou, de um lado, integrado ao ressurgimento da cultura antiga, um sentido humanista, em que o trabalho passou a ser visto como expressão da força do homem. De outro, tomou significação religiosa, situando-se no âmago da Reforma Protestante, na qual a moral do trabalho se constrói sobre a convicção de que a dedicação profissional dignifica o homem, dando assim uma nova iluminação à moral cristã. Sobre a relação entre a ética protestante e a ideologia do trabalho no capitalismo, é preciosa a interpretação de Max Weber, oposta à de Marx quanto à relação entre economia e religião.

A análise crítica do trabalho no mundo industrial feita por Karl Marx, no entanto, permanece válida e definitiva como denúncia da exploração e da alienação do trabalho no século 19. Marx não só fez a análise exaustiva das relações de trabalho na sociedade capitalista, com acréscimo de conceitos novos como trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo, mas em muitos textos deixa transparecer uma teoria antropológica do trabalho. Como para Hegel, em Marx o trabalho é o fator que faz a mediação entre o homem e a natureza. Os homens definem-se pelo que fazem, e a natureza dos indivíduos depende das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. No processo de trabalho, participam o homem e a natureza; nele o homem inicia, controla e regula as relações materiais entre si e a natureza; e pelo trabalho se altera a relação do homem com a natureza. O trabalho é "o esforço do homem para regular seu metabolismo com a natureza" e assim, por meio de do trabalho, o homem se transforma a si mesmo.

Hannah Arendt criticou a forma de Marx encarar o trabalho, basicamente pelo fato de a análise marxista priorizar a produção em detrimento da ação, o econômico antes do político, o que reforçaria a tendência do mundo industrial à transformação de toda atividade em labor e à diluição do político no social. A tensão permanente em toda a reflexão sobre o trabalho, que ainda aparece na polarização atual entre as interpretações de Marx e Arendt, é a da valoração relativa do trabalho e do ócio como ocasião de realização do homem, criador e livre.

Por um novo conceito de criatividade

A balança dos valores de ócio e trabalho, que assim como era na Antiguidade seria invertida entre os modernos, encontra um ponto de questionamento interessante no manifesto de Paul Lafargue - O direito à preguiça -, no qual, de acordo com as tradições da filosofia e do humanismo, o fundador do Partido Socialista francês faz a crítica da ideologia do trabalho predominante na sociedade burguesa mesmo entre os trabalhadores, instigando à luta pela diminuição da jornada de trabalho.

Quando a automação toma formas antes nunca imaginadas, com a revolução cibernética e as novas tecnologias de comunicação, impõem-se hoje perguntas que a história do conceito não responde e estão dadas como tarefas para o futuro, ante os desafios do mundo do trabalho pós-industrial:

Será o trabalho o único modo justo e digno de prover a sobrevivência? Será o modo principal de dar sentido à vida? Será o único ou o melhor meio de alguém se fazer reconhecer como cidadão e como pessoa de bem? Ou poderiam ser mais valorizados a dedicação à família e aos amigos, a criatividade no âmbito do convívio e do lazer, a arte pela arte, o esporte, a participação em atividades comunitárias, os serviços voluntários, a política, a vida do espírito? Quando se perceber que o homem trabalhador é mais do que seu trabalho, será possível construir um novo conceito de criatividade humana apto a dar respostas para as novas situações deste tempo em que o fantasma do desemprego assombra a juventude.

Algumas concepções clássicas de trabalho

Na Política, Aristóteles afirma que o trabalho é incompatível com a vida livre e defende o ócio, diferenciando-o da preguiça. Segundo ele, "exaltar a inércia mais do que a ação não corresponde à verdade, porque a felicidade é atividade". É no ócio que o homem encontra a virtude, qualidade relacionada à prática. Para a Antiguidade Clássica, os cidadãos não deveriam ser artesãos, mercantes ou camponeses, pois não restaria tempo para as atividades política, filosófica e artística.

Para Santo Agostinho, o trabalho era um preceito religioso. Trabalhar e rezar deveriam ser as atividades gloriosas de todos os cristãos. Ele considerava a agricultura a principal atividade humana, verdadeiro ato religioso. O labor era, portanto, uma forma de impedir que o ócio conduzisse o homem aos vícios. No livro Sobre o trabalho dos monges, ele apresenta a doutrina do trabalho manual, dissolvendo os argumentos que existiam na época contra esse tipo de labor.

O trabalho como garantia de salvação eterna: essa é uma das ideias presentes da teologia protestante. Para Max Weber, o enaltecimento do trabalho foi decisivo para o desenvolvimento do capitalismo industrial. O sociólogo explica que, para o protestantismo de João Calvino, as habilidades do trabalho devem ser incentivadas, na medida em que são ofertas divinas. A teoria da predestinação afirma que um dos sinais de salvação é justamente a riqueza acumulada. Incerto seu destino, o fiel buscaria, incessantemente, o trabalho e o lucro.

A ideia de Hegel, de que o trabalho é a mediação entre o ser humano e o mundo, está presente no livro Lições de Jena (1803-1804). Ele afirmava que o trabalho era uma atividade espiritual e que o homem só podia ser realmente homem se fosse capaz de satisfazer suas necessidades por meio do trabalho. Segundo Hegel, que formulou a primeira teoria filosófica do trabalho, a atividade faz com que o egoísmo seja substituído pela realização das necessidades de todos. A liberdade em sociedade também seria fruto do trabalho.

A crítica do trabalho no mundo industrial feita por Karl Marx permanece definitiva como denúncia da exploração do trabalho no século 19. Marx fez a análise das relações de trabalho trazendo conceitos novos como trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo. Como para Hegel, em Marx o trabalho faz a mediação entre homem e natureza. Os homens definem-se pelo que fazem, e a natureza individual depende das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. Pelo trabalho se altera a relação do homem com a natureza.

Em A condição humana, Hannah Arendt retoma a distinção grega das três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor corresponde ao processo biológico do corpo do homem pela sobrevivência. O trabalho propriamente dito, que corresponde à poiesis, significa fazer, fabricação, criação de um produto por técnica ou arte; corresponde ao artificialismo da existência humana. A ação, por sua vez, se exerce diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas nem da matéria. É o domínio da atividade em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Arte deve ser tratada como mercadoria?

Fernando Eichenberg
feichenberg@hotmail.com
Jornalista

O artista plástico inglês Damien Hirst, que lança uma linha de roupas em parceria com a Levi's, desafia a crítica. Com uma fortuna estimada de um bilhão de dólares, ele subverte os limites da arte ao encarar o comércio como parte do processo artístico

Ser bom em negócios é o tipo mais fascinante de arte, escreveu Andy Warhol em seu abecedário filosófico, publicado em 1975. Três décadas depois, o britânico Damien Hirst personalizou o aforismo do ícone pop, aperfeiçoou o método e encurtou ao extremo a distância que separa a produção artística de sua comercialização. Ao promover um leilão com 223 obras suas, nos dias 15 e 16 de setembro de 2009, no prestigiado endereço da casa Sotheby's, em Londres, Hirst quebrou de forma espetaculosa as regras do mercado de arte e lançou um provocador desafio aos galeristas. O controverso artista violou uma norma em vigor desde o fim do século 19: vendeu trabalhos recentes diretamente ao consumidor, sem a intermediação de marchands, que geralmente ficam com cerca de 50% do total das transações. Nomes de seu cacife têm negociado uma porcentagem maior para si, entre 70% e 90%, mas o enfant terrible da festejada geração batizada de Young British Arts (Jovens Artistas Britânicos) surpreendeu o mercado ao passar por cima de suas fiéis galerias, a White Cube, de Londres, e a Gagosian, de Nova York, e ceder à tentação do risco Sotheby's.

Na semana que debutou com a falência do quarto maior banco de investimentos americano, o Lehman Brothers, estopim da derrocada mundial das bolsas, o aguardado e polêmico leilão superou todas as expectativas e arrecadou a impressionante soma de £ 111.464,800, o equivalente a US$ 200.752,179. Com a cifra, a Sotheby's bateu de longe o recorde da venda anterior dedicada exclusivamente a um artista: US$ 20 milhões por 88 trabalhos de Pablo Picasso da coleção Stanley J. Seeger, em 1993. O lote de Hirst, intitulado Beautiful Inside my Head Forever (algo como "bonito para sempre em minha mente"), integra sua produção conceitual. Dessa série, The Golden Calf, um bezerro dourado conservado em uma infusão de silicone e formol em um tanque sustentado por uma base de mármore Carrara, adornado por uma auréola de ouro, os chifres e cascos revestidos a ouro de 18 quilates, foi arrematado por £ 10,345,250, ou US$ 18,661,796.

"Damien não é apenas um artista extraordinário, mas um fenômeno cultural", disse Oliver Barker, um dos especialistas da Sotheby's responsáveis pelo leilão, obviamente satisfeito com o sucesso das vendas. A capa da edição européia da revista Time confirmou seu entusiasmo ao estampar a imagem de Hirst e o título: O Artista como Rock Star. Nem todos, no entanto, comungam do mesmo ardor por sua reputação artística e suas agressivas e bem-sucedidas estratégias comerciais. Para o reverenciado crítico australiano Robert Hughes, por muitos anos um dos mais influentes nomes no mundo das artes, Damien Hirst é um embuste, autor de obras "simplórias" e "sensacionalistas", uma "marca comercial" destruidora da verdadeira compreensão da arte.

O afiado crítico desclassifica uma das mais conhecidas obras do repertório de Hirst, The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (2004, título que pode ser traduzido como "a impossibilidade de a mente de alguém vivo conceber a morte"), um tubarão suspenso no formol. Segundo Hughes, trata-se do "organismo marinho mais superestimado do mundo". Para o crítico, onde se vê Hirst vêem-se também "os balões de Jeff Koons, os rabiscos baratinados de Jean-Michel Basquiat, as piadas fracas e pin-ups de enfermeiras de Richard Prince e, inevitavelmente, muitos Warhol realmente ruins". Na sua opinião, juntas, as peças funcionam como uma mensagem uniforme de uma decadência de fim de século. "Para esses bozos, o ouro é a religião", resumiu o ácido Hughes.

Vencedor do Prêmio Turner 2003 (Hirst conquistou o mesmo título britânico, bastante respeitado no cenário da arte contemporânea, em 1995), o artista britânico Grayson Perry não fica atrás na artilharia: "Temos a arte que merecemos, e Damien é o artista perfeito de nossos tempos de economias frívolas e celebridades hype. Seu trabalho sempre tem versado sobre o dinheiro: receio que o seu contador se tornou o seu conselheiro artístico mais influente." Em editorial, o jornal americano The New York Times também deu suas pinceladas: "O Sr. Hirst deixou de ser um artista para ser o que se poderia chamar de administrador dos fundos bancários da arte de Damien Hirst. Nenhum artista administrou a escalada de preços para a sua própria obra de uma forma tão brilhante quanto o Sr. Hirst. Esse é o verdadeiro conceito de sua arte conceitual."

Luxo e Glamour

Aos 43 anos, dono de uma das maiores fortunas da Grã-Bretanha (estimativas chegam até R$ 1 bilhão, que fazem dele provavelmente o artista mais rico de todos os tempos), o iconoclasta Hirst respondeu a seus detratores da "velha guarda": "Não esperaria nada menos de Robert Hughes. Ele provavelmente chorou quando a rainha Vitória morreu". Hirst defende-se citando Rembrandt, Velázquez e Goya, que "pensavam nos aspectos comerciais da arte": "Só estou fazendo o que qualquer um desses artistas faria se estivesse vivo. Muita gente acredita que os artistas devem ser pobres, que ninguém é um verdadeiro artista se não vive coberto de manchas de tinta com buracos nos jeans. Acho que tenho ajudado a mudar essa percepção, eu, Andy Warhol, Picasso e todos os caras que aceitaram os aspectos comerciais da arte". Hirst alega ainda que o leilão é uma forma democrática de vender, a evolução natural para a arte contemporânea. "Quem diz que se deve fazer dessa e não de outra maneira?" Para o artista, circula muito dinheiro na arte, mas os autores das peças não vêem nem a cor das notas.

Não é, certamente, o seu caso. Hirst possui hoje entre 30 e 40 propriedades espalhadas pelo mundo, incluindo a mansão gótica georgiana de 300 quartos, em Gloucestershire, na qual pretende inaugurar um espaço para exposições. Em uma das recentes aquisições para sua coleção particular de arte, administrada pela empresa Murderme, desembolsou US$ 33 milhões por um auto-retrato de Francis Bacon (1909-1992) — seu acervo reúne uma dúzia de Bacons e também criações de Warhol ou Jeff Koons. Por meio da empresa Other Criteria, ele ainda edita livros de artistas. Em parceria com a Levi's, produz uma linha de jeans definida como "arte que se pode vestir".

Hirst leva vida de milionário excêntrico. Na festa de pré-venda do leilão da Sotheby's, oferecida para 1,5 mil convidados (entre os quais o cantor Bono Vox, o ator Kevin Spacey e a cantora Lilly Allen), foram servidos champanhe e foie gras embrulhado em folhas de ouro (no convite, o traje solicitado era "glamorous"). Em suas seis unidades de produção artística em nível industrial trabalham cerca de 180 pessoas. Foi de um desses endereços que saiu uma de suas obras mais citadas, For the Love of God (Pelo Amor de Deus), cópia em platina de um crânio do século 18, coberto por 8.601 diamantes que, juntos, pesam 1.106,18 quilates. "Damien gosta de pensar grande", explica seu inseparável agente, o irlandês Frank Dunphy.

(Con)fusão entre arte e mercado

A opinião de André Rouillé, mestre de conferências em estética e filosofia da Universidade de Paris 8 e diretor do site paris-art.com, dedicado à arte contemporânea, estrelas da ordem de Damien Hirst e Jeff Koons (cujas obras causam igual polêmica espalhadas pelo castelo de Versailles, na França, até dezembro) distinguem-se pela "(con)fusão" que operam entre arte e mercado. Em sua análise, as façanhas e escândalos, extravagâncias e recordes alcançados por eles não são estranhos ao que criam, mas fazem parte da "estética espetacular" própria de um tipo de produção que visa seduzir o mundo dos negócios. Já Patrick Bongers, presidente do Comitê Profissional das Galerias de Arte da França, procura relativizar o episódio ao defender o papel das galerias como reguladoras do mercado: "Não penso que as galerias estejam ameaçadas. É verdade que não ficamos contentes em ver um artista se comunicar dessa forma com o grande público, nem os colecionadores em ver essas obras desovarem assim no mercado. Mas muito poucos nomes hoje podem se permitir a fazer algo como Damien Hirst".

Para o galerista francês Gérard Payen, as casas de leilão são, sobretudo, empresas comerciais, sem primazia artística, e com acesso a compradores internacionais que vêem na arte contemporânea um produto de investimento como petróleo ou cereais. Sotheby's e Christie's têm buscado mercados emergentes na Rússia, China e Oriente Médio. Mas o impaciente e insolente Damien Hirst não quer perder tempo: "Acho que o mercado é maior do que se pensa. Amo a arte, e isso tudo prova que não estou sozinho e o futuro parece promissor para todo o mundo". Norman Rosenthal, que durante 31 anos foi responsável pelas exibições da Royal Academy of Arts e para quem Damien Hirst é um "incrível artista e personagem crucial de sua geração", disparou: "Os bancos quebram: arte triunfa".

Muitos, no entanto, se perguntam: qual arte?

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Macunaíma e a Semana de 22




Almandrade
almandrade@ibestvip.com.br
Artista plástico

O projeto estético do movimento modernista que decolou com a semana de arte moderna de 1922 tinha boa dose de otimismo anarquista, sustentado pela ilusão de um país novo e a vontade de renovação, experimentação e criação de uma expressão artística nacional. Conciliar a cultura moderna importada com a cultura nativa era um ideal de nosso modernismo, como: o centro industrial e a mata virgem, o urbano e o ingênuo, o culto e o popular. Buscar enfim, uma identidade brasileira.

Era mais um estado de rebeldia contra o academicismo, que aqui se instalou com a chegada da família real portuguesa e a missão artística francesa e menos uma posição de vanguarda. No que diz respeito à elaboração de um repertório verdadeiramente moderno os participantes da semana ainda desconheciam a diversidade das linguagens, suas rupturas e contradições, mas foi a primeira manifestação pública de um grupo de artistas e intelectuais na história do país em defesa da modernização do patrimônio cultural.

O romance Macunaíma de autoria de Mário de Andrade, um dos mentores da semana de 22, publicado seis anos mais tarde, representa a continuidade e o limite desse projeto estético e ideológico que dominou o pensamento dos modernistas na década de 1920. As duas décadas seguintes, compreendidas entre a semana de arte moderna e a bienal de São Paulo, em 1951, esteticamente menos explosivas, foram de conscientização pessimista de nossa condição de subdesenvolvimento e atraso cultural com a descoberta de um país cheio de desequilíbrios.

Inserida às festividades do centenário da independência do Brasil, a semana de arte moderna tinha a intenção de transformar as comemorações do centenário em um momento de emancipação artística. Realizada no teatro municipal, alugado pelo poeta e cafeicultor participante da semana Paulo Prado, na ainda provinciana cidade de São Paulo, diante de espectadores indignados, foi um grito e uma transgressão que levantou poeira, sacudiu o pequeno circuito cultural e alimentou o desejo reprimido de renovação. Hoje, na releitura feita com tempo, é uma referência e o começo da modernização das linguagens artísticas, ao lado da transformação sócio-econômica que se processava no país.

O modernismo da semana de 22 era o refinado produto da burguesia rural, quando o café era um protagonista da economia brasileira. Uma coisa contraditória. A arte moderna, com seus procedimentos, temáticas, implicações e compromissos com a sociedade industrial, aqui foi patrocinada e estimulada pela burguesia das fazendas de café que perambulavam pelos boulevards de Paris, "a capital cultural do século XIX", e não pelos industriais paulistas emergentes. Foi uma iniciativa de elite, bem pensada dentro do contexto mais amplo da época.

No ano da publicação de Macunaíma, a sociedade brasileira tinha passado por mudanças significativas, a cidade de São Paulo contava com um grande aglomerado urbano, fábricas e um mercado consumidor. A oligarquia cafeeira estava sendo substituída pela burguesia industrial. Além da provocação da semana de arte, nesta década foi criado o partido comunista, surgiu o movimento tenentista em desacordo com o governo federal e a coluna prestes que percorreu 33 mil quilômetros no interior do país. Iniciava-se o processo de implantação do capitalismo no Brasil. Vista de uma perspectiva da atualidade, Macunaíma é uma conseqüência das idéias da semana relacionadas com outros aspectos da vida política cultural e uma convergência entre as propostas estética (modificações da linguagem) e ideológica (expressão nacional). É uma obra moderna que sintetiza a ideologia de produção estética da antropofagia que teve seu término com a revolução de 1930, ao lado de Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade e a Pintura de Tarsila do Amaral.

Mário reconheceu a importância de misturar ao processo de importação da estética moderna às raízes da cultura popular brasileira, experimentar a linguagem literária e deixar vir à tona elementos recalcados de nossa formação cultural. A inventividade narrativa e lingüística de Macunaíma, fantástica, malandra e bem humorada foi um desafio ao modelo cultural vigente. Uma nova linguagem literária e brasileira, afinada com a vanguarda européia, conforme observamos nas pitadas de dadaísmo, expressionismo e surrealismo ao incorporar temas da mitologia indígena, visões folclóricas do amazonas e outras partes do Brasil ou ainda na invenção mitos da modernidade.

Mário de Andrade foi uma figura decisiva no movimento modernista, um participante atuante da semana de arte, inaugurou a poesia moderna no Brasil com Paulicéia Desvairada. Depois de 1922 redescobriu o Brasil, passou a se interessar pelo folclore e a cultura popular, em 1927 viajou pelo nordeste e voltou com um tema que nos persegue até hoje, a nossa verdadeira identidade. Com Macunaíma, Mário encerrou a primeira fase do nosso modernismo e deu início a segunda que podemos verificar na temática social da arte e da literatura das décadas posteriores.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O carnaval visto de cima

Camille Paglia
camillepaglia@uarts.edu
Escritora e professora do Philadelphia College of the Performing Arts

Do alto de um trio elétrico, a multidão em Salvador lembra a Roma antiga e os épicos de Hollywood

No clássico O Mágico de Oz, um tornado transporta a Dorothy de Judy Garland do Kansas desolado e preto-e-branco para a maravilhosa, brilhante e multicolorida terra de Oz. Foi exatamente assim que me senti quando, em fevereiro, deixei o céu cinza e a neve da Filadélfia e cheguei ao famoso carnaval de Salvador, na Bahia.

Esse foi meu primeiro carnaval no Brasil. Todo o meu conhecimento do assunto resumia-se ao filme Orfeu Negro, ao qual assisti nos anos 60. Mas era minha segunda viagem a Salvador, onde havia dado uma palestra sobre arte para o projeto Fronteiras do Pensamento, em maio passado. No momento em que cheguei, senti uma estranha magia no ar. Fiquei fascinada pela profusão de igrejas e pelas ruas do histórico Pelourinho e impressionada pela magnífica geografia da cidade — um triângulo envolvido pela baía e pelo mar que me remeteu a Constantinopla, cidade bizantina da arte. Na ocasião, após minha palestra, recebi um presente que literalmente me eletrificou: uma coletânea de DVDs de Daniela Mercury. O resultado disso foram meses de excitante pesquisa sobre a música e a cultura baianas e seu sincretismo entre o catolicismo e o candomblé. Um antídoto para a insipidez da música e do cinema americano desses últimos 15 anos!

Assim, foi com grande prazer que eu tive a oportunidade de assistir ao carnaval 2009 em Salvador. Como convidada especial de Daniela Mercury, tive acesso ao topo de seu trio elétrico, privilégio que ela jamais havia dado a alguém. Essa área onde os dançarinos se apresentam é extremamente alta. Tão alta que todos precisavam se abaixar para passar sob os fios elétricos que cortam as ruas. Este ritual, ao qual me juntei por cinco noites mesmo debaixo de chuva, parecia simbolizar a alta tensão elétrica de Daniela, que merece uma reverência. Ela foi o tornado que me trouxe a Salvador. A heroica energia da sua performance carnavalesca — ela cantou 63 músicas por mais de seis horas com um mero intervalo de 15 minutos — parecia ser uma força sobre-humana emanando da própria natureza.

Do topo do carro, eu tinha uma vista deslumbrante não só de Daniela e seu grupo, mas também da vasta multidão abaixo que se estendia até onde a vista alcançava. O panorama de milhares de jovens rostos radiantes, iluminados pela música do carnaval, era extremamente tocante. Como que do Olimpo, eu vislumbrava os dramas humanos: beijos e abraços, gays ou não; beleza e harmonia multirracial; vivas disputas territoriais entre os vendedores de comidas e bebidas; as dignas intervenções dos amantes da paz — os Filhos de Gandhy —, com suas roupas e turbantes azuis e brancos. Havia a hipnótica ondulação das longas cordas que separam os seguidores do trio do resto do povo — uma arte móvel em si, formando centenas de padrões encantadores. E havia também uma curiosa unidade, quando Daniela pediu aos que vinham à frente do trio que se jogassem para trás e depois para a frente. Assim foi feito, e o resultado lembrou uma tropa de cavalos puxando uma enorme carruagem.

O carnaval de Salvador é tão impressionante e multifacetado que nunca poderá ser completamente documentado. O grande carnaval do Rio de Janeiro, em contraste, tornou-se uma série de painéis para ser vista da arquibancada, como no futebol. Pode ser descrito por câmeras postas em locais predeterminados. Mas o carnaval de Salvador não pode ser realmente fotografado. A cada noite, entre os milhões de foliões seguindo os trios elétricos, há bilhões de interações humanas e um caleidoscópio onírico da arquitetura da cidade que vai se descortinando.

Não há paralelo nos Estados Unidos para a liberdade de movimento do carnaval de Salvador. Dancing in the Street era uma canção clássica da Motown dos anos 60, época em que a música prometia a liberação do conformismo e do puritanismo da década de 1950. No começo, a alegria coletiva parecia possível com os shows de rock nos parques de São Francisco ou com festivais livres como Woodstock. Mas, com a comercialização do rock, grandes shows foram proibidos por causa de incidentes com ferimentos e até morte. O público não podia mais chegar perto dos palcos, pois barreiras foram construídas entre ele e os artistas. Até mesmo as comemorações do Ano-Novo na Times Square, em Nova York, são controladas: por motivo de segurança, as pessoas são confinadas em espaços como currais, separadas por tropas policiais como animais de fazenda. No Mardi Gras de Nova Orleans, a multidão se move livremente, mas as ruas do French Quarter são pequenas e estreitas. Em comparação, no Circuito Dodô, que vai do Farol da Barra até Ondina, por onde Daniela passou, há uma empolgante imensidão em virtude da vista do mar aberto.

O começo da jornada, fazendo majestosa curva de fôlego, saindo da magnífica construção de pedra do século 16, o Farol da Barra, repete a antiga história do Brasil. Enquanto o trio se movia pela imensa multidão, lembrei-me dos grandes triunfos da Roma antiga, recriados na Renascença. Vendo Daniela, cenas de filmes épicos passavam por minha cabeça: Elizabeth Taylor como Cleópatra, envolta em manto dourado, sentada no trono da grande esfinge quando faz sua dramática entrada em Roma; ou Charlton Heston como Moisés, orientando o transporte de pedras colossais em trenós rolantes no filme Os dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille. Em Salvador, no entanto, não é o absolutismo político nem o poderio militar que estão sendo festejados, mas sim a música e a dança — uma supressão da política, como nos tempos das Saturnálias romanas, quando ocorria a inversão dos papéis entre servos e senhores. Percy Bysshe Shelley disse: "Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo". No carnaval, Salvador transforma-se em uma nação da arte, onde quem manda é o artista.

Conforme o trio foi passando pela avenida Oceânica, tive a ilusão de estar em um navio com um mar de pessoas abaixo — uma visão que foi reforçada pela posição de Daniela à frente, como uma figura de proa. De fato, o trio, com seus múltiplos níveis, tem quase o mesmo tamanho de uma caravela portuguesa — navios pequenos e ágeis que exploraram o mundo e integraram a armada dos primeiros europeus que desembarcaram no Brasil, ao sul de Salvador. Ao navegar por diversos gêneros da música e da dança, Daniela incorpora o espírito mercurial e ousado de investigação incansável dos portugueses. Ela já cantou samba-jazz, mas o que faz no trio é barroco — o estilo das antigas igrejas da cidade. Originário da Itália, o barroco, com sua ornamentação e extravagância teatral, funde o êxtase espiritual com o sensual. É uma arte de monumentalidade assertiva — um princípio e uma técnica que poucas mulheres dominam ou mesmo abordam. Samba-jazz é mozartiano — uma sofisticada música de câmara. Mas o trabalho de Daniela no amplificado trio é como uma toccata de Bach ou um oratório de Handel — elaborado, dinâmico e contagiante.

De onde vem essa ambição artística de Daniela? Apesar de ter frequentado a Universidade Federal da Bahia, sua verdadeira escola foi o carnaval de Salvador. Ela é sua cria e sua rainha. As riquezas, variedades e máscaras desse carnaval moldaram sua imaginação, e a magnitude da festa deu a ela uma energia titânica e uma poderosa voz de comando. Em troca, ela ajudou a moldar a forma atual do carnaval — como, por exemplo, o antes controverso uso de instrumentos eletrônicos. O carnaval é, também, a fonte do feminismo brasileiro único de Daniela: ao entrar no mundo masculino dos trios, ela aprendeu a enfrentar e a se alinhar aos homens sem perder sua feminilidade e seu carisma natural. O carnaval fez dela uma gerente, uma empresária e uma comandante.

Orgulhosamente se arrastando pelas ruas, os trios elétricos parecem dragões, enormes lagartos cujos rugidos penetram as colinas antigas nas quais se situa a cidade moderna e geométrica. Do topo do trio, a poderosa vibração de guitarras e tambores parece um terremoto. No convento de São Francisco, no Pelourinho, há uma parede de azulejos com uma imagem de Lisboa antes do devastador terremoto de 1755, causador de incêndios e maremotos. Por meio do casamento do antigo e do moderno — complexos ritmos africanos com alta tecnologia —, os trios de Salvador recriaram Lisboa como capital da arte. E, com ondas elementares de fogo, batizaram os foliões em um oceano de música.

O carnaval de Salvador é uma reunião familiar, uma celebração da genealogia e da colaboração da música baiana. Os astros dos trios conversam animadamente com seus mentores e colegas nas sacadas, improvisam duetos e dão testemunhos de respeito e admiração. (Quando vi os gênios Gilberto Gil e Caetano Veloso cumprimentando Daniela do camarote de Gil, gritei como uma colegial.) A espontaneidade e o dinamismo são agrários e precedem o aprisionamento causado pelo decoro do escritório da moderna burguesia.

"Salvador!", gritava Daniela do alto do carro, como uma severa sacerdotisa. Ela se dirigia ao povo como se este personificasse a própria cidade. É um relacionamento íntimo que deu a ela sua identidade artística. Mas cada peregrino que vem para o carnaval se torna um cidadão soteropolitano e uma parte da história viva da cidade.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Else Lasker-Schuler, a poeta expressionista alemã e seu piano azul




Paula Valéria Andrade
paulavaleriandrade@hotmail.com
Escritora e poeta

A autora alemã ocupou com destaque a liderança dos poetas expressionistas e seu trabalho a laureou como uma das mais proeminentes mulheres escritoras do começo do século 20.

Nem tão celebrada como deveria, Else agora nos anos 2000 ganha um pouco mais de atenção e alguns estudiosos começam a rastrear sua trilha poética. As traduções ajudam, e a de Audri Durchslag-Litt e Jeanette Litman-Demeestere (em 2002) dos poemas seletos para o inglês pela Green Integer Books, fizeram possível este artigo, já que o livro chegou em minhas mãos pelas estantes da livraria do “indicados” do Metropolitan Museum de Nova Iorque. No momento os expressionistas estão em voga na cidade, pois a exposição “Van Gogh and Expressionism” na Neue Gallery(*) revela a influência que o pintor causou no expressionismo alemão e austríaco. Entre seus seguidores, encontram-se telas de Gustav Klimt, Egon Schiele, Ernst Ludwig Kirchner, Otto Dix, entre outros. Portanto, neste fervilhar de idéias e revivals, artistas do período voltam a povoar as prateleiras dos cafés e Else se encontrava em uma delas.

Nascida em um lar judeu há mais de um século atrás na cidade industrial de Elberfeld, na Alemanha, a poeta viveu em Berlim, mas ficou conhecida mesmo como “The Black Swan of Israel” (“O cisne negro de Israel”). De ancestralidade judaica e cultura e nacionalidade alemã, Lasker-Schuler viveu esta dicotomia durante a guerra e com ela todos os sofrimentos e conflitos acarretados pelo impacto do nazismo.

Descrita por Karl Kraus (e reconhecida) como “the greastest lyric poet of Modern Germany”(a excelente poeta lirica da Alemanha moderna). Lasker-Schuler viveu a vida de uma forma boêmia, dividindo a trajetória artística do pós-guerra da Primeira Guerra Mundial em Berlim com seus amigos, entre eles os escritores Franz Marc e Gottfried Benn. Fluente em hebreu e alemão, versou em ambas as línguas e polemizou realidade e fantasia com sua imaginação pouco comum. Em 1901 casou-se com George Levin, um compositor e crítico de arte que passou a ter o codinome Herwarth Walden (inventado pela poeta) ficando assim extremamente conhecido como um dos maiores teóricos e divulgadores do movimento do Expressionismo alemão. Na Berlim de 1904, ele fundou a sociedade artística “ Verein fur Kunst” e em 1910 deu início a publicação “Der Sturm” , que logo tornou-se o jornal expressionista de maior circulação e fama da época.

Em 1939, quando o governo nazista tomou o poder, ela – que já havia sido torturada com pancadas e a ferro quente, e punida por eles anteriormente – imediatamente embarcou num trem para escapar da Alemanha. Após uma breve estadia em Zurique, terminou seus dias em Israel aonde se associou a escritores experimentais, estes celebravam com veemência sua ancestralidade judaica em seus textos.

Else Lasker-Schuler tem como obras notórias seus livros de poesia “Hebrew Ballads” (1913) e “My Blue Piano” (“Mein blaues Klavier”) (1943), esta sua última publicação. A poeta faleceu em 1945 e foi enterrada no local do ‘Monte das Oliveiras” em Jerusalem. Em seus últimos anos de vida, Else foi vista como uma hippie que circulava pela cidade com um enorme sorriso nos lábios. Antes mesmo da moda dos anos 70, a poeta já era uma pioneira e praticava no seu cotidiano, o movimento de “Paz e Amor” (Peace and Love).


Mein blaues Klavier


Ich habe zu Hause ein blaues Klavier
Und kenne doch keine note.

Es steht im Dunkel der Kellertur,
Seitdem die Welt verrohte.

Es spielen Sternenhande vier
- Die Mondfrau sang im Boote –
Nun tanzen die Ratten im Geklirr.

Zerbrochen ist die Klaviatur….
Ich beweine die blaue Tote.

Ach liebe Engel offnet mir
- Ich As vom bitteren Brote –
Mir lebend schon die Himmelstur –
Auch wider dem Verbote.

Meu Piano Azul

Eu tenho em casa um piano azul
Mas não tenho nota para tocar.

Encontra-se à sombra da porta do porão,
por lá desde a decadência do mundo.

Mãos de quatro estrelas, tocam harmonia
- a Lua virgem cantou em seu barco –
Agora ratos dançam nas claves.

Quebrado está o teclado...
eu lamento pela triste morte.

Ah, amado anjo, abra para mim
- pois tenho comido pão amargo –
o portão do Paraíso, enquanto continuo viva,
ainda que contra o decreto legal.

(tradução em Português – Paula Valéria Andrade)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Recordações da casa dos mortos




Luiz Rebinski Junior
jrrebinski@hotmail.com
Jornalista

Crime e castigo, obra-prima de Fiódor Dostoiévski, é comumente citado como o livro em que a experiência do autor no cárcere da Sibéria está mais explícita. E realmente os anos vividos pelo escritor na prisão, bem como a comutação da pena de morte que recebeu pouco antes de quase ser fuzilado, marcariam para sempre a escrita do gênio russo.

Preso em 22 de novembro de 1849 por participar de um grupo de tendência socialista chamado Círculo de Petraschevki, Dostoiévski é levado a um pelotão de fuzilamento para ser liquidado. Porém, na iminência da morte é salvo e sua pena trocada por quatro anos de trabalhos forçados na parte mais gelada da Rússia. Tal experiência marcaria de forma decisiva a escrita de Dostoiévski e estaria presente em tudo o que criaria dali em diante.

Ainda que Crime e castigo seja relacionado a esse episódio com freqüência, é com um outro romance, bem mais direto e confessional em relação a tal experiência, que Dostoiévski livra-se dos fantasmas que o atormentaram ao longo de sua estadia na Sibéria.

O livro em questão é Recordações da casa dos mortos (Nova Alexandria, 2006, 328 págs.), título que a editora Nova Alexandria reeditou recentemente e que volta às prateleiras depois de muitos anos. Além disso, a nova edição traz tradução direta do russo bastante superior às versões capengas que circulavam anteriormente.

Publicado de forma seriada entre os anos de 1861 e 1862, o tomo antecede as grandes obras do autor russo, tais como o já citado Crime e castigo (1866) e Os irmãos Karamazov (1880), para muitos o grande livro de Dostoiévski. Além disso, a obra flerta com questões que somente mais tarde o escritor amadureceria, tal como a questão do limite e o debate acerca dos conflitos psicológicos do homem.

Com a genialidade que lhe é característica, Dostoiévski conta a história do nobre russo Alexander Petrovitch, condenado a dez anos de reclusão na Sibéria por ter assassinado a esposa. Por meio de um narrador onipresente que lê as memórias de Petrovitch, achadas somente após sua morte, Dostoiévski transforma em ficção situações que presenciou ou foi protagonista durante seu recolhimento no cárcere.

Fugindo do mero diarismo, cada capítulo traz uma história instigante que tem como pano de fundo a cinzenta e gélida Sibéria. Sem ordem cronológica, os fatos narrados vão fazendo sentido à medida que as páginas ficam para trás. Petrovitch, homem culto e bem educado, tenta se adequar a uma situação que lhe é extremamente desconfortável, convivendo com párias de toda espécie. Alter-ego de Dostoiévski, o personagem faz uma leitura psicológica dos tipos que se abundam na prisão gelada. As privações desumanas a que os detentos são submetidos e a relação de competição existente entre os condenados são descritas com maestria pelo autor.

Alias, é exatamente a leitura de Petrovitch acerca das situações acontecidas no presídio que dão ao livro um sentido revelador da condição humana. Mestre na arte de captar e trazer à tona os sentimentos mais obscuros do ser humano, Dostoiévski cria um ambiente ficcional claustrofóbico e opressivo, onde o simples ato de andar de um lado a outro da cela torna-se uma verdadeira odisséia.

Dessa maneira Petrovitch vai desenhando tipos que se destacam ora pela total falta de sensibilidade, ora pelo refinamento de suas idéias. Assim a narrativa revela personagens inesperados como o impagável Isaías Fomitch, que entre facínoras, estupradores e ladrões se destaca pelo jeito resignado de enfrentar o sofrimento e a privação passados na prisão de Omsk, onde se dá a narrativa.

Apesar dos contornos sombrios da história, alguns trechos do livro são bastante hilários, como o banho coletivo e anual dos presidiários, em que os detentos de maior prestígio são esfregados pelos companheiros menos populares.

A forma de Dostoiévski narrar é tão profunda que toca até mesmo o leitor mais desavisado. Sua capacidade de escrever o que as palavras quase sempre não dão conta de explicar é realmente impressionante. O trecho a seguir dá conta da sensibilidade do autor, que discorre sobre os sentimentos reinantes em um lugar apavorante e sem perspectivas.

“Sim, quase todos os presidiários eram taciturnos, odientos e não queriam de modo algum que suas esperanças fossem pressentidas pelos demais. Simplicidade e franqueza eram desprezadas. Quanto mais fantasiosas fossem suas esperanças e quanto mais o sonhador percebesse que não eram realistas, mais obstinadamente ele as escondia, mas não abria mão delas. Talvez até muitos se envergonhassem delas. O temperamento russo tem muito de sobriedade e bom senso, mas também de autocrítica”.

O interesse do autor pela condição humana, desgraçada neste caso, dá o tom do texto. De forma isenta, sem demonstrar sentimentos de compaixão ou mesmo autocomiseração, Petrovitch faz um relato sóbrio que ainda assim, sem pieguice ou coisa que o valha, emociona. Mesmo se tratando de assassinos das piores espécies, é difícil não se sensibilizar com as histórias cheias de humilhação que os personagens vivem ao longo do livro.

Se em Crime e castigo o autor leva às últimas conseqüências a tarefa de desvendar a mente humana, em Recordações da casa dos mortos são as suas próprias experiências que ganham contornos de ficção, o que não é pouco quando se trata de Dostoiévski.

Recordações da casa dos mortos poderia ser um livro menor na fantástica trajetória literária de Dostoiévski, mas pelo caráter premonitório, mas não só, tornou-se uma obra indispensável para quem quer entender melhor o cerne literário deste gênio das letras russa e mundial.

Legado precioso

Aurora Bernardini
bernaur2@yahoo.com.br
Professora de pós-graduação em literatura russa da USP

Em Os irmãos Karamázov, estão reunidas as principais vertentes da obra de Dostoiévski

Ao se ler hoje a obra de um grande autor, vem imediato a pergunta do quanto dela ficou, o quanto permanece válida em nossos dias que se vêem continuamente desapossados de tantos dos valores do passado. De Fiódor Dostoievski (1821-1881), fica o estilo mais que atual, pois, como se sabe, não apenas escrevia de forma muito ágil - inicialmente para se manter dentro dos prazos dos editores, pois dependia dos adiantamentos para sobreviver, e depois por hábito - mas, uma vez esboçados, ele costumava ditar seus textos que, muitas vezes, nem pareciam revisados. Além disso, tal como Tchekhov, em alguns de seus contos, ele mimava a maneira de se expressar característica de cada personagem. O tradutor de Os irmãos Karamázov, Paulo Bezerra, comentou as suas dificuldades com a fala do irmão ilegítimo Smerdiákov, cheia de artimanhas, de modo que o resultado era uma linguagem muito viva, e o é agora, felizmente, sem aquela homogeneização a que era submetida via traduções indiretas. Fica a engenhosidade dos romances: neste, o último, iniciado dois anos antes da morte do autor, ele conseguiu reunir todas as vertentes de sua arte. "É um romance policial psicológico, como Crime e castigo; é, quanto a Dmítri, a história de um idealista mal julgado, como O idiota; é, quanto a Ivan, o romance dos intelectuais ateus, como Os demônios; é, quanto a Aliocha, a história da formação de um (homem) novo, como O adolescente" (Otto Maria Carpeaux , prefácio à edição da Ediouro, com tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes).

"Permanece a inteligência da urdidura, a universalidade dos temas, o gigantesco das personagens" (Joseph Frank, O manto do profeta - Edusp 2008), mas permanece também a pergunta, por sinal reforçada por Freud em Dostoiévski e o parricídio, de 1928: "Como é que o primeiro Dostoiévski, o de Gente pobre, exaltado pelo crítico populista Bielínski e condenado à morte (depois comutada) pelo czar por seu socialismo utópico (a crença num mundo melhor, nessa terra), se transforma no último Dostoiévski, submisso a esse mesmo czar, amigo do seu temível conselheiro K. P. Pobedonóstsev, invocando a fé não apenas nos valores morais cristãos, mas nos seus pressupostos sobrenaturais, como os proclamados por Aliocha na última página do romance "a única coisa que podia dar um sustentáculo seguro?". A resposta de Freud, que não vamos comentar aqui e que implica sado-masoquismo e sentimento de culpa, é - como a grande maioria das suas grandes respostas - brilhante, apesar dos pequenos deslizes que o tempo revelou (não há certeza de que tenham sido os servos revoltados a matar o pai de Dostoiévski, como não era o abutre, mas sim o milhafre, a ave simbólica de Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci).

A resposta que dá o contemporâneo e, num certo sentido, rival, Lev Tolstói, (sete anos mais jovem que Dostoiévski, mas que morreu 29 anos mais tarde), ao escritor Maksím Gorki que o visita, já ancião, na Criméia (3 Russos- Martins-Martins Fontes, 2006) é seca e contundente: "Ele escreve sobre algo em que não acredita".

Já Otto Maria Carpeaux propõe uma interpretação (aristotelicamente) dialética: "O romance Os irmãos Karamázov passa-se em dois níveis diferentes. Embaixo, a Rússia dos Karamázov, envolvida nas névoas da paixão sexual desenfreada, das bebedeiras e orgias, do crime mascarado e da justiça cega, das filosofias subversivas e das visões satânicas; o diabo aparece em pessoa para conversar com Ivan, que, por sua vez, dirige a mão do parricida. Em cima, o convento, luminoso como um reflexo de glória celeste. Essa dicotomia representa a visão dostoievskiana do futuro: o cristianismo salvará a Rússia (não o da Igreja de Roma, porém); e a Rússia fará o cristianismo vencer no mundo. Eis a mensagem de Dostoiévski, que ele lança contra a mensagem escondida na filosofia de Ivan e de todos os Ivans que esperam que a revolução salvará a Rússia e que a Rússia salvará o mundo. Pelo seu romance, afirma Dostoiévski que a primeira tese, a sua, é evangélica e que a outra é satânica. Mas não escapa à inteligência insubornável do escritor o fato de que as duas teses são, no fundo, idênticas: basta trocar um substantivo para transformar uma na outra". Outros críticos e filósofos chegaram a uma descoberta próxima. Em Dostoiévski e a consciência cristã, hoje (1971), Pierre Pascal pergunta: "Mas este paraíso na terra, que Dostoiévski não define de outra forma, será ele cristão?

Os autores que trataram dessa noção em Dostoiévski vêem nela uma sobrevivência do antigo entusiasmo dele pelo "socialismo utópico". Bem, dentro da polifonia dos romances dostoievskianos, a fala que mais impressiona o leitor, no livro, é a do "herético" Ivan Karamazóv, embora - quem sabe - a fala do autor se escondesse atrás das palavras do puro Aliocha. Aí, como provou Bakhtin, está a revolução literária do autor Dostoievski - não é a voz dele a que necessariamente se impõe. Ivan das torturas infligidas às crianças, Ivan que recusa o bilhete desse mundo de Deus, Ivan que compõe A lenda do grande inquisidor. Ainda mais paradoxal, as sementes de trigo da epígrafe produziram fruto sim, mas curiosamente, no sentido oposto ao que Dostoiévski esperava. O "nosso pobre povo" quer o Milagre, o Mistério e a Autoridade em que se apoiar, enquanto o deus Capitalismo - o que o narrador execrava na figura do velho pai hedonista, Fiódor Pávlovitch Karamázov - continua regendo os destinos do mundo, até sua utópica derrocada.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Propaganda Indesejada. É Claro!




Rodrigo C. Vargas

A propaganda da empresa de telefonia móvel Claro em que uma garota tem sua dor de ver os pais separados diminuída por um celular demonstra firmemente uma posição já estabelecida pelo mercado das crises e vez por outra aceita: vale tudo. Inclusive uma enxurrada de opiniões e moldes que desfiguram o sentido de sua própria existência, a sociedade.

Nietzsche em Ecce Homo no capítulo Por que sou um destino escreve: Eu sou o primeiro a ter descoberto a verdade, uma vez que fui o primeiro em sentir a mentira como mentira.

Esse apontamento abre a possibilidade para esse encontro. Para que serve a propaganda numa sociedade? Para nos aproximar do que há de melhor? Para vender qualidades? Não é o que está acontecendo. Provar é fácil, difícil é inibir as manipulações e principalmente, acompanhar de perto o que nos é garantido constitucionalmente.

Até mesmo regulamentar o setor - que tem como maiores representantes os donos das agências – é sempre impedido. Dessa forma, qualquer reação do cliente (mesmo não comprando o produto, todos somos por estarmos expostos a sua apresentação quase onipresente) de contrapor as conduções imorais é elevada a papel de censor (palavra temida e usada descaradamente para afastar quem deseja intervir nesse sistema classista). Muito fácil.

O mesmo processo desfavorável é reforçado pela novela das oito que por mais rodeios do autor, escapa-lhes as mãos a tensão de um só enredo, traição. Não que não exista, nem muito menos um eterno fervor pelo modelo patriarcal do passado – até por que memória não significa atraso – mas apenas um questionamento singular: por que da falta de reflexões nobres ao passo que somos seres supremos e tecnológicos; ou não somos? A frase da personagem de Letícia Spiller responde: “Eu preciso sentir o gosto do adultério!”

As duas coisas, a propaganda e a novela parecem distintas, mas são intimas. Todos os seus significantes e significados promovem a destruição de um modelo cheio de defeitos, mas com muitas virtudes. O que parece é que as virtudes não contam. Ao eliminar o todo, se perde tudo. Não é assim que agimos? Negar tudo isso é deixar fugir um tempo que não é esse, esquecer detalhes importantes que nos apresenta como somos.

O que significa tudo isso? Como é possível estabelecer uma relação verdadeira com o outro quando bombardeados numa roda de desejos em que não se percebe se o que está assistindo vende o celular ou o preenchimento hipócrita da posição vaga numa família despedaçada. Se marca o cotidiano romanceado ou explora uma sociedade estereotipada sexualmente.

Maiakovski (seus amores eram outros e em outro mundo, mas tanto o tempo quanto as coisas das quais era submetido permaneceram filtrados pela palavra mudança) sabia que era preciso ter em mente e nas mãos uma espécie de resistência completa, como revelou em seu poema Nuvem de Calças.

Se quiserdes

poderei enlouquecer de carne

ou então ¬¬

como um céu cambiando de tons

serei, se quiserdes,

impecavelmente deliciado.

Não serei um homem.

Serei ¬¬

uma nuvem de calças.

É preciso acompanhar os passos silenciosos dos que não tem pernas para sentir o chão. Quanto ao modelo de governo de observar de perto esses delinqüentes bem formados, é urgente e a história vai dizer valeu a pena.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Caudalosa, recortando as palavras, eis a poeta, ficcionista e dramaturga

Ana Lúcia Vasconcelos
analuvasconcelos@globo.com
Mestre em filosofia de educação pela Unicamp

"... e uma noite, lendo sobre as estruturas políticas, o corno das ditaduras no ventre dos humildes, a anatomia intrincada dos homens do poder pensei que uma palavra devia chegar aos homens, que era inútil ficar olhando para cima e para baixo te buscando e então sentei-me e escrevi durante dez noites a palavra amor, cem mil páginas, cem mil, coloquei o calhamaço num caixote com rodinhas postei-me numa esquina e a todo aquele que passava eu entregava uma folha e dizia Amor Amém. Cão de Pedra, como a cidade riu. As mulheres desabotoavam a blusa à minha frente e gritavam: Vem, Amor, Kadosh. Os homens cuspiam na minha cara: vai arriando as calças amor amor. Corri, quebrei os tornozelos, vivi noventa dias no caixote com rodinhas, o traseiro em brasa sobre o calhamaço amor amor. Que nojo. Que vergonha."

Escrever não era fácil para Hilda Hilst, a autora deste fragmento belíssimo que aí está. Ela sofria as angústias de uma pessoa que vai ser operada. Transpirava, pedia proteção aos deuses, alisava as fotos de Kafka que ficavam diante de sua mesa de trabalho, suas pedras de ágata, enfim seus objetos queridos, dotados para ela de alguma magia particular. Mas isso só depois de todo um ritual de leituras, semanas, meses, anotando idéias de ensaios filosóficos, políticos, metafísicos, textos que possuíam o dom "de excitar os seus neurônios" como ela costumava dizer.

Quando escrevia poesia, me disse que o processo já era diferente: a coisa vinha no nível da palavra inspiração. "De repente, alguma coisa modifica o ritmo e surge todo um clima que propicia a chegada do poema".

"Eu tenho uma pulsação meio difícil de traduzir, o tempo todo olhando as coisas, de manhã, de tarde, de noite. E então acho um absurdo tudo. Acho a vida uma coisa absolutamente espantosa e fico tentando um equilíbrio entre o plano mental e emocional, numa quase vertigem passional diante do mundo. Enquanto a coisa está no cotidiano me perguntando sobre a vida, a morte, eu vou indo muito tensa e muito desconfortavelmente. Mas chega um momento em que é preciso escrever senão tudo vai ficando cada vez pior dentro de mim. É neste momento que sinto um medo muito grande de não saber traduzir a singularidade deste estado tensional, conseguir uma linguagem paralela a este estado tensional".

Diga-se que a escritora não tinha medos infundados. Não quanto à "traduzir este singular estado de tensão", isso parece que conseguiu admiravelmente já que é considerada, uma das mais altas vozes poéticas do país e uma inovadora da linguagem de ficção. O crítico Leo Gilson Ribeiro a considerava mesmo o "maior escritor vivo em lingua portuguesa". Mas justamente por isso, por ter conseguido este tão alto nível de linguagem, Hilda Hilst era tida pelo grande público como uma escritora hermética, difícil e consciente desta problemática, Hilda admitia que gostaria de expressar-se como seria conveniente para o ouvido do outro: "gostaria de ser toda mais stacatto, mas comedida, nas emoções, mesmo no meu existir diário".

Esta vontade, aliás, está impressa na sua obra: "pudesse livrar-me da maior espiral que me circunda e onde sem querer me reconstruo/ Livrar-me de todo o olhar que quando espreita, sofre/ O grande desconforto de ver além dos outros/ Tendo tido este olhar. E uma treva de dor/ Perpetuamente/ Do êxodo dos pássaros dos mais tristes dos cães/ De uns rios pequenos morrendo sobre um leito exausto/ Livrar-me de mim mesma. /...".

Mas admitia que, não conseguia este equilíbrio, "talvez na velhice eu consiga" dizia sorrindo. "E na hora de escrever sai então o descontrole. É como se você abrisse uma torneira que há novecentos anos está querendo explodir. Sai aquela água barrenta... Mil socos na torneira."

Vinha daí sua grande admiração pelo escritor sueco Päar Lägerkvist (Barrabás, Sibila, A Morte de Ashaverus, O Anão, e outros) que segundo ela, conseguia dizer, de uma maneira delicada, sóbria e numa narrativa arrumada, as coisas que ela também queria expressar. Seus temas são semelhantes, suas buscas do mais profundo do ser humano, suas perguntas sobre a vida, o amor, a morte, "o possível divino que você não sabe o que é, mas do qual pressente um sumo sagrado em algum lugar". Mas acreditava que colocava uma tensão muito alta nos seus textos, enquanto Lägerkvist conseguia contar com uma serenidade ideal. "Eu não consigo este tipo de narrativa, tenho uma vontade de expulsão demasiada. As coisas ficam muito rápidas e intensas. Aí a pessoa lê e fala: ‘ meu Deus o que aconteceu afinal? ’ É como se fosse uma araponga no ouvido do outro".

De qualquer forma acreditava que no seu: Pequenos Discursos e um grande, por exemplo, conseguiu alguma coisa neste sentido. "Não que eu tenha feito um esforço para que o leitor me compreenda, ai seria falso, mas já tenho uma fala com este tipo de contração da coronária". E por causa desta dificuldade, Hilda admitia que escrevesse muito devagar: "Às vezes demoro quatro horas para escrever trezentas palavras". Não obstante sua bibliografia é considerável, e quando morreu, em 4 de fevereiro de 2004, ás vésperas de completar 74 anos de idade, deixou um legado precioso de 41 livros de poesia, teatro e ficção, que estão sendo traduzidos e publicados na França, Itália, Espanha, Inglaterra e Alemanha.

A obra vasta e deslumbrante

Não obstante sua bibliografia é considerável, sua obra é vasta, densa, deslumbrante, e ela começou muito cedo com Presságio, seu primeiro livro de poemas, escrito aos 18 anos foi publicado em 1950 quando ela tinha 20. Na seqüência vieram: Balada de Alzira (1951); Balada do Festival; (1955), Roteiro do Silêncio (1959); Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor; (1960) Ode de Fragmentária (1961); Sete Cantos do Poeta para o Anjo; que ganhou o Premio Pen Clube de São Paulo de 1962-, composto de Exercícios para Uma Idéia; Pequenos Funerais Cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo (1967) que foi musicado pelo compositor de musica erudita contemporânea José Antonio Almeida Prado com o titulo Pequenos Funerais Cantantes. Anote-se que com que esta obra Almeida Prado ganhou o prêmio que segundo me contou foi importantíssimo para sua carreira: uma viagem de estudos para Santiago de Compostela, que ele depois esticou para Paris onde ficou cinco anos, e que confessa, foram os melhores e mais importantes anos da sua vida e carreira.

Ainda em 1967 publica Poesia (1959-1967) pela Editora Sal de São Paulo e importante: neste mesmo ano de 1967 Hilda começa a escrever teatro sendo que até 1969 produziu nada menos que oito peças: A Possessa (A empresa), O Rato no Muro, O visitante, Auto da Barca de Camiri, O novo sistema, As aves da noite, O verdugo (foi Prêmio Anchieta de 1969 ) e A morte do patriarca. As peças O visitante e O rato no muro foram encenadas sob direção de Tereza Aguiar pelo Grupo de Teatro da Escola de Arte Dramática (que atualmente é a ECA da Universidade de São Paulo) e apresentadas no Teatro Anchieta (SP), em 1968. O Rato No Muro foi apresentada ainda no Festival de Manizales, (na Colômbia), em 1969.

Tereza Aguiar dirigiu ainda O Novo Sistema, encenada no Teatro Veredas em São Paulo, em 1970. As mesmas peças foram apresentadas por outras companhias: Grupo Experimental Mauá-Gema, Grupo de Teatro Núcleo/Universidade Estadual de Campinas.

O Verdugo com direção de Nitis Jacon Moreira foi apresentada na Universidade Estadual de Londrina, em 1972, e no ano de 1973, no Teatro Oficina em São Paulo, com direção de Rofran Fernandes. As Aves da Noite foi levada à cena em 1980 com direção de Antonio do Valle no Teatro Ruth Escobar em São Paulo e em 1982 com direção de Carlos Murtinho no Teatro Senac do Rio de Janeiro. O Rato no Muro com direção de Silvano Ferreira foi encenada em 1984 no Teatro do Sesc - Cascavel, no Paraná e A Morte do Patriarca estreou em Campinas, encenada pela Oficina de Estudos Teatrais, com direção de Adolfo Mazzarini, no Teatro do Sesc-Bonfim, no ano de 1991.

Em 1970, com Renina Katz, Hilda fez o livro Renina Katz: serigrafias. Poemas de Hilda Hilst (São Paulo, César), que segundo Mora Fuentes "era uma espécie de livro objeto lindíssimo" Neste mesmo ano começou a escrever seus textos de ficção num fluxo contínuo: Fluxo-Floema (Editora Perspectiva, SP, 1970) composto de cinco textos cujo gênero o critico e professor de literatura da Unicamp Alcir Pécora acha difícil enquadrar: Fluxo, Osmo, Lázaro, O unicórnio, Floema. Em 1973 lança Qadós (que passou a ser grafado Kadosh, quando a Editora Globo passou a editar suas obras completas em 2001 por decisão da própria Hilda), com capa de Maria Bonomi, (Edart, SP, 1973) composto de quatro novelas: Agda,Qadós, Agda II, O oco.

Ficções é editado em 1977 com capa de Mora Fuentes pela Edições Quiron ( SP, 1977) reunindo toda sua obra de prosa até aquela data: os cinco textos de Fluxo Floema, os quatro textos de Qadós mais um: Pequenos Discursos e Um Grande, que ganhou o Prêmio da Associação Paulista de Críticos do Estado de São Paulo (APCA) de Melhor Livro do Ano em 1977. A partir de 1974 Hilda Hilst escreve alternadamente livros de poesia e prosa. Assim vamos ver publicados: Júbilo, Memória, Noviciado de Paixão, livro belíssimo de poemas (Massao Ohno Editor, SP, 1974) e em 1980, outra pequena obra prima de ficção: Tu Não Te Moves de Ti composto de três novelas: Tadeu (da razão), Matamoros (da fantasia), Axerold (da proporção) editado pela Livraria Cultura Editora, SP. Matamoros foi adaptada para o teatro sob o titulo Maria Matamoros por Tereza Mendes e encenada em 1991 no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) em São Paulo.

No ano de 1980 Hilda publica outro livro de poesia: Da morte. Odes mínimas (Massao Ohno/Roswifna Kempf/ Editores, SP) com ilustrações da autora, e um volume reunindo toda a obra poética: Poesia (1959-1979) editada pelas Edições Quiron / INL/MEC-SP, Brasília. Ainda em 1980 surge mais um livro de poesia: Cantares de Perda e Predileção (Massao Ohno-M. Lygia Pires e Albuquerque Editores, SP) que ganhou dois prêmios importantes: O Jabuti de 1980, da Câmara Brasileira do Livro (o mesmo livro seria agraciado com o prêmio Cassiano Ricardo do Clube de Poesia de São Paulo em 1985). Em 1981 ganha o Grande Prêmio de Literatura por sua Obra completa da APCA -Associação Paulista dos Críticos de Arte do Estado de São Paulo.

No ano de 1982 a escritora publica um livro de prosa A Obscena Senhora D (Massao Ohno Editores, SP) sendo que em 1984, lança novo livro de poesia: Poemas Malditos Gozosos e Devotos (Massao Ohno/Ismael Guarnelli, SP, com capa de Tomie Ohtake). Em 1986 Hilda publica outro volume de poesia: Sobre a Tua Grande Face com grafismos de Kazuo Wakabayashi, artista nipo-brasileiro, uma grande reflexão sobre Deus (Massao Onho Editor, SP).

Com Meus Olhos Cão e outras novelas (Brasiliense, SP), prosa, é publicado em 1986 sendo que em 1989 o público amante das suas obras tem o prazer de ver outra preciosidade em poesia: Amavisse (Ter um dia Amado) composto de três momentos: Amavisse, Via Espessa e Via Vazia (Massao Ohno Editor, SP, com capa de Cid de Oliveira), sendo que alguns poemas foram musicados pelo José Antonio Almeida Prado.

Em 1990 Hilda Hilst cansada de ser lida por apenas alguns iniciados mesmo sendo considerada uma das grandes escritoras do Brasil e a esta altura já estar sendo reconhecida também fora do país e com total consciência da importância do seu trabalho, resolve dar uma guinada na sua carreira de escritora séria e publica uma trilogia erótica composta de O Caderno Rosa de Lory Lamb com 27 ilustrações de Millôr Fernandes (Massao Ohno Editor, SP), Contos d’escárnio textos grotescos (Siciliano, SP) e em 1991 Cartas de um sedutor (Editora Paulicéia, SP), fato que provoca um certo frisson na critica e alguns dissabores entre os seus amigos que consideram aquele ato desnecessário para sua afirmação no cenário literário nacional e mundial e algumas rupturas mesmo com velhos admiradores.

Mas é justamente esta estratégia que vai tornar sua obra conhecida a partir de então e vai chamar a atenção de pessoas que até então, conheciam muito pouco do seu maravilhoso, inovador e rico trabalho. Ela literalmente é descoberta pela mídia e pelos leitores mesmo sendo considerada agora "uma escritora pornográfica". Hilda Hilst finalmente estava sendo lida, era o reconhecimento afinal que se prenunciava e que havia sido tão desejado e acalentado por ela e por seus leitores fiéis, que igualmente queriam que ela fosse lida e tivesse dissipada para sempre a imagem de escritora maldita e difícil. Na verdade o que ela sempre fez foi uma prosa e uma poesia de alto nível e ainda naqueles tempos, havia um preconceito contra literatura deste alto teor metafísico. O público preferia -grande parte ainda prefere -textos mais facilmente digeríveis.

Entre 1990 e 1992, Hilda lança três novos livros de poemas: Alcoólicas (Maison de Vin, 1990, SP, com xilogravura da capa de Antonio Pádua Rodrigues e ilustrações de Ubirajara Ribeiro), Bufólicas, (Massao Ohno, 1992, com capa e desenhos de Jaguar) e Do desejo (Pontes, Campinas, 1992 , com capa de João Baptista da Costa Aguiar). Em 1993 é publicado um volume de prosa: Rútilo Nada que reúne além do conto que dá título ao livro, as novelas Kadosh e A obscena senhora D (Editora Pontes, Campinas, 1993, com capa de Mora Fuentes e Olga Bilenky, com o qual a escritora ganha O Premio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro).

Em 1995 a escritora agora sendo lida, lança Cantares do sem nome e de partidas (Massao Ohno, SP, com capa de Arcangelo Ianelli), poesia, e vende parte dos seus arquivos para o Centro de Documentação Alexandre Eulálio do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Em 1997 publica Estar sendo. Ter sido, (Nankin Editorial, SP e 2ª. Edição em 2000, com capa de Claudia Lammoglia, foto da capa de Catherine A. Krulik e ilustrações de Marcos Gabriel), prosa. Em 1998 reúne suas crônicas publicadas no Jornal Correio Popular de Campinas (SP) no livro Cascos e Carícias: crônicas reunidas (1992-1995, capa de Claudia Lammoglia e foto de J. Toledo, pela Nankin, SP, 1º. Edição e 2º. Edição em 2000) e em 1999 publica uma coletânea de poemas no livro intitulado Do amor (Massao Ohno, SP) com capa de Arcangelo Ianelli, prefaciada e organizada por Edson da Costa Duarte Clara Silveira Machado.

Neste mesmo ano de 1999 ganha sua primeira página na Internet: http://www.angelfire.com/ri/casadosol/hhilst.html criado pelo escritor Yuri V. Santos. Em Outubro de 1999 Hilda Hilst foi tema dos Cadernos de Literatura Brasileira onde Rinaldo Gama e Antonio Fernando de Franceschi, entrevistam os amigos e críticos: Lygia Fagundes Telles, Carlos Vogt e Caio Fernando Abreu sobre sua obra com belíssimas fotografias de Eduardo Simões.

Algumas obras de Hilda Hilst entraram em coletâneas: Canto Terceiro, XI (Balada do Festival), na Ontologia Poética da Geração de 45 em São Paulo pelo Clube do Livro em 1966; Poeti brasiliani contemporanei com prefácio e seleção de Silvio Castro Veneza pelo Centro Internazionale della Gráfica di Venezia em 1997; Agüenta coração, in Flávio Moreira da Costa. Onze em campo e um banco de primeira, 2 ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998.

Rutilo nada foi publicado na Antologhie de la poésie brésiliènne organizada pela poeta, escritora e dramaturga Renata Pallotini com tradução de Isabel Meyrelles em Paris: Chandeige, em 1998. Gestalt foi publicado em Os Cem melhores contos brasileiros do século (coleção organizada por Ítalo Moriconi, Rio de Janeiro, Objetiva, 2000). Do desejo (fragmentos) e Alcoólicas (fragmentos) foram publicados em Os cem melhores poemas brasileiros do século (in Moriconi, Rio de Janeiro: Objetiva, 2000). O poema XLIX do livro Do desejo foi publicado ainda em coletânea organizada por José Neumâne Pinto pela Geração Editorial em 2000.

Algumas de suas obras foram traduzidas para o francês: Contes sarcastiques-fragments erótiques com tradução de Maryvonne Lapouge – Petarelli pela Gallimard, de Paris, em 1994, L’obscène madame D suivi de Le chien, em 1997, da mesma tradutora e mesma editora, Agda (fragmento) em Brasileiras com organização de Clélia Isa e Maryvonne P-L; Sur ta grande face, tradução de Michel Riaudel. Pleine Marge, Paris maio de 1997; Da morte. Odes mínimas/ De la mort.Odes minimes-Edição bilíngüe com tradução de Álvaro Faleiros e ilustrações de Hilda Hilst-São Paulo e Montreal: Nankin/Noroit, em 1998.

Para o italiano foi traduzido Il quaderno rosa di Lori Lamby com tradução de Adelma Aletti, editora de Milão: Sonzogno em 1992. Para o espanhol Rútilo Nada com tradução de Liza Sabater. De azur, Nova York em junho de 1994.

Alguns poemas tiveram versão para a língua inglesa: Two Poems com tradução de Eloah F. Giacomelli in The Antigonish Review, em 1975 e Glittering Nothing (Rutilo Nada) com tradução de David William Foster na Urban Voices: Contemporary Short Stories from Brazil pela University Press of América, em Nova York em 1999.

Para o idioma alemão Hilda Hilst teve até o momento, traduzidas algumas obras e fragmentos: Mechthild Blumberg traduziu Cartas de um sedutor (fragmento) que foi publicado com o titulo: Briefe eines Verführers, in Stint Zeitschrift für Literatur, em Bremen em outubro de 2001; Funkelndes Nichts (Rútilo nada) e Vom Tod. Minimale Oden, (Da Morte. Odes mínimas), com tradução de Curt Meyer-Clason e publicados in Modernismo Brasileiro und brasilianische Lyrik der Gegenwart, Berlim, 1997.

Seu teatro ficaria inédito em livro até o ano de 2000 quando a Nankin de São Paulo lança Teatro Reunido I, sendo que neste ano estréia em Brasília uma adaptação para o teatro de Cartas de um sedutor, e na Casa de Cultura Laura Alvim no Rio de Janeiro, é apresentado o espetáculo HH Informe-se, composto de alguns textos da autora entre dezenas de outros, já que a partir de um certo momento os diretores de teatro do Brasil começaram a descobrir a maravilhosa teatralidade da sua prosa.

Em 2001 a Editora Globo passa a ser responsável por toda a sua obra publicada até o momento, respeitando-se os prazos vigentes com as outras editoras e começa a publicar todo seu trabalho em poesia, teatro e prosa com algumas mudanças em relação aos livros publicados anteriormente. Ou seja, as obras foram reagrupadas de forma um pouco diferente. Em 2002 Hilda Hilst recebe da Fundação Bunge, o Prêmio Moinho Santista pelo conjunto da sua obra poética e em 2002, a poeta, no auge de sua carreira ganha o Grande Prêmio da Critica pela reedição de sua obra pela Editora Globo.

Sobre esta fértil diversidade, o crítico Anatol Rosenfeld, mesmo conhecendo parte da sua obra, já que morreu na década de 1970, escreveu: "É raro encontrar no Brasil e no mundo escritores ainda mais neste tempo de especializações que experimentam cultivar os três gêneros fundamentais na literatura: a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa alcançando resultados notáveis nos três campos. A este grupo pequeno pertence Hilda Hilst". Em fevereiro de 1985 o austero Le Monde parisiense confirmava as palavras de Rosenfeld. O articulista escreveu: "A Obscena Senhora D, prosa e Da Morte Odes Mínimas, poesia, são os cumes da escritura literária".

Escritura intrincada

Os escritores em geral têm pudores de falar da própria obra. Consideram que já se disseram na sua obra e basta sua leitura para serem compreendidos. Isso nem sempre funciona, especialmente no caso da "escritura", densa, intrincada, altamente simbólica de Hilda Hilst. Daí que o conhecimento de certas circunstâncias da vida podem clarificar muito o entendimento da sua obra - por exemplo: como ela descobriu a vocação de escrever, como surgiram os primeiros poemas, qual foi enfim a "campainha de disparo do escritor?".

Hilda acreditava que várias situações podem levar a pessoa a escrever: a vontade de viver o transitório com intensidade e talvez a figura de alguém da família. Pois foram exatamente essas coisas que fizeram Hilda Hilst começar a escrever. De modo especial as figuras do pai e da mãe: duas forças impulsionadoras da sua literatura. A mãe, a beleza a ternura, o pai, o trágico porque é jornalista, poeta de talento preocupado com a questão social, que morreu louco.

"Meu pai ficou na minha memória como uma figura de muita realeza porque conservei a imagem que minha mãe fazia dele. A figura do louco eu apaguei. Ele era um homem de grande inteligência que fazia perguntas perigosas: ‘como será a alma na loucura? ’ Ele deve ter tido a resposta." Já a mãe, ficava preocupada com o fato de Hilda ser poeta: temia que ficasse como o pai. Ela dizia: " As pessoas não compreendem os poetas".

Na verdade talvez a mãe da Hilda estivesse com razão. Os homens racionais demais, em geral não entendem mesmo os poetas. E Hilda Hilst muito nova, adolescente, aos 18 anos já escrevia num de seus primeiros poemas: "Tenho preguiça pelos filhos que vão nascer/ Teremos que explicar tantas coisas a tantos deles/ As mães não querem mais filhos poetas/ Deram um grito desesperado das mãos do mundo".

Hilda diz se lembrar muito bem de como começou a escrever. Gostava muito de ler e tinha uma vontade de se expressar de alguma forma. "Aos dezoito anos comecei a escrever meus primeiros poemas, e o primeiro livro chamava Presságio. Eu sabia que tinha escolhido esse caminho e achava que um dia ia ser um grande poeta, uma grande escritora. Eu sabia lá dentro de mim e não tenho pudor de dizer que eu acho meu trabalho muito bom. E desde aquele tempo eu já sabia que era um caminho definitivo para mim. Só que eu queria aproveitar a vida, minha mocidade, o que eu tinha de bonito. Queria que as emoções passassem todas por mim antes de me dedicar a escrever, com o afinco desesperado como depois me dediquei. E fui então me emocionando demais com tudo, fui amando demais e hoje posso dizer que já tive todas as emoções que desejei ter. Se eu me apaixonava por uma idéia ou por uma pessoa, eu fazia com que essas coisas ficassem perto de mim de qualquer forma. Eu não abdicava nunca do que eu realmente desejava e queria".

Hilda lembra que um dia ouviu alguém dizer que escrevia por debilidade e ela ficou atraída por esta palavra e teve afinal um insight sobre seu oficio. "É uma sensação de debilidade mais que de força o ato de escrever. É uma necessidade tão grande que se tem de se espelhar em alguma coisa de não se sentir muito isolada, porque desde menina eu me sentia sempre alguma coisa diferente dos outros. Eu sentia uma compaixão muito grande ia pelas pessoas, pelos animais, pelo mundo, pela vida. Eu olhava as coisas e já me vinha esse pensamento: que pena tudo tão impressionante tão bonito e depois parece que essa árvore vai emurchecer, a folha vai cair, o cachorro que está vivo e bonito daqui a pouco vai ficar velhinho e então vai morrer e eu também com tudo que eu imagino e sinto também vou acabar. Eu não tinha um vigor suficiente, vamos dizer, para ouvir notícias, doenças, mortes, desgraças, ficava mal ao ver que as coisas não eram mais, não estavam mais ali".

Hilda lembra também que tinha a mania de ficar sozinha, não ficava brincando com os outros como em geral as crianças fazem. Mas ao mesmo tempo era esportista, pulava distância, pulava altura, não ficava doentiamente fechada. Mas quando estava com as suas coisas, preferia ficar sozinha, não tinha vontade de partilhar aquele brinquedo com ninguém. "Então eu ficava examinando as coisas, tinha mania de examinar os bichos pequenos, os insetos, olhar as árvores, as plantinhas. Era mais observadora e tinha uma curiosidade também, perguntava muito. Até hoje eu não perdi a necessidade de perguntar. Na Obscena Senhora D o Ehud diz para Hillé: ‘vais ficar triste de teres perdido o tempo com perguntas, pensas como serás aos sessenta, eu estarei morto, porque? causa mortis? Acúmulo de perguntas de sua mulher Hillé."

Enfim ela constata que isso era uma vontade de conhecer, de saber tudo, apesar da infância ter sido sofrida, foi educada num colégio interno, o Santa Marcelina, São Paulo, Brasil, havia a saudade da mãe, muito poderosa e que foi também muito bonita e ela era muitíssimo afetiva, muito carinhosa. "Minha mãe tinha uma paixão muito grande por mim. Eu fiquei interna no colégio porque meu pai ficou doente, minha mãe separou-se e foi morar em Santos. Foi um momento difícil porque eu tinha verdadeira idolatria por minha mãe".

A vivência no Colégio Santa Marcelina em São Paulo aparece na sua poesia: "a menina nos longos corredores do colégio/ Não havia solidão igual à minha". E em duas de suas peças: A Possessa e O Rato no Muro. A solidão, o silêncio do claustro (ninho-masmorra) de Qadós, aparece subjacente em toda sua obra. E quem conhece a casa de Hilda Hilst sabe que ela parece um mosteiro, com seu pátio interno, seus corredores e arcos. Com o tempo a poeta descobre que as pessoas não compreendem os poetas. (Apesar disso seguiu seu caminho: "à procura da rosa, causando as criaturas estranheza / se me encontrares / Terei um jeito de flor / E um não sei quê de brisa / Nos meus ares / Hei de buscar a rosa / A dos altares / E sinto graça nos pés / Leveza nos andares").

É verdade que nem sempre com esta leveza a poeta andou. Muitas vezes refletiu se não seria melhor as órbitas vazias? / Será eterno o júbilo de ter / Espátulas e nume / Nas mãos e no ser?"Muitas vezes a poeta se lamenta de ser assim, de carregar as dores do mundo: "cansa-me ser assim quem sou agora / Planície, monte, treva, transparência/...". Mas intuía que este olhar "através dos outros / era inexoravelmente sua vocação. Não haveria libertação: "Queres o verso ainda? Assim seja / Mas viverás tua vida nesses breus". Mas a dúvida persiste: "Tão grande ambivalência / Concedida aos homens / Terá sido dos deuses complacência?".

Deus era outra mania que a escritora confessa ter tido sempre. "Eu gostava de ficar na capela do colégio. Eu queria me aproximar da idéia de um Deus que tenha sido o executor de tudo, desse mundo que é tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa mania eu não tirei nunca da minha vida: quer dizer, de existir uma potencialidade qualquer que você nomeia de algum nome e eu o nomeio Deus de vários nomes: Cara Escura, Sorvete Almiscarado, Grande Obscuro, O Sem Nome, o Mudo Sempre, o Tríplice Acrobata. É uma vontade de estabelecer um intercâmbio com essa força muito grande, porque eu não acredito que as coisas acabem assim".

"Não posso acreditar que tendo sentido tudo o que eu senti tendo visto tudo que eu ví, tendo tido essa compaixão de espremer o coração e as vísceras de repente simplesmente vou para terra apodreço e fim, zero, terminou. Então desde menina essa era uma interrogação constante. A morte me abalava muito. O que é morrer? Mas como morreu? As crianças normalmente se perguntam sobre isso, mas acho que essas coisas me abalavam demais".

"Essa compaixão que não me deixava saborear a vida com muita intensidade. O fato de sermos feitos de carne, termos vísceras e sangue e essa compulsão de ficar olhando e pensando que coisa impressionante tudo se movendo dentro de você e aí tudo termina... Talvez isso tenha feito com que eu ficasse com vontade de passar para o outro. E escrever é essa explosão de dizer as coisas como acho que elas devem ser ditas, para passar para o outro a intensidade a perplexidade do ser humano completamente incendiado de emoções, de procuras de perguntas e buscas".

Ambivalente e excessiva

Depois, na adolescência Hilda admitia ter ficado encantada com as emoções do amor, com as aventuras, pois era uma pessoa muito aventurosa mesmo. "Tive muito estímulo, emoções variadas de vida para escrever." Eu era uma pessoa muito tumultuada e muito perguntante e o tempo todo. O tempo todo eu vivia numa ansiedade ainda não visível exteriormente, era uma tensão íntima muito potente lá dentro que não parava de circular, era como se o sangue não ficasse num lago represado, corresse em alta velocidade. E eu estava sempre muito comovida com a vida com a morte, com o amor. E esse desconforto me acompanhou desde menina".

Ambivalente e excessiva sempre, a poeta às vezes tomam um atalho calmo e esquece por momentos este olhar além e amorosa queria ser: "nave, ave, moinho e tudo o mais para que seja leve" seu passo no caminho do amado. Mas mesmo quando atinge seus mais altos tons na poesia apaixonada, Hilda Hilst não abdicava da pesquisa em profundidade: nos poemas, na prosa e no teatro que falavam de temas como o amor, a morte, "deste absurdo que é a vida".

Para escrever as centenas de versos das Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor, por exemplo, Hilda me contou que estudou toda a poesia portuguesa em especial se deteve no Sermão sobre o Amor do padre Vieira que diz que amor é conhecimento. Por isso o poema começa: "Amo e conheço / Eis porque sou amante e vos mereço". E continua: "De merecimento vivo e padeço / Vossas carências / Sei-as de cor / E o desvario, na vossa ausência / Sei-o melhor /...".

Quando vai para o teatro e depois para a ficção a ambivalência continua: seus personagens são sempre múltiplos, como diz a ensaísta e crítica literária Nelly Novaes Coelho, "determinados por uma estrutura trina paralela à da Santíssima Trindade". "Minha Agda fala isso, não a Santíssima Trindade de sempre, mas aquela de sangue e adstringência, de carne e adstringência".

"Porque acho que dentro de nós temos três caras. Uma primeira seria aquela aparente, convencional, que a gente mostra e que não é verdade. A segunda é aquela que você coloca quando ama. É a tua melhor cara, essa cara iluminada, amorosa, onde você é um núcleo importante de vida. E depois a outra cara secretissima, onde entra o escuro, o sórdido, aquilo que é rejeitado em você. Todas essas caras podem ainda ser subdivididas em milhares de outras. Mas o importante é que essas máscaras apareçam e comecem a ficar transparentes e surja então a verdadeira cara."

Talvez seja exatamente esta a chave do mistério da obra "hermética, difícil" de Hilda Hilst. Quem sabe se o leitor souber como Hilda trata os personagens da sua ficção, possa entender melhor seus textos aparentemente intrincados? Ela desarruma a linguagem para traduzir as perguntas que se faz todo o tempo e que seus personagens fazem sobre a vida, a morte, o amor, o sentido maior de existir. E se quisermos entendê-la precisamos nos desarticular também, tirar as nossas várias máscaras e deixar transparecer a nossa verdadeira cara. Precisamos fazer o que faziam os copistas medievais nos manuscritos em pergaminho: raspavam as inscrições para poder ler o que fora escrito antes, quando alguém utilizou o pergaminho pela primeira ou segunda, ou terceira vez. Eis aí a definição de palimpsesto mesopotâmico, termo usado pelo critico Leo Gilson Ribeiro para definir os textos de Hilda.

Foi isso que o Léo escreveu no prefácio do livro Ficções (1977) que continha toda a sua obra narrativa até aquela data, onde ele "vaticinava" para a escritora, poeta e dramaturga, um futuro inglório: "Hilda Hilst carrega involuntariamente um estigma: o de nunca vir a ser popular acessível. Ela que ambiciona tanto ser discutida, focalizada, continuará por uma espécie de condenação intrínseca incompreensível para a maioria. Porque ela em português retratou um Malone agonizante no atoleiro da duvida e das dimensões diminutas de quem não tem antenas para captar o que há ou não há depois da Morte. E porque ela escreveu em português, o equivalente a um Finnegan’s Wake de Joyce, ou seja: escreveu um absurdo palimpsesto mesopotâmico. E poucos terão a imaginação criadora, a profundeza de propósitos e o mesmo afã místico que ela para embrenhar-se nessa selva oscura da alma e do humano estar no mundo".

Processo criativo

Vejamos a própria Hilda me explicando esse seu processo criativo numa das inúmeras entrevistas que me concedeu: "Enquanto conversamos aqui, eu estou fotografando você e estou vendo o teu olho me fotografar. É isto que a Agda e principalmente o Qadós fazem. Agda-Kalau-Celônio: o cavalo três de Agda é sempre ela se vendo no olho dos personagens que são na verdade ela mesma subdividida. Em Qadós ocorre o mesmo. Ele era aquela mulher com quem se casa, o amigo, porque se a pessoa ler com atenção vai perceber que aquele homem é de uma solidão tão grande que não podia ter tantas coisas: ainda que poucas, uma mulher, um amigo. É sempre ele repensando suas misérias no olho do outro. O amigo diz: "quero um dia dizer as coisas que visualizo em você "-mas na verdade é ele mesmo que não pode dizer de toda a sua banalidade, daquela duplicidade, o que ele amava nos homens, o que amava nas mulheres. Claro que ele tinha uma riquesa como ser humano, mas cheio de banalidades. O sexo que ele queria fazer ali com aquela mulher era um sexo perverso, sem a conotação moral naturalmente, porque ele já era velho de alma, a sexualidade para ele era antiga, premente, nostálgica ao mesmo tempo sangrenta, porque o homem se perguntava dia e noite sem parar".

Era esta a proposta de Hilda Hilst para o leitor: que ele, lendo suas personagens que se dividem, que se transformam em outras personagens numa espécie de jogo caleidoscópico, pudessem se identificar com eles e se sentissem tão torpes e tão extraordinários como o Qadós podia ser. E assumissem todas as suas caras, fizessem um pacto com elas. O próprio Qadós diz isso logo no início: "Pacto que há de vir coisa pastosa, uma coisa se impondo corrosiva eis aqui o vestíbulo deste todo poderoso, devo ter sido guiado, a coisa de peso gigantesco sobre as omoplatas, vai vai, a lâmina no mais fundo desse todo-poderoso, atravessa as tres salas me disseram, evita aspirar o conturbado dele, tudo isso ordens de um miolo exuberante, lucidez acentuada pensei quando ouvi tanta palavra dentro da minha pequena pétala de carne, essa convulsiva, essa que se diz atenta, toda torcida. Esperei muitas noites antes de expor meu nariz ao vento, vê só, eu me dizia, há quantos anos dentro de quatro por dois delicada masmorra, mastigando tâmaras, tudo parece muito longe dizendo assim tâmara masmorra, são coisas do mais além, nada afins com a minha terra de mamões e bananas, nem porisso não estou aqui, estou sim, terra gorda extensa lustrosa, e as tâmaras vêm de alguém que não conheço, um todo bom na didática dos punhais, recebo folhetos há dez anos e pequenas estamparias onde vê se um homem todo nu com círculos azuis".

Sobre este livro a crítica Nelly Novaes Coelho diz: "Com a lucidez e genialidade do verdadeiro inovador, Hilda Hilst nos trás com Qadós um universo espantoso, muldimensionado. Os quatro textos contidos neste volume, onde a linguagem é uma das mais vigorosas da nossa literatura, tratam especialmente da intensa perplexidade do existir. O primeiro texto Agda é inteiro paixão, descoberta pungente, Qadós - ansiedade metafísica, é uma das narrativas mais fascinantes dos últimos tempos. Relação atormentada com o divino, Qadós-tigre, Qadós-metamorfose, Qadós-homem de Deus rondando os humanos. A Agda Segunda é uma retomada da primeira existindo num tempo paralelo, mundo de magia e estupor, de violência e sacralidade".

"O Oco, reservado aos leitores que compreendem o ato de escrever como sendo antes de tudo contenção e disciplina, diferencia-se dos anteriores (onde o homem é fulgor, garra, descoberta num espaço prismático) porque coloca o ser humano na sua mais intensa miséria existindo apenas na pluralidade dos seus vazios: vazio cintilante, vazio do fundo de mim mesmo, vazio que vai até o horizonte".

É através de uma grande depuração de si mesmo, continua Nelly Novaes Coelho que o personagem pode dizer em total verdade: "Política é dar vida a todos". "Se com Fluxo-Poema Hilda Hilst já conseguira notável inovação da prosa narrativa, com Qadós, ela vai além e se impõe como um dos mais altos nomes da literatura contemporânea".

Fluxo de consciência dialógico e teatral

Para ajudar a entender a escritura vertiginosa de Hilda, vale ouvir o que o professor de literatura da Unicamp Alcir Pécora responsável pela organização sua obra completa para a Editora Globo que diz no prefácio do Fluxo Floema algumas frases fundamentais para se entender a linguagem da escritora.

"Hilda desde os primórdios tem como uma das marcas notáveis de sua radicalidade o domínio técnico da língua e o predomínio elocutivo sobre o narrativo. Isto se traduz admiravelmente na maneira vertiginosa com que trabalha o chamado "fluxo de consciência", seu principal recurso discursivo nos cinco textos que constituem este livro. Não se trata, contudo, de um "fluxo de consciência" usual, em que a narração ou o enunciado se apresenta como realista de pensamentos do narrador. O "fluxo" em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo teatral: o que dispõe como pensamentos do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente entre diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis na cadeia discursiva. Daí a impressão de que aquilo que no narrador de Hilda pensa está atuando em cena aberta (e até está atuando cara a cara com uma platéia tendenciosa, hostil e até mesmo estúpida)".

Pécora considera que menos que a subjetividade ou a psicologia, a prosa de Hilda encena como ‘flagrante’ de interioridade o drama da ‘posição ’ do narrador em face do que escreve-aquilo que se passa quando alguém se vê determinado a falar por vontade própria. Daí acreditar "que o critico poderia se ver tentado a imaginar uma analogia entre a questão do narrador prolífico ou desdobrável e o que se passa em Fernando Pessoa com seus heterônimos", mas ressalta que as diferenças são enormes e a analogia talvez mais atrapalhe, do que ajude.

Para ele o drama da consciência em ação, apresentado na prosa de Hilda não é ordenado, a cada vez por uma personalidade discursiva e estilística imediatamente reconhecível e distinta da de todos os outros em questão. "Os ‘vários’ em Hilda são mais proliferações inadvertidamente incapazes de se conter numa unidade, do que propriamente essências ou estilos irredutíveis entre si. A verdadeira multidão que ocupa o lugar da narração fala quase sempre com a ‘mesma garganta’. Isto é, todas as personagens mal-ajambradas que se apossam da suposta ‘consciência em fluxo’ são muito semelhantes, mas ainda assim são incontidamente várias: apossam-se sucessivamente do discurso como entes parecidos entre si, a ocupar precariamente o lugar da narração. Pois se esses entes vários são fortes para ocupá-la, não bastam para refrear a sua própria geração de semelhanças instáveis, nem bastam para alcançar o gancho celeste capaz de transcendê-las."

Ainda diferente do caso dos heterônimos de Fernando Pessoa, Alcir Pécora considera que os narradores da "cena do fluxo" variam, alternam-se ou metamorfoseiam-se com muita rapidez, de modo que, se não os diferencia o estilo, eles mal alcançam a estabilidade de um nome próprio: um nome que surge e logo é derivado, declinado em vários outros de mesma raiz. Por isso, o critico acredita que no limite, apenas podem dramatizar aspectos de uma experiência ‘turva’ e deceptivamente contingente.

Daí acreditar que o "fluxo" hilstiano não pode ser dito de "consciência", "mas sim de maneira mais aproximada como "cena de possessão", na qual o narrador-"cavalo"-é sucessivamente tomado por entes poucos definidos, imediatamente aparentados entre si, incapazes de conhecer a causa ou o sentido de sua coexistência múltipla e dolorosa num oficio de escrita". Aliás, oficio é outra palavra que Pécora acredita poder ser explorada na descrição da narração praticada em Fluxo-Floema: no sentido de "domínio técnico", com certeza, mas, sobretudo no de "liturgia". Ele acredita que a multidão que habita o presente da enunciação em todos os textos desse livro, existe como uma espécie de ensaio de cerimônia litúrgica, ritualística, quase tão estranha à narrativa ficcional quanto mais a informação factual.

"Não tem atos ordenados a referir, mas apenas um apego irônico a língua e a um lócus cenográfico composto por escritório, porta de aço, clarabóia, poço, telescópio, gruta, cama, cadáveres enterrados. Fala-se então o que não se entende (muito menos os leitores impacientes): um balbucio que em sua versão mais direta refere o sentimento da procura de Deus. Mas trata-se aqui de um Deus que se manifesta numa página que diz verdades que são "breus". Alcir Pécora acredita, portanto que o "fluxo" poderia ser entendido como uma escrita que apenas se sustém á espera de que, em algum momento de sua sucessão, um Deus incompreensível se manifeste nela e passe a ter o controle dos signos. "O encargo de narrar que espera tal manifestação é, portanto, tremendamente difícil. Não se resolve nem com o "escrever bem" da literatura banal, nem com o escrever clara e porcamente como na literatura de mercado.

Considera que no "jeito difícil do narrador-cavalo é iminente o perigo de se perder no turvo, na metafísica amadora do de dentro, da língua insuficiente (" lingüinha ") para dizer os mistérios ; na "merdafestança da linguagem ", no "reino escamoso da memória", a oferecer a miragem da junção, na infância, entre "nexo" e "percepção. E terminando diz: "E se Deus tarda, no "fluxo" resta a vontade súbita de limpar o mundo e de rejuvenescer só, na companhia de personagens geralmente imundos, na espera da palavra morta."

Esplendor inédito

Depois de sete anos só escrevendo prosa, Hilda Hilst lança em 1974 seu Júbilo Memória Noviciado da Paixão-um livro de poemas apaixonados dividido em duas partes: a primeira dedicada a um certo Túlio e o segundo a um Dionísio. Amores imaginários, fantasia da poeta, ou canções de amor dedicadas a personagens reais? Sobre isso o leitor jamais saberá, a poeta se esquiva respondendo com aquele clássico: "a gente escreve sobre o que conhece, mas nunca de forma confessional".

Referindo-se a este Júbilo o crítico literário Leo Gilson Ribeiro diz: Inspirada claramente no Renascimento e mais claramente ainda nas cantigas de amigo medievais lusitanas, em toda a sua intensidade dostoievskiana a quem lê naquela arcaica e sempre presente dualidade de tempo e poesia, tempo e morte, que já os primeiros poemas, imperfeitos, tateantes, assinalam. Agora, e com o esplendor inédito na nossa poesia, que explodem as imagens comovedoras do apelo ao amado pela amante, ambos ameaçados pelo decurso inexorável do tempo.

"Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me / Eu te direi que o nosso tempo é agora / Esplendida avidez, vasta ventura / Porque é mais vasto o sonho que elabora / Há tanto tempo sua própria tessitura. / Ama-me. Embora eu te pareça / Demasiado intensa. E de aspereza / E transitória se tu me repensas."

Adiante a poeta pede um sinal do amado, cheia de esperanças por um amor aparentemente irrealizável de tal forma arrebatado que provoca no crítico uma comparação: o poema, segundo Leo Gilson Ribeiro poderia ter sido escrito por uma cortesã culta do período clássico chinês. "Se for possível, manda-me dizer: - É lua cheia. A casa está vazia/ Manda-me dizer, e o paraíso / Há de ficar mais perto, e mais recente / Me há de parecer teu rosto incerto. / Manda-me buscar se tens o dia / Tão longo como à noite. Se é verdade / Que sem mim só vê monotonia / E se te lembras do brilho das marés / De alguns peixes rosados / Numas águas / E dos meus pés molhados, manda-me dizer / É lua cheia / E revestida de luz de volto a rever."

De uma fertilidade que cada vez mais se assume e se revela, Hilda Hilst lança em 1980 um novo livro de poemas: Da Morte, Odes Mínimas. Desta vez é a morte seu tema único. Sobre a morte, ela escreve cinqüenta poemas num volume que contém ainda seis delicadíssimos desenhos seus, numa edição belíssima de Massao Ohno e Roswitha Kempf Editores. Rinoceronte, elefante, leão rei, cavalinha são estes alguns dos nomes pelos quais a poeta chama a morte: "Sonhei que te cavalgava, leão rei. / Em ouro e escarlate / Te conduzia pela eternidade / À minha casa".

Tudo isso porque a poeta quer de fato dar um novo nome à morte: "Te batizar de novo / Te nomear num trançado de teias / E ao invés de Morte / Te chamar Insana / Fulva / Feixe de flautas / Calha / Candeia / Palma, por que não? Te recriar num arco íris / Da alma, nuns possíveis / Construir teu nome / E cantar teus nomes perecíveis / Palha / Corça / Mula / Praia / Por que não?" Passional sempre, a poeta mesmo aqui, falando com a morte, cara a cara o faz de modo amoroso: "Demora-te sobre a minha hora / Antes de me tomar, demora / Que tu me percorras cuidadosa / Etérea / Que eu te / Conheça lícita, terrena / Duas fortes mulheres / Na sua dura hora. / Que me tomes sem pena / Mas voluptuosa, eterna / Como as fêmeas da terra / E a ti, te conhecendo / Que eu faça carne / E posse / Como fazem os homens".

Ansiosa a poeta quer saber como será este momento: o da morte. E pergunta como esta a tomará? "Perderás de mim / Todas as horas / Porque só me tomarás / A uma determinada hora / E talvez venhas / Num instante de vazio / E insipidez. / Imagina-te o que perderás / Eu que vivi no vermelho / Porque poeta, e caminhei / A chama dos caminhos / Atravessei o sol / Toquei o muro de dentro / Dos amigos / A boca nos sentimentos / E fui tomada, ferida / De malassombros, de gozo / Morte, imagina-te".

Afinal a poeta demonstra seu assombro e incompreensão diante da morte e propõe: "E se eu ficasse eterna? / Demonstrável / Axioma de pedra / E crivada de hera / Mas só pensada em matemática pura? / E lívida / Em organdi / Entre os escombros / Indefinível como criatura / Eternamente viva.".

Contenção e paixão nesse novo livro de ficção

Em 1980 surge mais um volume de ficção composto de tres novelas: Tu não Te Moves de Ti: Tadeu (da razão) Matamoros (da fantasia) e Axelrod (da proporção) A epígrafe do livro, um pequeno trecho da novela Axelrod talvez dê ao leitor uma pista deste conteúdo insólito: "para onde vão os trens meu pai? Pra Mahal, para Tami, para Camiri, espeços no mapa, e depois o pai ria: também para lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti".

"Pensou-se Axelrod Silva. Num intróito purificador monólogo: um aquém de mim mesmo, um, que não sei que se move se vejo fotografias daqueles escavados, aqueles de Auschwitz Belzek Treblinka, Madjanek, se vejo bocas de fome, esquálidas, se vejo, vejamos, se penso no relato da minha aluna, eu vou contar professor Axelrod, vou contar colada ao seu ouvido: choques elétricos na vagina, no ânus, dentro dos ouvidos, depois os pelos aqui debaixo incendiados, um médico filho da puta ao lado, rápidas massagens a cada desmaio, vermelhuras, clarões, os buracos sangrando. Por que? Levantou a máscara de acrílico de um soldado do rei? Confidenciou? Disse coisas de fúria boca a boca? Ela contava e nele movia-se uns agressivos moles ânsia e solidão, dilatado espremeu as pernas e um outro ele ejaculou terrores e pobreza, um outro se apossou dele significante, um outro grotesco espasmódico fluía um ISSO inoportuno e desordenado Axelrod, Axelrod que até então se conhecia invicto. Tu não te moves de ti, tu não te moves de ti, de ti, de ti, o passo do trem tu e o trem penso que me movo, Einstein meu bem quem me vê diz que o trem se move comigo amém..."

Já Tadeu, o personagem da primeira estória é um homem com "pés de água que se amolda", como diz seu pai a certa altura. A ação da novela se passa no período de uma hora?-das nove as dez, horário da reunião "sagrada" da diretoria da Empresa. Nesta hora-limite de Tadeu ele repensa sua vida: de homem de empresa, de marido desta mulher, Rute, tão diferente dele, para quem só tem "delicadezas" e que o tortura com pequenas coisas de suma importância para ela como, por exemplo, colocar os livros que ele ama: Jorge de Lima, Drummond num nicho alto da estante, quase inacessível. Acesso fácil naquela casa, só para os livros que tratam do "lucro-nervo-núcleo da empresa". Seduzido pela vida, Tadeu emigra e ensaia um vôo, quer ir embora, mudar, fazer seu "pobre verso" e suas aquarelas em paz. Mas está (está?) enleado a Rute. Tadeu-Rute, Rute-Tadeu, até que ponto seriam dois?

Em Matamoros a ficcionista cria uma mulher capaz de um ódio, um rancor e uma dúvida igualmente desmesurados. A novela se passa num clima de tragédia que os críticos têm comparado ao universo mágico do espanhol Federico Garcia Lorca. "Virou-se vagarosa a meu encontro, dois passos distantes levantados pelo espaço da janela, para o cair da tarde, externou-se muito sóbria e pausada: a espera de um filho, minha filha, essa é a novidade. Se Haiága houvesse substituído a frase por um punhado enormíssimo de socos no meu inteiro corpo, eu não ficaria mais amolecida nem mais lívida, umas coisas vagarentas e pontudas caminharam pelas minhas tripas meu sangue se fez mudo numa quietação muito de prenúncios minutos antes de mergulhar num correntoso mundo, num segundo a mente assentou-se dali, vi a cara de Simeona perto das águas, à minha frente a franzida e pestilenta boca se movendo: mulher e cadela há de morrer e parir. Mulher cadela, teria dito? Assim se entenderia a frase, sem junção do E, por que, pergunto, onde haveria cadela igual aquela, a dois passos de mim, onde haveria, não, não cadelas pois sempre só foi ternura o que senti pelas cachorras velhas, Haiága não era cadela imensissima prostituíssima é o que era, e se há na cabeça das gentes o mesmo pensamento a respeito de mim, digo que ainda que me digam torpezas como as ditas por Biona e Rufina, há em Matamoros qualidade, porque dei-me a mim publica serpenteada e viva como a água se dá a toda gente, não tratei a carne como alguns tratam o ouro, às escondidas, como Haiága embuçada, que se deu pérfida, a vulva velha as escuras, águas de mim foi ouro, ouro suposto de Haiága só pode ser AGUA ESCURA muito terrosa e pesada e se o homem de mim bebeu dessa mulher a coisa parda, é homem-demônio não homem-deus, ah mãe prostitutíssima toda remoçante e cariciosa, queria eu agora ter ligaduras grandes na cara para não te ver assim parada longezinha de mim, listrando a minha visão de muitas cores rubrecendo a tua antes azulada figura, porque neste momento te sei tão nefanda e velhaca, nos imensos profundos de mim te pensava tão santificada, e levantei-me, as unhas comendo as carnes de Haiága então estás cheia, imunda, metendo em si o que pertence à filha velha pu ta, mata-me antes que chegue o homem porque nele há de entrar uma faca de luz, iluminada de justiça alta, lá de cima desvencilhou-se Haiága, uns atalhos de sangue na cara: nunca toquei o homem e se estou cheia não foi homem de carne, foi desejo obrado do divino, jurou-te que não toquei e grito como se o próprio encantado te gritasse, estufa-se no milagre minha velha barriga, homem nenhum a não ser aquele que te colocou em mim".

Sem afinidade com o movimento modernista

A propósito do livro Poesia que reúne toda a obra poética de Hilda Hilst, Leo Gilson Ribeiro diz: Hilda Hilst mantém a singularidade de se ter mantido incólume a todos os modismos que marcaram a nossa poesia a partir de 1922. Ela mesma confessa "sem afinidade alguma" com o movimento modernista nem da geração de 1945 ela encontraria um nicho, menos ainda no falso populismo poético ou na onda concretista e da práxis que na década de 1960 varreram o Brasil.

"Sua poesia, ao contrário da sua prosa, inteiriça, surgida íntegra como de um só jato, mostra cesuras, fragmentações, um aprendizado enfim ao qual não escaparam os supremos clássicos da literatura. Dissentimos, no entanto, dos que vêm na sua poesia qualquer parentesco com Rilke (e aqui ele se refere à própria Nelly Novaes Coelho que vê uma influencia de Rilke na poesia de Hilda) e sua invocação do Anjo ou que nela queriam ver uma encarnação de uma poesia feminina no sentido feminista, emancipatório. Hilda Hilst é demasiado ampla, rica, complexa, e atemporal para ser incluída em qualquer rótulo, por mais abrangente que seja".

"A poesia de Hilda reflete este contágio do poeta para o leitor que se sente conturbado espiritualmente pelo incêndio de palavras, imagens e idéias que se comunicam até ele, de forma indelével como uma cauterização a fogo". A poesia recatada brasileira não registra tal veemência erótica nem nos poemas de Gilka Machado, de Vinicius de Moraes: o próprio Carlos Drummond de Andrade faz alusões sutilissimas á tirania do amor".

"Hilda Hilst não: toma como emblema nada menos que um dos tres ou quatro mais perfeitos poetas da língua inglesa, John Donne do século XVII para negar através do frêmito da palavra e da carne mortal a preponderância do tempo ou da morte sobre o ser humano. Toda hic et nunc, o aqui e agora ambicionado pelos grandes cantores do amor em Roma, como Catulo, ela pode dizer claramente":

Soergo meu passado e meu futuro

E digo à boca do Tempo que os devore

E degustando o êxito do Agora

A cada instante, me vejo renascendo

E no teu rosto, Túlio faz-se um Tempo

Imperecível, justo

Igual à hora primeira, nova, hora-menina

Quando se morde o fruto. Faz-se o Presente.

Translúcida me vejo na tua vida

Sem olhar para trás nem para a frente:

Indescritível, recortada, fixa."

"A grande poesia da autora de Ficções", diz Leo Gilson Ribeiro, em matéria publicada no Caderno de Programas e Leituras do Jornal da Tarde de 14-2-1981, "reflete toda a problemática da autora frente ao pessimismo que coexiste paradoxalmente com uma esperança de redenção do ser humano ameaçado por bombas de nêutron e a insânia dos políticos dirigentes da maioria das nações do globo. Teria um autor o direito de desvendar a um leitor as possibilidades latentes, mas que destruíssem também o mundo estanque no qual ele vivera até então". Uma coisa é certa e nisso há uma unanimidade: Você não lê os textos da Hilda Hilst impunemente, como diz Leo Gilson Ribeiro: "Hilda Hilst não comunica ao leitor uma vivência pessoal: ela incorpora o leitor a essa vivência doravante compartilhada; uma vez lidos, seus livros passam a integrar a nossa realidade, a nossa memória, o nosso frêmito".

Processo dificultoso de existir

Talvez por isso mesmo Hilda Hilst tenha sido constantemente acusada de fazer uma literatura afastada da sua realidade imediata, brasileira, subdesenvolvida. Assinale-se que a autora não gostava de se sentir uma excrescência. Acreditava que devia haver um sentido para que ela fosse esta que era e no contexto do seu país. "Quando se trata de política, em geral as pessoas querem colocar uma noção muito pequena diante do escritor. Eu sou contra todos os tipos de opressão, de ditaduras e tenho denunciado isso constantemente. Se estou escrevendo coisas, que para muitos é de um teor metafísico exagerado, talvez seja por estar percebendo esta potencialidade no homem. Uma pessoa, desde que assume o ato de escrever, parece que desenvolve antenas muito pronunciadas."

"Quando me perguntam por que escrevo dessa forma que as pessoas não entendem eu digo que é o processo de vida que é tão complexo. Eu não saberia simplificar esse processo para ser mais compreensível, é o meu próprio processo dificultoso de existir que faz com que venha essa avalanche de palavras, umas assim barrocas demais e que tudo seja misturado. Porque eu acho que a vida transborda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida. De repente você vai encher um cálice e tudo se esparrama, cai em você e não dá para fazer um esquema bonito agradável, simpático."

"Normalmente com as pessoas eu falo coisas normais porque acredito que as minhas preocupações são de uma seriedade que me atinge tão profundamente que não convém ficar discutindo com as pessoas esses sentimentos. Muitas pessoas me dizem, você parece tão jovial e depois o seu livro é tão desesperado... Então é só através do livro e de personagens que você pode mostrar até onde você conseguiu nadar, até onde você conseguiu mergulhar, é uma vontade que as pessoas conheçam que há um roteiro tortuoso dentro de cada um de nós o que você faz tudo para se exprimir, para se irmanar e às vezes não consegue. Quantas vezes, pessoas que eu tinha tanta vontade que entendessem o meu trabalho dizem, Hilda infelizmente não consegui saber do que se trata. Então eu imagino que existam também gradações de emoções e talvez eu seja uma pessoa com uma intensidade meio desesperada, uma lucidez também desesperada."

Aliás, esse desespero de estar vivendo entre pessoas que não a compreendiam ela expressa em algumas obras particularmente. Por exemplo, o seu Qadós que agora na nova edição da Editora Globo ficou Kadosh- que significa Ungido em hebraico, ela vai dizer pela boca do personagem: " Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros debaixo do braço e se via alguém mais louco que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou: eis o recado para o outro:sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é o teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão: Não tenho não senhor. Só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune dos cidadãos."

Pode-se dizer que da mesma forma que os cidadãos expulsam Qadós por não entender suas palavras, seu modo de estar no mundo, muitos afastaram os escritos de Hilda Hilst por julgá-los incompreensíveis. Mais uma vez o "o novo" perturbando "o velho". A esta altura, quero dizer nesta época, ela se queixou dessa incompreensão, de ser pouco lida ao escritor português Vergílio Ferreira (autor de Aparição, Nítido Nulo, entre outros) e quando estive em Portugal, fui visitá-lo e ele me deu a resposta para esse lamento da Hilda numa carta onde reafirmava sua certeza de que os textos da Hilda pertenciam mais aos leitores de amanhã.

"Eles a lerão decerto, como já agora te lêm, evidentemente depois de terem refletido que o homem também é homem no intestino grosso". A propósito da ultima frase Vergílio Ferreira resume o sentido das obras da autora como uma "preocupação de trazer Deus até as fezes do homem, de envolver o mais baixo na sublimação pelo mais alto". "Hilda desarticula a língua, juntando na mesma convulsão os elementos mais díspares forçando a lógica habitual, o arrumo habitual das pessoas bem comportadas, ele diz ainda. É aí exatamente que ela afirma sua posição de artista e afinal, ser humano, mulher ".

Aliás, esta intensidade desesperada o leitor vai poder constatar em todos os seus textos, mas de modo especial em alguns poemas como este do livro Cantares de Perda e Predileção: "Que dor desses calendários / Sumidiços, fatos, datas / O tempo envolto em visgo / Minha cara buscando / Teu rosto reversivo / Que dor no branco e negro / Desses negativos / Lisura congelada no papel / Fatos roídos / E teus dedos buscando / A carnação da vida / Que dor de abraços / Que dor de transparência / E gestos nulos / Derretidos retratos / Fotos fitas / Que rolo sinistroso / Nas gavetas / Que gosto esse do Tempo / De estancar o jorro de umas vidas".

"Em grego agonofrenós é a agonia da alma e uma pessoa que tiver essa hiperlucidez de se compreender livre em um mundo esquizofrênico poderá sobreviver a esta iluminação interior ameaçadora? Até onde se pode ser realmente livre? Como seria um ser humano totalmente livre? Sem nenhuma repressão, sentindo, no entanto, que ele faz parte de um mundo caótico e que milita contra a sua liberdade? Se você sentir que o teu eu está sofrendo uma deterioração na sua parte mais funda e autêntica, no seu âmago álmico-que poderia acontecer depois? E ao fazer da tua linguagem uma extensão da tua própria atuação, aí sim, você começa a ser livre... No mundo de hoje, só um louco é que não pode pensar em utopias. Temos que desejar a utopia, sonhar com a utopia, querer a continuação do homem por meio de uma coisa inimaginável, mas que o ser humano vai conseguir, vai chegar lá."

Proposta de uma revolução interior

Hilda Hilst reconhece que sua proposta é a de uma revolução interior. "Comecei me desestruturando depois de vinte anos de poesia arrumada. E esta linguagem ordenada, de comportamento que quero desordenar reflete a época, o momento visceralmente conturbado. É preciso dominar uma desordem para que aconteça alguma novidade real dentro de você. Há uma reformulação da linguagem como deve haver uma reformulação de comportamento".

Na verdade considera que o escritor "está sempre se dizendo, se revelando de várias formas múltiplas através dos personagens. Cada personagem faz parte de você e você se conta através de cada um. Existem momentos em que você é o gelado, o distante, o passional, o infantil, o ingênuo, o bobo, o louco e tudo isso junto. E as formas de dizer também são diferentes. Eu tenho um amor muito grande pela minha própria linguagem eu acho muito bonita. Não sei pelo fato de minha mãe ser portuguesa, quando escrevo um poema, ou como foi também no texto de Matamoros em Tu Não Te Moves de Ti, não consigo escrever sem ser o sotaque português dentro de mim. Minha mãe tinha um sotaque português muito leve, muito doce, ela me chamava Hildinha, e o l era todo suspirado, enrolado, muito bonito. E quando dizem que precisamos sair desses laços coloniais realmente eu não saberia, a minha raiz é mesmo uma raiz da Península Ibérica. Na poesia é onde me vem com mais intensidade a volúpia do sotaque português. E agora nas minhas orações à noite, eu fico falando com Deus como se ele estivesse perto de mim, com esse sotaque português. Eu digo "Ai meu Deus, por favor, não me dê muitas mágoas, muitos martírios. Talvez com esse doce, esse melado na fala, ele possa prestar mais atenção".

Hilda Hilst desarrumava a linguagem para tentar traduzir as perguntas que se fazia e seus personagens-múltiplos, tripartidos, dia e noite. Às vezes, no entanto ela experimentava um profundo desânimo em relação a alguma futura transformação do homem. "As verdades mais importantes já foram escritas. Há um impressionante acumulo de informação que não foi ainda assimilado e apesar do indiscutível progresso tecnológico do nosso século não se pode dizer que o homem esteja crescendo em verticalidade".

Não acreditava também em soluções que os políticos propõem. Endossava Arthur Koestler quando este afirmava que para que o homem se transformasse no Homo Sapiens seria preciso uma modificação de "essência álmica. Apenas com uma mudança na alma humana, só assim Hilda Hilst acreditava no homem do próximo século. E ela disse isso claramente no seu Poemas aos homens do nosso tempo: "Que te devolvam a alma / Homem do nosso tempo / Pede isso a Deus / Ou as coisas que acreditas / A terra, as águas, à noite / Uiva se quiseres / Ao teu próprio ventre / Se é ele quem comanda / A tua vida, não importa / Pede a mulher / Aquela que foi noiva / A que se fez amiga / Abre a tua boca, ulula / Pede a chuva / Ruge / Como se tivesses no peito / Uma enorme ferida / Escancara a tua boca / Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA".

E o leitor vai concordar comigo que aqui nestes poemas é onde Hilda Hilst é mais aberta, menos hermética, mais clara: "Ao teu encontro, Homem do meu tempo / À espera de que tu prevaleças / À rosácea de fogo, de ódio, às guerras / Te cantarei infinitamente / À espera de que um dia te conheças / E convides o poeta e todos esses / Amantes da palavra, e os outros / Alquimistas, a se sentarem contigo / À tua mesa. As coisas serão simples / E redondas, justas. Te cantarei / Minha própria rudeza / E o difícil de antes / Aparências, o amor / Dilacerado dos homens / Meu próprio amor que é o teu / O mistério dos rios, da terra / Da semente. Te cantarei Aquele / Que me fez poeta e que me prometeu / Compaixão e ternura e paz na Terra / Se ainda encontrasse em ti, o que te deu".

Ou então neste poema: "Vou indo caudalosa / Recortando de mim / Inúmeras palavras. / Vou indo, recortando / Alguns textos antigos / Onde a faca finíssima / Sublinhava / As legendas políticas / E um punhal incisivo / Apunhalava / Um corpo amolecido / O olho aberto, uma bota / Pontiaguda / Entrando no teu peito. Os meus olhos te olhavam / Como de certo o Cristo / Te olhou, piedade / Compaixão infinita / Ah meu amigo / Que límpida paixão / Que divina vontade / Fervor feito de lava /Fogo sobre tua fronte/".

Tanto amor/E não te deram nada. /Deram-te sim/Ferocidade, grito/.E sobre o corpo/ Chagas / E mãos enormes, garras / Te levantando o rosto / E inúmeras palavras / Tão inúteis na noite. / Diziam que adolescência / Moldou a tua idéia / Que eras como um menino / De encantada imprudência / Loucura caminhares. Na trilha da floresta / Sem luminosa armadura / Mas eu, poeta, vou indo / Caudalosa / Recortando as palavras / Tão inúteis / E os meus olhos de treva / Vão te olhando / E te guardo no peito / Intenso, aberto Colado a mim / Homem-amor / Inteiro permanência / No todo despedaçado / Do poeta". (Canto XII de Poemas aos Homens do Nosso Tempo).

Palavras inúteis

Mas parece que as palavras da escritora "foram inúteis", não tocaram o ouvido, não inflamaram o coração das pessoas como a escritora gostaria. Assim é que a partir de 1990 Hilda resolveu, desacreditada do futuro da sua literatura, sempre pouco lida pelos brasileiros, mais interessados talvez em textos menos problemáticos, mais superficiais e digeríveis, abdicar de ser uma escritora séria. Inicia a fase chamada "erótica" com o Caderno Rosa de Lory Lamb seguido de Contos d’escárnio Textos grotescos e Cartas de um sedutor. Ela justificava esta sua tomada de posição dizendo que ficara fascinada com a parte maldita dos ensaios do escritor francês George Bataille, de que, aliás, gostava mais do que da sua obra de ficção. "Eu tenho a impressão que ele tentou a salvação, por isso escreveu todos aqueles livros evidentemente pornôs. Quando li a parte maldita tive a compreensão do por que ele escrevia aqueles textos". E acrescentava que justamente ficara fascinada com todo o processo de Potlatch, através do qual ele foi se conhecendo que resumindo para ela significava o "poder de perder".

O Potlatch para quem não sabe, é um ritual dos índios norte-americanos, aparentemente uma grande festa que se celebra nos batismos, nos casamentos, nas datas mais marcantes. Os índios exibem as coisas mais bonitas que possuem, mais preciosas que possuem: mantos com plumas finíssimas, objetos que construíram artesanalmente, além de objetos que eles dão para outras tribos. "É uma grande demonstração também de poder, o que, aliás, toca naquilo que a gente aprende na escola que é a economia política que é a ciência das trocas". Hilda então, refletindo sobre tudo isso, o poder do dinheiro na nossa sociedade, a vontade de ter, concluiu através deste ritual do potlatch, que o verdadeiro poder estava na capacidade de perder, renunciar, se reduzir ao mínimo necessário para viver". E reconheceu "que todo seu esforço na busca da renovação da linguagem, havia sido excessiva. Quer dizer a minha busca, minha tentativa de transmitir a quem me lesse a sensação profunda da vida, da experiência da vida, - que seria você colocar o horizonte mais longínquo de si mesmo, a serviço da sobrevivência do outro. É que eu queria despertar um lado do ser humano que ele ainda se recusa a ver, como entre outras, essa experiência importante que o homem pode ter. Agora sim, eu sinto que posso que eu tenho o direito de fracassar. Eu passei 40 anos de reclusão dedicada a escrever e tudo de mim não teve eco, não fui compreendida, não fui consumida, não fui aceita".

Lembrava que à exceção de alguns editores e críticos: Nelly Novaes Coelho, Massao Ohno, Anatol Rosenfeld, Léo Gilson Ribeiro, a quem, aliás, ela concedeu a entrevista que estou citando (Cadernos de Sábado do Jornal da Tarde de 4-3-1989), o Brasil se mostrou absolutamente impermeável ao que ela tinha para dizer. "A futilidade é como o napalm: vai queimando, corroendo até chegar à medula, ao osso. O homem está sem nenhuma curiosidade a respeito de si mesmo, da incógnita X da sua personalidade. De que ele se esqueceu ou abafou em si".

Hilda acreditava que os homens deveriam pensar mais nos problemas fundamentais que os grandes cientistas como os Heisenberg levantam como a ciência dos limites, o caráter incognoscível, imprevisível dos átomos e seu comportamento. E conclui: "Então eu vi que minha única saída era parar, pois seria absurdo continuar. Eu acho que temos que refletir sobre os aspectos transcendentais da Terra, da Natureza vertendo sangue, destruída, violada, mutilada pela ignorância e pela ganância imediatista do homem, estudar o problema do ar que respiramos, enfim as guerras, os arsenais atômicos".

Pretendia ainda rever este conceito que nunca se questiona só se aceita sem discutir, que é o conceito da obscenidade. "É preciso pensar que a verdadeira obscenidade, criminosa é o comportamento do corpus político do Brasil e de outras nações inteiras dedicadas à devastação a qualquer preço, à fraude, à morte do outro em favor do conforto e da indiferença de quem polui o ambiente e as almas. De maneira intuitiva essas foram as perguntas que me obcecavam e para as quais eu buscava inutilmente uma resposta junto com o leitor" . Vejamos o poema em que a escritora se despede de seus "textos sérios:"

O escritor e seus múltiplos vêm vos dizer adeus.

Tentou na palavra o extremo-tudo

E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância

Foi velada: obscura teia da poesia e da loucura.

A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito

Tempo-Nada na página

Depois, transgressor metalescente de percursos

Colocou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra

Poupem-me os desperdícios de explicar o ato de brincar.

A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.

O Caderno Rosa é apenas resíduo de um "Potlatch".

E hoje, repetindo Bataille:

"Sinto-me livre para fracassar".

Anote-se, no entanto que Hilda não fracassou: as três obras da referida trilogia erótica são pequenas obras primas de irreverência e na seqüência, ela continuou com sua prosa deslumbrante. E mais, fez essas afirmações ‘definitivas’, anunciando o que o critico literário Leo Gilson Ribeiro chamou de Luminosa Despedida em entrevista publicada no Jornal da Tarde (4-3-1989) exatamente no ano do lançamento de mais um livro de poesia: Amavisse (em latim Ter Um dia Amado), que, aliás, é um dos que o compositor de música erudita contemporânea José Antonio de Almeida Prado musicou- (os outros foram: Trovas de Muito Amor para um amado Senhor e Pequenos Funerais Cantantes) e continuou produzindo mais livros: Alcoólicas (1989); Bufólicas (1992); Cantares do sem nome e de partidas (1995); Cascos e Caricias (1998); Do desejo (Editora Pontes, Campinas-SP, 1990).

Em 1997 publica Estar sendo. Ter sido, (Nankin Editorial, SP e 2ª. Edição em 2000, com capa de Claudia Lammoglia, foto da capa de Catherine A. Krulik e ilustrações de Marcos Gabriel) e prefácio de Edson da Costa Duarte Clara Silveira Machado, prosa. Em 1998 reúne suas crônicas publicadas no Jornal Correio Popular de Campinas (SP) no livro Cascos e Carícias: crônicas reunidas (1992-1995, capa de Claudia Lammoglia e foto de J. Toledo, pela Nankin, SP, 1º. Edição e 2º. Edição em 2000) e em 1999 publica uma coletânea de poemas no livro intitulado Do amor (Massao Ohno, SP) com capa de Arcangelo Ianelli, prefaciada e organizada por Edson da Costa Duarte Clara Silveira Machado.

"A vida: uma aventura obscena de tão lúcida"

No prefácio de Estar Sendo. Ter sido, intitulado: "a vida: uma aventura obscena de tão lúcida", justamente uma frase de Hillé, personagem central de A obscena senhora D, Clara Silveira e Edson Duarte dão pistas ótimas para se entender a obra de Hilda. Eles iniciam dizendo que após meio século de intenso trabalho, Hilda Hilst reafirma neste texto, "sua condição de requintada artífice da linguagem. Seus leitores encontrarão em Estar Sendo. Ter sido, todo o universo ficcional da autora já que Vittorio, personagem-máscara de Hilda, faz parte de uma cadeia de duplos de narrativas anteriores. E como Hillé ele poderia ter dito: "Ai, Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás, mas quantas vezes pensado, todo espremido, humilde, mas demolidor de vaidades."

"Vittorio recorda (traz para o seu coração) momentos de vida com um olhar que é o caleidoscópio de sua alma. Desintegra-se e se reintegra em tantos outros possíveis eus: ele é ao mesmo tempo múltiplo e uno. É a consciência da infância (Vittorio-bambino) Matias, Júnior, Alessandro e Hermínia, Pedro Cyr (um poeta bossa ‘o escroto’) Luis Bruma-Apolonio-Hillé-pseudônimo usado pelo pai da escritora, o próprio pai-Apolonio e a máscara de Hilst (Hillé). As faces de Hilda formam ‘uma sómultiplamatéria" para usar uma expressão da própria autora. Seus personagens são um só, assim como podemos interpretar toda a sua ficção como um único livro."

Clara Silveira Machado e Edson Duarte continuam dizendo que Hilda neste livro "descasca os conceitos, sendo obcecada pelas mesmas indagações metafísicas, amalgamando os estilos alto e baixo do discurso num só diapasão da voz. Os personagens que cria são apartados da realidade estão afastados do centro-oco dos conceitos. São buscas, perdas, dilaceramento, incompreensão e agonia por se saberem ‘poeira-nada’. Querem ultrapassar a fronteira da carne, do corpo-porco nosso de cada dia".E ele mesmo Vittorio-na verdade Hilda vai dizer que gostaria de sentir ainda alguma coisa-"um certo brilho,uma certa cara, a descoberta de ter escrito esta frase: "Deus, uma superfície de gelo ancorada no riso", que inicia a novela Com meus olhos de cão.

Para os autores do prefácio de Estar Sendo. Ter sido o que mais choca no narrador do texto, Vitório, 65, escritor e bebedor contumaz, no limiar da velhice, buscando nos cantos, nas frestas da mente, o sem-tempo do corpo e do espírito aquele "ter sido" lúbrico e voluptuoso-é a crueldade do personagem que não poupa a si mesmo das situações mais ridículas. E eles citam o exemplo da cena em que ele se pensa a si mesmo numa cadeira de rodas com uma bengala de prata e madrepérola.

"É o requinte do riso que destrói o próprio lugar do discurso-sujeito de onde o riso emana". Assim, sob a máscara de Vittorio, Hilda está livre, segundo Clara e Edson, para exagerar propositadamente na cor das palavras. E eles dizem: "se em Beckett tudo é cinza-monótono, em Hilda tudo é rubro-vagotonia. Seus personagens não chegam a lugar algum porque procuram ‘La Obscura Cara’ de si mesmo e do ‘Sem Nome’. Por isso seu riso é exterminador, ‘um certo tipo de cômico, uma certa maneira de rir que pertence propriamente a perspectiva trágica".

Portanto Vittorio, este bêbado, escritor "entre receitas de drinques e suicídios, procura Deus, deus e suas outras tantas máscaras. E no intervalo entre uma busca e outra, mais ou menos desesperado, conta ao leitor" short stories" ora patéticas, ora escabrosas, enquanto espera a Dama Escura : " a sépia desgrenhada, a foiçuda deve estar rondar."

Confirmando as palavras de Hilda numa entrevista que me deu e que já citei aqui: para dar ao leitor um momento para respirar, para a corda não ficar tão esticada, Clara Silveira e Edson Duarte constatam que neste livro "as histórias picantes são um oásis necessário entre os textos de enorme intensidade lirico-trágica. Das histórias de fornicar, de dar pelos cantos, muito se sabe de Vittorio - são apenas" exercícios de lubricidade", como ele mesmo diz. "Mesmo no grotesco e no pornográfico, HH não fala apenas do despudor do desejo pervertido, mas também extrai do contar uma perspectiva metalingüística. Muitas vezes é nesse nível que os leitores fazem um desvio: ao se chocarem com imagens do desejo interdito, não percebem as sutilezas e a manipulação do signo".

Para eles o texto hilstiano é construído em vários níveis, e ignorar essa dimensão é permanecer na superfície. E advertem os leitores que é preciso pensar no papel do simulacro em sua ‘pornografia’ já que aqui as mesmas questões feitas no campo metafísico são retomadas pelo avesso. "Uma pluralidade de gêneros e linguagens se instaura entre os duplos focos: sublime/grotesco, sério, cômico. Sempre irreverente, polifônico, o texto de Hilda é múltiplo: teatro, poesia, prosa poética. Nele aparecem as diversas tonalidades do cômico, desde o burlesco, bufólico, grotesco, até a ironia o sarcasmo e a sátira".

Obra de síntese de todo seu trabalho, os prefaciadores dão valiosas pistas aos que querem entender o texto complexo de Hilda dizendo o que é visível para quem lê Estar Sendo. Ter sido, depois de ter lido toda a obra da autora. "No fluxo narrativo a escritora estabelece um diálogo circular com outros textos, numa relação inter e intratextual, revelando-nos inusitadas percepções do signo e das coisas. Quanto à referencias intertextuais, HH mistura em sua prosa uma multifacetada biblioteca, como se fosse impossível desencarnar seu texto dessas lembranças ficcionais.Neste livro encontramos, lado a lado, Ovídio, Petrarca, Shakespeare, Mishima, Joyce, Jorge de Lima, Oscar Wilde, Vieira, Goya, Francis Bacon, Kurosawa, Lupasco, e por fim o pai-poeta :Apolônio Hilst e o sempre amigo- Mora Fuentes."

"No campo intratextual-tanta coisa resplende-há também vários exemplos-eu-menino-cavalo-luz-tremente inteiro lembra Agda menina-planta; o tigre-menino faz ressoar o menino-porco de Hillé. O Cara mínima, o Sem-Forma, lembra a busca do Pai-Deus em Qadós." Espaços da novela O oco eles constatam , se confundem na sintaxe: " estou na cama ou nos juncos? Estou molhado de esperma ou de urina", atualizam: Queres (que eu frite) o peixe na manteiga ou no mijo? "A verticalidade se instaura: o poço e a clarabóia de Ruiska, o banco de cimento onde se sentava o pai de Agda, sou um novo nada ninguém, de Amós Keres".

Enfim neste livro vemos toda a singularidade do olhar de Vittorio-Apolonio-Hillé-HH que corresponde, segundo Clara Silveira Machado e Edson Duarte, a "complexidade sintático-semântica" da narrativa, onde o fluxo de consciência é pulsionado pela língua materna, traçado pelas marcas do corpo erógeno que se deslocam para o campo da linguagem. "Daí o cambalear de lúcidos delírios: ‘ Funâmbulo loquaz, burlantim do nojo indo e vindo no arame; se eu fosse ou tivesse sido ia ter mágoas, escoceios, corredeiras da alma, ia despencar num frenético bamboleio dentro de canoas estreitas, e logo ali a cachoeira BUUUUMMMM!, despenquei, morri, mas não, continuo aqui, velho e bêbado, vendo de novo o ‘Cara mínima’, o deus, dentro da folha de alecrim do jardim."

A esta altura sua obra começava a ser lida, discutida e os eventos se sucedem: poemas seus com musica de Almeida Prado são apresentados na Europa no quadro dos concertos do projeto Poesia& Musica da Fundação Apollon e ela ganha o Prêmio Moinho Santista pelo conjunto da sua obra, na sua 47º edição em agosto de 2002. Em setembro de 2002 o vídeo Hilda Hilst para virgens é premiado na 9º. Expocom, realizado em Salvador (Bahia) e seus livros vão sendo traduzidos com maior intensidade para o francês, inglês, alemão, italiano. As teses também se multiplicam e agora são dezenas, sendo que entre as primeiras estão as de Gabriel Albuquerque defendida em 2002 na Universidade de São Paulo (USP) sob orientação do professor Alcides Villaça e da alemã Mechtild Blumberg apresentada a Universidade de Bremen.

Só que agora, infelizmente era tarde demais: Hilda estava cansada, desgastada, não queria mais escrever: "Eu gostaria de escrever ainda, mas não tenho mais nada para falar. Eu já escrevi tudo. Quando a pessoa envelhece a gente já não tem mais vontade de falar. Parece uma seita.". E ainda, sobre se a idade afinal havia trazido para ela a serenidade tão almejada diz: "A idade para mim foi ao contrário, não me deixa serena não. Sou uma pessoa inquieta, eu tenho problemas existenciais".

Fiz aí uma amostra não tão mínima da obra desta poeta, ficcionista e dramaturga máxima. Você agora leitor, que não a conhece, ou que conhece, mas quer conhecer melhor, que tal mergulhar nela e descobrir fascinantes mundos desconhecidos? Segui-la na sua trajetória delirante, suas acentuações apaixonadas, caudalosas, recortando as palavras que penetram como lâminas nos corações dos leitores que ficam para sempre seduzidos pela sua maravilhosa capacidade de penetrar nos recônditos da alma, no fundo dos sentimentos?